Melquíades (nome fictício) se considera um homem razoavelmente saudável para seus 71 anos bem vividos. Exercita-se com regularidade, mas, ao pegar “um saco de cimento” pouco tempo atrás, sentiu fortes dores lombares. Após tirar uma radiografia, o médico que o atendeu disse que seu problema era “bico de papagaio”. E que não tinha cura — somente tratamento paliativo.

O diagnóstico do clínico estava correto. E não estava.

Sim, bico de papagaio é, de fato, irreversível. Mas resta saber até que ponto isto tem a ver com a dor de Melquíades. Osteofitose (nome cientificamente correto para “bico de papagaio”) leva tempo para se formar. Anos. Décadas, até.

Um parêntese: isso de chamar osteófitos de “bico de papagaio” deve ser coisa mesmo de país tropical. Nos Estados Unidos, que não costuma ter papagaios como parte da sua fauna nativa, osteófito é conhecido popularmente como “bony spur” (esporão ósseo, numa tradução livre). Já aqui, “esporão” é o termo que damos ao osteófito que ocorre no calcanhar. É de fundir a cuca, né?

Mas, voltando a Melquíades, como poderia ele ter começado a sentir dores recentes tendo convivido com o temido bico de papagaio por anos a fio?

A resposta é simples: a coluna de nosso amigo adaptava-se bem aos osteófitos. O jeito que deu nas costas ao pegar o saco de cimento causou a perda desta capacidade adaptativa. Um bico de papagaio que antes não causava dor, estaria agora, em tese, “pinçando” um nervo — mas este quadro é reversível. O osteófito pode muito bem voltar a ser o que era antes: uma mera alegoria na coluna do velho Melquíades — e sem causar dores. Basta restaurar o seu “jogo de cintura”. Função é melhor do que forma, lembrem-se disso. É o âmago da Quiropraxia.

Tais formações osteofíticas, não tão agradáveis, fazem parte do desenvolvimento humano. Todos nós, ao envelhecermos, inevitavelmente iremos desenvolver bicos de papagaio (alguns mais, outros menos). De uma forma ou de outra, é inerente à espécie humana. É o preço que pagamos por sermos bípedes — independente do sedentarismo da sociedade moderna (que, por sinal, diminui a lordose lombar; encurta e enfraquece a musculatura paravertebral).

E também, temos que manter em mente que o corpo sempre procura por estabilização. Então a osteofitose pode ser uma tentativa do corpo de tentar estabilizar (negativamente, claro) uma articulação que ele entende como instável. Não deixa de ser uma forma de defesa. Proteger hoje e lidar com as mazelas amanhã. (Veja discussão sobre isso no artigo 82.)

A prova cabal desta teoria foi recentemente descoberta numa região ao norte da Espanha — nas serras de Atapuerca. Com suas várias cavernas, acabou servindo de abrigo a várias espécies de hominídeos. O sítio de escavação mais famoso fica dentro de uma destas cavernas. Já escavaram mais de 5.000 ossos no Sima de Los Huesos (“poço dos ossos” em espanhol).

Pois é. Na edição 43 (26/10/2010) da tradicional e conceituada revista científica PNAS (Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America), foi publicado um abstrato de um estudo que envolveu a descoberta de um fóssil (fotos no Instagram) com a pelve e quase todas as vértebras lombares de um indivíduo que pertencia à espécie Homo heidelbergensis (veja o trabalho na íntegra  — é bem interessante para nós, Quiropraxistas). O sujeito, com uns 45 anos de idade, viveu no período Pleitoceno Médio (bem na época da Era do Gelo), cerca de 500 mil anos atrás. Até então, os paleontólogos nunca haviam se deparado com ossos de uma pessoa tão, digamos assim, “idosa”.

Vale ressaltar aqui que os homens pré-históricos não eram conhecidos por terem longa vida. Uma pessoa de 45 anos era uma espécie de “Matusalém dos Homens das Cavernas”. O gancho é que ela provavelmente sofria de dores de coluna. “Cicatrizes em várias das vértebras sugerem um choque constante entre elas enquanto o sujeito andava, o que fez com que se remodelassem e adquirissem um formato diferente das de pessoas saudáveis. As dores podem ter sido intensificadas graças a longas caminhadas na juventude, carregando grandes caças” (ISTOÉ, 20/10/2010). Esta é a exata descrição de osteófitos — que não deixa de ser uma espécie de remodelamento ósseo, uma perversão da Lei de Wolff. Patologicamente falando.

