O futebol tem bons e maus momentos, né? Observem:

  • Final da Copa América de 2004: A Argentina ganhava por um gol de diferença, já cantava de galo, e se limitava a tocar bola para passar o tempo. Aí veio Adriano, bateu uma bomba aos 48 minutos do segundo tempo, empatou o jogo e levou os atarantados adversários para a decisão nos pênaltis. Resultado: Brasil campeão.

  • Final da Copa das Confederações de 2009: O Brasil terminou o primeiro tempo perdendo de 2 a 0 para os Estados Unidos. Viramos o jogo no segundo tempo: Lúcio, nos seis minutos finais, fez o gol de desempate. Resultado: Brasil campeão.

  • Quartas-de-final da Copa do Mundo de 2006: Zinedine Zidane cobra uma falta. Roberto Carlos, ajeitando sua meia, se distrai. Thierry Henry aproveita e faz o gol. O Brasil se desespera, perde o ritmo, as estribeiras e fica sem garra. Voltamos para casa.

  • Quartas-de-final da Copa do Mundo de 2010: Wesley Sneijder manda a bola para a área. Felipe Melo e Júlio César se embolam para defender. A Jabulani acaba resvalando na cabeça do volante e entra no gol. O Brasil se desespera, perde o ritmo, as estribeiras e fica sem garra. A cena de Robinho gritando com um sentado (e apático) Sneijder vai ficar indelevelmente impressa na memória nacional. Voltamos para casa.

    Teria sido a primeira vez na história das Copas que o Brasil tomaria um gol contra. Felipe Melo cavaria seu nicho nas Copas do Mundo e entraria para o rol de craques como Roberto Carlos (2006), Ronaldo (1998), Zico (1986), Toninho Cerezo (1982) e outros cujas falhas contribuíram para nossa eliminação. Mas aí a FIFA sentenciou no dia seguinte que o gol não foi contra, e sim do jogador holandês. Mesmo as imagens mostrando que o tal gol foi certamente de Felipe Melo (que falta um VAR não faz…), pelo menos deste vexame ele se livrou. Esta dúbia proeza do 1º gol contra brasileiro em Copas do Mundo ficou para Marcelo no fatídico Mundial de 2014 — o mesmo Marcelo que inadvertidamente causou em 2023 uma espetacular, bizarra e raríssima lesão no joelho de um zagueiro argentino. Mas isso já é outra história (ver este post no Instagram).

    Claro que tomar gols não foi o problema. Faltou foi cabeça fria para virar o jogo (como nos dois primeiros ítens acima). Com isso, chegamos ao final de mais uma pífia participação do Brasil em Copas do Mundo — que, infelizmente, a história iria mostrar que não seria a última e nem a pior. O time do então treinador Dunga, que sempre teve garra para arrancar resultados favoráveis de situações adversas, havia amarelado de maneira espetacular.

Sim, infelizmente aquela Copa não foi o fundo do poço. Robinho está praticamente banido do futebol. E Júlio César… Bem, melhor continuar lendo.

O fato é que jogar futebol não é bolinho, não. O jogador tem que driblar, arrancar e parar repentinamente. Lesões fazem parte do jogo. O volante Emerson foi cortado da seleção de 2002 às vésperas da Copa do Mundo por ter machucado o ombro numa queda de mal jeito. E nos sagramos pentacampeões naquele ano. Imaginem a sua alegria (e, ao mesmo tempo, frustração). Era ele que, como Capitão, teria segurado a taça.

Goleiros, então, talvez sejam ainda mais propensos a sofrerem lesões na coluna do que os jogadores. Cair muito não é somente uma necessidade — é um pré-requisito. Problemas de coluna neste grupo são mais comuns do que se pensa.

Me lembro alguns muitos anos atrás, de um paciente que era jogador de futebol semiprofissional. E teve que dar uma pausa na carreira por causa de uma crônica e violenta lombalgia. Ele fez o tratamento direitinho, conseguimos estabilizar o delicado quadro álgico, e, depois de algum tempo, perguntou se podia retornar ao jogo como goleiro. Na minha santa inocência, imaginando-o parado esperando pela bola, liberei. Ledo engano. Nosso amigo deu uma avoada para defender um gol, caiu no chão e teve uma violenta recaída. Os anos se passaram, ele melhorou — mas nunca a ponto de jogar de novo. Frustrante.

Ressalte-se que Emerson, quando sofreu a lesão do primeiro parágrafo, estava atuando como goleiro num rachão antes do início do Mundial.

