O futebol tem bons e maus momentos, né? Observem:
Sim, infelizmente aquela Copa não foi o fundo do poço. Robinho está praticamente banido do futebol. E Júlio César… Bem, melhor continuar lendo.
O fato é que jogar futebol não é bolinho, não. O jogador tem que driblar, arrancar e parar repentinamente. Lesões fazem parte do jogo. O volante Emerson foi cortado da seleção de 2002 às vésperas da Copa do Mundo por ter machucado o ombro numa queda de mal jeito. E nos sagramos pentacampeões naquele ano. Imaginem a sua alegria (e, ao mesmo tempo, frustração). Era ele que, como Capitão, teria segurado a taça.
Goleiros, então, talvez sejam ainda mais propensos a sofrerem lesões na coluna do que os jogadores. Cair muito não é somente uma necessidade — é um pré-requisito. Problemas de coluna neste grupo são mais comuns do que se pensa.
Me lembro alguns muitos anos atrás, de um paciente que era jogador de futebol semiprofissional. E teve que dar uma pausa na carreira por causa de uma crônica e violenta lombalgia. Ele fez o tratamento direitinho, conseguimos estabilizar o delicado quadro álgico, e, depois de algum tempo, perguntou se podia retornar ao jogo como goleiro. Na minha santa inocência, imaginando-o parado esperando pela bola, liberei. Ledo engano. Nosso amigo deu uma avoada para defender um gol, caiu no chão e teve uma violenta recaída. Os anos se passaram, ele melhorou — mas nunca a ponto de jogar de novo. Frustrante.
Ressalte-se que Emerson, quando sofreu a lesão do primeiro parágrafo, estava atuando como goleiro num rachão antes do início do Mundial.
Voltando à Copa de 2010, não faltaram críticas para Dunga pela escalação de alguns jogadores para a seleção brasileira. Mas, pelo menos naquela época, um nome foi unanimidade: o goleiro Júlio César. Não era exatamente um novato. Havia disputado a Copa do Mundo de 2006 como terceiro goleiro. Foi campeão da Copa das Confederações (2009 e 2013), Copa América (2004) e Mundial Sub-17 (1997). Vestiu a camisa do Internazionale de Milão, Benfica e Flamengo. Já foi considerado pela FIFA o terceiro melhor goleiro do mundo — só perdendo então para o espanhol Íker Casillas e para o italiano Gianluigi Buffon.
Sobre este último, discorreremos mais abaixo.
Júlio César havia sido vazado duas vezes naquele Mundial: contra a Coréia do Norte e contra a Costa do Marfim. Não obstante, parecia estar em excelente forma. Mas não foi sempre assim.
Algumas semanas antes, durante o amistoso contra o Zimbábue, o goleiro deu um tremendo susto em Dunga após tentar fazer uma defesa aos 19 minutos. Sofreu uma pancada na região lombar ao bater no chão. Teve que ser substituído. O diagnóstico: “traumatismo na região lombar” (seja lá o que isto signifique). O mundo futebolístico ficou em polvorosa.
Isto porque, de acordo com a revista ÉPOCA (14/06/2010), o goleiro tinha “um histórico de hérnia de disco (havia sofrido uma cirurgia em 2007). O fotógrafo da ÉPOCA Ricardo Corrêa flagrou-o usando um dos coletes ortopédicos sob a roupa, em um dos treinamentos da Seleção. O uso deste colete é comum em lesões lombares — para aliviar as dores de uma hérnia, por exemplo”. Dunga, com seus treinos fechados, acabou inadvertidamente fazendo crescer uma imensa boataria em torno da coluna de Júlio César.
O pivô da discórdia foi mesmo o colete que o goleiro foi flagrado usando em mais de uma ocasião. Um proeminente neurocirurgião sugeriu que se tratava de um colete de Putti – usado para estabilizar a região lombar (ver Artigo 139). É feito de lona ou algodão, barbatanas de aço e velcro. Ajuda no tratamento de fraturas lombares e no pós-operatório de cirurgias da coluna lombar. Muito comum, é vendido em qualquer loja de artigos ortopédicos.
Mas, aparentemente, a notícia era (como o perdão do termo que não era lá muito usado na época) fake news: tal cirurgia jamais foi realizada. “Visivelmente chateado com as notícias que circularam no Brasil de que teria sido operado em 2007 de um problema na coluna, Júlio César negou veementemente e chegou até a levantar a camisa e mostrar aos jornalistas que não tinha nenhuma marca no local”. O goleiro alegou que a cirurgia foi para a correção de uma hérnia inguinal, confirmada pelo então médico da seleção brasileira José Luiz Runco. “Criaram esta situação e isso pode até me prejudicar”, afirmou.