Então. Nosso “Matusalém”, de acordo com o estudo, também “exibe sinais de deformidade cifótica lombar, espondilolistese e doença de Baastrup”.

  • Com esse negócio de ser bípede, a coluna vertebral foi além das cifoses (curvas posteriores) e desenvolveu lordoses (curvas anteriores) — sobretudo na região lombar, que parece ser uma peculiaridade dos hominídeos. Essa adaptação foi para que a coluna pudesse suportar melhor a carga da gravidade. Portanto, a coluna lombar tem que ter esta curva fisiológica para frente — a lordose. Cifose, sendo o contrário disso, coloca grande pressão nos discos intervertebrais. “Matusalém” apresentava cifose lombar.

  • Espodilolistese vem do grego σπόνδυλος (“spondylos”) e significa “vértebra”. O termo “listese” (λίστες) se aplica ao deslizamento anormal de uma vértebra sobre a outra. Cerca de 4-5% da população em geral apresenta algum tipo de espondilolistese. Existe sempre a possibilidade da causa ser traumática, mas o que ocorre com mais frequência é uma separação do pars interarticularis causado por fratura por estresse durante a preadolescência. Porém, a de longe mais comum é a degenerativa, onde ocorre um remodelamento ósseo (olha a Lei de Wolff aí de novo!) que causa um aumento do ângulo entre os pedículos e as articulações interfacetárias devido a mudanças e instabilidade (olha ela aí também!) causadas pela osteoartrose. O deslizamento da espondilolistese pode ocorrer tanto anterior quanto posteriormente. Portanto, “Matusalém” tem, na verdade, uma anterolistese (que é um termo mais apropriado).

  • Síndrome ou Doença de Baastrup ou Artrose Interespinhosa Lombar (kissing spine syndrome) “consiste em um processo degenerativo relacionado ao desenvolvimento de uma pseudo-articulação entre as apófises espinhosas e o aparecimento de fenômenos artrósicos. Define-se como uma variedade peculiar de artrose axial. Trata-se de uma condição na qual as apófises espinhosas contíguas se aproximam entre si e roçam, produzindo uma sobrecarga mecânica e mudanças nas superfícies ósseas. Ocorre com mais frequência entre a terceira, a quarta e a quinta vértebras lombares.” Sendo uma neo-artrose resultante do contato dos processos espinhosos, o ato de ficar na posição ereta seria, em tese, muito dolorido. E talvez “Matusalém” tenha vivido isso. Talvez.

Por conta de todo esse embróglio na coluna do hominídeo, os pesquisadores concluíram então que “Matusalém”, coitado, “andava com as costas curvadas, os joelhos permanentemente dobrados e sempre apoiado por um bastão que lhe servia de bengala. Sofria com fortes dores nas costas devido a doenças ósseas, que também o impediam de caçar. Por causa deste seu estado frágil, dependia da solidariedade alheia para poder comer”. Isso se nosso amigo poder contar com compaixão entre seus pares pré-históricos. Um tanto quanto dramático, não?

Mas, olha, na realidade, isso não prova nada. Como Quiropraxistas sabemos que cifose lombar, anterolistese e doença de Baastrup nunca foram, por si sós, motivos para o sujeito ficar incapacitado. Neste ponto, os pesquisadores estavam especulando.

Ainda assim, é inegável que dores de coluna começaram desde que os primeiros hominídeos desenvolveram a habilidade, a bênção e a alegria de andar com os dois pés. Com o aumento da carga pela gravidade, foi surgindo também a osteofitose. E mesmo não sendo reversível, dores são.

Por isso, nosso Melquíades do começo do artigo pode ficar sossegado. Seu problema tem jeito.

Já “Matusalém”, se ele fez (ou não fez) uma limonada com o limão que era sua coluna; se houve adaptação a todos esses problemas citados acima; se função se sobrepôs a forma — essa resposta, caros leitores, pertence ao universo.