Voltando à Copa de 2010, não faltaram críticas para Dunga pela escalação de alguns jogadores para a seleção brasileira. Mas, pelo menos naquela época, um nome foi unanimidade: o goleiro Júlio César. Não era exatamente um novato. Havia disputado a Copa do Mundo de 2006 como terceiro goleiro. Foi campeão da Copa das Confederações (2009 e 2013), Copa América (2004) e Mundial Sub-17 (1997). Vestiu a camisa do Internazionale de Milão, Benfica e Flamengo. Já foi considerado pela FIFA o terceiro melhor goleiro do mundo — só perdendo então para o espanhol Íker Casillas e para o italiano Gianluigi Buffon.

Sobre este último, discorreremos mais abaixo.

Júlio César havia sido vazado duas vezes naquele Mundial: contra a Coréia do Norte e contra a Costa do Marfim. Não obstante, parecia estar em excelente forma. Mas não foi sempre assim.

Algumas semanas antes, durante o amistoso contra o Zimbábue, o goleiro deu um tremendo susto em Dunga após tentar fazer uma defesa aos 19 minutos. Sofreu uma pancada na região lombar ao bater no chão. Teve que ser substituído. O diagnóstico: “traumatismo na região lombar” (seja lá o que isto signifique). O mundo futebolístico ficou em polvorosa.

Isto porque, de acordo com a revista ÉPOCA (14/06/2010), o goleiro tinha “um histórico de hérnia de disco (havia sofrido uma cirurgia em 2007). O fotógrafo da ÉPOCA Ricardo Corrêa flagrou-o usando um dos coletes ortopédicos sob a roupa, em um dos treinamentos da Seleção. O uso deste colete é comum em lesões lombares — para aliviar as dores de uma hérnia, por exemplo”. Dunga, com seus treinos fechados, acabou inadvertidamente fazendo crescer uma imensa boataria em torno da coluna de Júlio César.

O pivô da discórdia foi mesmo o colete que o goleiro foi flagrado usando em mais de uma ocasião. Um proeminente neurocirurgião sugeriu que se tratava de um colete de Putti – usado para estabilizar a região lombar (ver Artigo 139). É feito de lona ou algodão, barbatanas de aço e velcro. Ajuda no tratamento de fraturas lombares e no pós-operatório de cirurgias da coluna lombar. Muito comum, é vendido em qualquer loja de artigos ortopédicos.

Mas, aparentemente, a notícia era (como o perdão do termo que não era lá muito usado na época) fake news: tal cirurgia jamais foi realizada. “Visivelmente chateado com as notícias que circularam no Brasil de que teria sido operado em 2007 de um problema na coluna, Júlio César negou veementemente e chegou até a levantar a camisa e mostrar aos jornalistas que não tinha nenhuma marca no local”. O goleiro alegou que a cirurgia foi para a correção de uma hérnia inguinal, confirmada pelo então médico da seleção brasileira José Luiz Runco. “Criaram esta situação e isso pode até me prejudicar”, afirmou.

A confusão chegou a tal ponto que o Dr. Runco teve que mandar um e-mail para o então diretor de esportes da Rede Globo, Renato Maurício Prado, na tentativa de esclarecer o assunto (a título de curiosidade científica, eis o texto na íntegra):

“Caro Renato, aquilo não é um colete de Putti, como sugeriu um nobre colega neurocirurgião, pois o mesmo é usado diante de fratura de coluna toraco-lombar ou após traumatismos que possam comprometer a coluna dorso lombar. Este colete (de Putti) é incapacitante tanto para movimentos rotacionais ou de flexo-extensão da coluna. Quem o usa está em tratamento de alguma patologia incompatível com a prática desportiva. Na verdade, estamos utilizando uma cinta lombar, que não tem nada de extraordinário ou incompatível com as regras da Fifa. Trata-se simplesmente de uma contenção que dá ao atleta a sensação de conforto. Poderíamos compará-lo à tira subpatelar que alguns atletas usam abaixo do joelho. Para você entender, o Júlio César tem uma protusão do disco intervertebral (não confundir com hérnia discal). Vide matéria no Globoesporte.com que relata muito bem este aspecto e que ressalta que ele precisa manter-se em trabalho de RPG (ver Artigo 133) e exercícios de fortalecimento, que já faz há cerca de sete anos, desde que nós diagnosticamos isso em 2003. E ele vem se comportando muito bem, como você pode acompanhá-lo neste período da carreira. Júlio foi submetido, em 2007, a uma cirurgia bilateral de hérnia inguinal, na Bélgica, e por isso não participou da Copa América 2007. Lá no seu clube (Inter de Milão) ele mantém os exercícios e foi recomendado que use, sentindo-se bem, a cinta lombar. Espero ter elucidado toda e qualquer dúvida. Um forte abraço.”