A confusão chegou a tal ponto que o Dr. Runco teve que mandar um e-mail para o então diretor de esportes da Rede Globo, Renato Maurício Prado, na tentativa de esclarecer o assunto (a título de curiosidade científica, eis o texto na íntegra):
“Caro Renato, aquilo não é um colete de Putti, como sugeriu um nobre colega neurocirurgião, pois o mesmo é usado diante de fratura de coluna toraco-lombar ou após traumatismos que possam comprometer a coluna dorso lombar. Este colete (de Putti) é incapacitante tanto para movimentos rotacionais ou de flexo-extensão da coluna. Quem o usa está em tratamento de alguma patologia incompatível com a prática desportiva. Na verdade, estamos utilizando uma cinta lombar, que não tem nada de extraordinário ou incompatível com as regras da Fifa. Trata-se simplesmente de uma contenção que dá ao atleta a sensação de conforto. Poderíamos compará-lo à tira subpatelar que alguns atletas usam abaixo do joelho. Para você entender, o Júlio César tem uma protusão do disco intervertebral (não confundir com hérnia discal). Vide matéria no Globoesporte.com que relata muito bem este aspecto e que ressalta que ele precisa manter-se em trabalho de RPG (ver Artigo 133) e exercícios de fortalecimento, que já faz há cerca de sete anos, desde que nós diagnosticamos isso em 2003. E ele vem se comportando muito bem, como você pode acompanhá-lo neste período da carreira. Júlio foi submetido, em 2007, a uma cirurgia bilateral de hérnia inguinal, na Bélgica, e por isso não participou da Copa América 2007. Lá no seu clube (Inter de Milão) ele mantém os exercícios e foi recomendado que use, sentindo-se bem, a cinta lombar. Espero ter elucidado toda e qualquer dúvida. Um forte abraço.”
Um parêntese: o disco, como todo Quiropraxista sabe, é uma estrutura cartilaginosa que fica entre uma vértebra e outra e serve como amortecedor. Existem 23 discos para 24 vértebras. Seu formato é arredondado (como um feijão). No centro fica o núcleo pulposo, uma espécie de gel para melhor redistribuir carga — magnificamente contido pelo anel fibroso. Porém, quando o disco se desidrata ou se degenera (desgaste este que pode ocorrer com a idade, trauma ou vício postural), o anel fibroso se enfraquece. E pode sofrer microrrachaduras. O aumento da pressão intradiscal (ver Artigo 166) faz com que o núcleo seja “empurrado” para fora, podendo “vazar” pelas “rachaduras” do anel fibroso. Este corpo estranho fora do disco é a síntese da famigerada hérnia discal. Ocorre que na protrusão discal, o anel fibroso não se rompe. Apenas forma um “calombo”. O núcleo é projetado contra o anel fibroso, deforma-o, mas mantém-se dentro do disco — diferentemente do abaulamento, uma espécie de “colapso” discal, mais abrangente. Ou da extrusão, onde efetivamente ocorre a rotura e o vazamento para além das suas bordas.
Trocando em miúdos, diferentemente do que afirmou o então médico da seleção brasileira, toda protrusão é uma hérnia. Mas nem toda hérnia é uma protrusão (ver Artigo 146).
Outro parêntese: reza a lenda que o presidente John F. Kennedy usava este colete para aliviar suas crônicas dores de coluna (ver Artigo 102). E que, quando foi atingido pelo primeiro tiro naquele fatídico dia em Dallas em 1963, impulsionou-se para frente e teria sido “trazido de volta” justamente pelo tal colete. Foi então atingido pelo fatal segundo tiro que ceifou sua vida. Em outras palavras, o uso do colete de Putti teria contribuído efetivamente para que o assassinato do presidente dos Estados Unidos tivesse êxito. Terá um fundo de verdade tamanha lenda urbana? Quem sabe?
Pois é. Protrusão ou hérnia, colete ou sem colete, a ironia é que Júlio César, naquela Copa de 2010, poderia perfeitamente ter defendido aquela bola se Felipe Melo não tivesse interferido. O resultado, provavelmente, seria outro. Mas, por outro lado, decisões como esta são tomadas em fração de segundos. Se ao menos Felipe Melo estivesse alguns centímetros mais afastado de Júlio César… C´est la vie.
A despedida melancólica deste excelente goleiro foi na Copa do Mundo de 2014, no famigerado 7 a 1 que tomamos da Alemanha. Triste. Mas aparentemente sem nada a ver com transtornos discais, dores lombares ou qualquer tipo de colete.
Agora, quem sofreu mesmo com uma hérnia de disco no Mundial de 2010 foi o goleiro da seleção italiana Gianluigi Buffon. A dor era intensa, mas o amor da camisa era mais forte. Até o momento em que foi obrigado a ser substituído no intervalo do jogo contra o Paraguai. E ficou fora do Mundial. E afastado do futebol por uns tempos. “Coloquei sempre os interesses coletivos em primeiro lugar, mas chegou o momento de pensar em mim”, lamenta o goleiro da squadra azurra.
Buffon, para quem não se lembra, foi o sujeito que dedurou a cabeçada que Zinedine Zidane deu em Marco Materazzi no final da Copa do Mundo de 2006 — o que resultou na expulsão do meio-campista francês. E que pode ter efetivamente contribuído para a França ter perdido nos pênaltis. Conhecido também como Gigi ou Superman, é considerado um dos maiores goleiros de todos os tempos. Ironicamente, as duas seleções foram eliminadas em 2010 ainda na primeira fase. A França sagrou-se campeã em 2018 e vice em 2022. Já a Itália… Entrou num bad karma sem fim depois de 2006…
Voltando aos discos intervertebrais, não é incomum estes tipos de transtornos ocorrerem em nós, bípedes homo sapiens (ver Artigos 106, 180 e 182). Ainda mais ao ficarmos mais velhos. Naquele ano de 2010, Buffon tinha 32 anos. Júlio César prestes a completar 31. No universo futebolístico, já estariam bem maduros. E, supostamente, na idade “ideal” para sofrerem estes tipos de lesões.
Interessante é que, apesar das dores em comum, Buffon e Júlio César aparentemente não se bicavam. Volta e meia andavam se estranhando.
Ossos do ofício?