Um parêntese: o disco, como todo Quiropraxista sabe, é uma estrutura cartilaginosa que fica entre uma vértebra e outra e serve como amortecedor. Existem 23 discos para 24 vértebras. Seu formato é arredondado (como um feijão). No centro fica o núcleo pulposo, uma espécie de gel para melhor redistribuir carga — magnificamente contido pelo anel fibroso. Porém, quando o disco se desidrata ou se degenera (desgaste este que pode ocorrer com a idade, trauma ou vício postural), o anel fibroso se enfraquece. E pode sofrer microrrachaduras. O aumento da pressão intradiscal (ver Artigo 166) faz com que o núcleo seja “empurrado” para fora, podendo “vazar” pelas “rachaduras” do anel fibroso. Este corpo estranho fora do disco é a síntese da famigerada hérnia discal. Ocorre que na protrusão discal, o anel fibroso não se rompe. Apenas forma um “calombo”. O núcleo é projetado contra o anel fibroso, deforma-o, mas mantém-se dentro do disco — diferentemente do abaulamento, uma espécie de “colapso” discal, mais abrangente. Ou da extrusão, onde efetivamente ocorre a rotura e o vazamento para além das suas bordas.

Trocando em miúdos, diferentemente do que afirmou o então médico da seleção brasileira, toda protrusão é uma hérnia. Mas nem toda hérnia é uma protrusão (ver Artigo 146).

Outro parêntese: reza a lenda que o presidente John F. Kennedy usava este colete para aliviar suas crônicas dores de coluna (ver Artigo 102). E que, quando foi atingido pelo primeiro tiro naquele fatídico dia em Dallas em 1963, impulsionou-se para frente e teria sido “trazido de volta” justamente pelo tal colete. Foi então atingido pelo fatal segundo tiro que ceifou sua vida. Em outras palavras, o uso do colete de Putti teria contribuído efetivamente para que o assassinato do presidente dos Estados Unidos tivesse êxito. Terá um fundo de verdade tamanha lenda urbana? Quem sabe?

Pois é. Protrusão ou hérnia, colete ou sem colete, a ironia é que Júlio César, naquela Copa de 2010, poderia perfeitamente ter defendido aquela bola se Felipe Melo não tivesse interferido. O resultado, provavelmente, seria outro. Mas, por outro lado, decisões como esta são tomadas em fração de segundos. Se ao menos Felipe Melo estivesse alguns centímetros mais afastado de Júlio César… C´est la vie.

A despedida melancólica deste excelente goleiro foi na Copa do Mundo de 2014, no famigerado 7 a 1 que tomamos da Alemanha. Triste. Mas aparentemente sem nada a ver com transtornos discais, dores lombares ou qualquer tipo de colete.

Agora, quem sofreu mesmo com uma hérnia de disco no Mundial de 2010 foi o goleiro da seleção italiana Gianluigi Buffon. A dor era intensa, mas o amor da camisa era mais forte. Até o momento em que foi obrigado a ser substituído no intervalo do jogo contra o Paraguai. E ficou fora do Mundial. E afastado do futebol por uns tempos. “Coloquei sempre os interesses coletivos em primeiro lugar, mas chegou o momento de pensar em mim”, lamenta o goleiro da squadra azurra.

Buffon, para quem não se lembra, foi o sujeito que dedurou a cabeçada que Zinedine Zidane deu em Marco Materazzi no final da Copa do Mundo de 2006 — o que resultou na expulsão do meio-campista francês. E que pode ter efetivamente contribuído para a França ter perdido nos pênaltis. Conhecido também como Gigi ou Superman, é considerado um dos maiores goleiros de todos os tempos. Ironicamente, as duas seleções foram eliminadas em 2010 ainda na primeira fase. A França sagrou-se campeã em 2018 e vice em 2022. Já a Itália… Entrou num bad karma sem fim depois de 2006…

Voltando aos discos intervertebrais, não é incomum estes tipos de transtornos ocorrerem em nós, bípedes homo sapiens (ver Artigos 106, 180 e 182). Ainda mais ao ficarmos mais velhos. Naquele ano de 2010, Buffon tinha 32 anos. Júlio César prestes a completar 31. No universo futebolístico, já estariam bem maduros. E, supostamente, na idade “ideal” para sofrerem estes tipos de lesões.

Interessante é que, apesar das dores em comum, Buffon e Júlio César aparentemente não se bicavam. Volta e meia andavam se estranhando.

Ossos do ofício?