“Porque você tomaria uma droga que certamente o mataria daqui a quarenta anos? Por ser a única coisa que lhe impediria de morrer amanhã”.

Esta frase talvez faça um pouco mais de sentido ao final deste artigo.

Saúde, de acordo com a OMS (Organização Mundial de Saúde), “é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença”. Mas poderiam as doenças terem contribuído para a saúde da humanidade?  

É o que defende o Dr. Sharon Moalem no seu livro A Sobrevivência dos Mais Doentes, co-escrito por Jonathan Prince (Rio de Janeiro: Editora Campus, 2008; 242 páginas). Para os autores, doenças ocorrem por um motivo simples: evitar um mal maior. Mas como assim? Afinal de contas, doença, seja ela qual for, é um estorvo.  

Se a Teoria da Evolução de Charles Darwin (1809-1882) for estereotipada como “sobrevivência do mais forte”, então a finalidade das doenças seria controle populacional. Porém, o que Darwin na verdade afirma no seu livro A Origem das Espécies (São Paulo: Editora Escala, 2009; 462 páginas), é que são os mais aptos (não necessariamente os mais fortes) que sobrevivem (leia artigo 70). Ganha quem se adapta. Neste caso, os sobreviventes largam na pole-position. Mas, e SE as doenças fizerem parte desta vantagem evolutiva? E SE a evolução da humanidade tal qual a conhecemos hoje devesse em parte às doenças que contraímos ao longo da nossa história?  

A grande sacada do livro de Moalem & Prince se resume a esta frase: “porque você tomaria uma droga que certamente o mataria daqui a quarenta anos? Por ser a única coisa que lhe impediria de morrer amanhã”. Ou seja, determinadas doenças ocorrem na humanidade para poupá-la de um destino pior. Trocando em miúdos, a natureza teria desenvolvido as doenças NÃO para reduzir os números, MAS para que um determinado segmento populacional pudesse passar por provações que, sem elas, indubitavelmente sucumbiriam. Às vezes, a panela é melhor do que a frigideira.  

  • Por exemplo, o diabetes (ver artigo 74) pode ter ajudado a humanidade sobreviver o Período Glacial. Com temperaturas excepcionalmente frias, o aumento de açúcar no sangue faz com que seu ponto de congelamento seja mais baixo. Frio é também diurético, e aumenta ainda mais as taxas de glicose no sangue. Não obstante, não podemos negar que diabetes é uma doença devastadora — um verdadeiro flagelo para a humanidade. O que Moalem & Prince postulam, entretanto, é que a doença, mesmo terrível, pode ter sido uma das razões da nossa espécie não ter sido extinta na Era do Gelo.  

    Não coincidentemente, há evidências de que possamos ter herdado os genes do diabetes dos Neanderthais, já que hoje sabe-se que houve miscigenação entre as espécies.

  • Outro exemplo é a possibilidade da hemocromatose (excesso de ferro no organismo) ter se propagado geneticamente para proteger a população contra a peste negra (bubônica) da Idade Média. Os autores defendem a ideia dos macrófagos (um tipo de leucócito) absorverem bem mais ferro do que o normal em pessoas que sofrem desta doença, tornando-os mais eficazes em eliminar as bactérias causadoras da peste.  

  • Mesmo sendo considerada uma doença devastadora e incapacitante, a anemia falciforme se manifesta de diferente maneiras. Dependendo de alguns “fatores, como a presença de um ou dois genes mutantes para a doença“, ela pode “variar desde pessoas sem nenhum sintoma clínico (traço falciforme) até quadros graves, com comprometimento de múltiplos órgãos.”

    Doença hereditária, a anemia falciforme caracteriza-se pela alteração morfológica dos glóbulos vermelhos do sangue — que ficam parecido com um formato de foice (daí o nome). Essas células têm sua membrana alterada, afeta a hemoglobina (essencial para transportar O2), e causa anemia. Essa condição é mais comum em indivíduos da raça negra. No Brasil, representam cerca de 8% dos negros, mas devido à intensa miscigenação historicamente ocorrida no país, pode ser observada também em pessoas de raça branca ou parda. 

    Entra em cena a malária, que, de acordo com a OMS, “é a doença tropical e parasitária que mais causa problemas sociais e econômicos no mundo, sendo somente suplantada pela” AIDS. “Também conhecida como paludismo, a malária é considerada problema de saúde pública em mais de 90 países, nos quais cerca de 2,4 bilhões de pessoas (40% da população mundial) convivem com os riscos de contágio. Anualmente, sobretudo no Continente Africano, cerca de 500 mil a 300 milhões da população são infectados e, destes, cerca de um milhão morre em consequência da doença.”

    Pois bem. Desde a década de 1940, os cientistas sabem que a anemia falciforme protege seus portadores contra a malária. Sendo uma doença endêmica há milhares de anos em alguns pontos do planeta, particularmente no continente africano, seria possível que a anemia falciforme tivesse se desenvolvido como uma resposta de defesa à malária? “Porque você tomaria uma droga que certamente o mataria daqui a quarenta anos? Por ser a única coisa que lhe impediria de morrer amanhã”.

    Funciona assim: “o protozoário Plasmodium usa uma proteína chamada adesina para chegar à parte externa dos glóbulos vermelhos, de onde chegam às paredes dos vasos sanguíneos. A partir daí, provocam os problemas neurológicos e circulatórios ligados à malária. Nas pessoas que têm anemia falciforme, esse mecanismo é bloqueado. O Plasmodium não acessa a parte externa dos glóbulos vermelhos e, por isso, não há infecção. ‘Todo o sistema de transporte do parasita da malária fica degenerado nessas células’, resume Marek Cyrklaff, pesquisador do Departamento de Doenças Infecciosas da Universidade de Heidelberg, na Alemanha, um dos autores” de um artigo de 2011, que desvendou esses mecanismos fisiológicos.

    Foi justamente durante um curso do IDQUIRO, ANÁLISE CLÍNICA DE EXAMES LABORATORIAIS para Quiropraxistas, no meio de uma discussão sobre anemia falciforme, que este assunto foi trazido à tona por uma participante muito sagaz. E pegou o ministrante (este que vos escreve) de surpresa, que até então nunca tinha ouvido falar deste fato — e se inspirou nele para escrever este artigo. Obrigado, Margareth!

O livro de Moalem & Price  também discorre sobre aumento de colesterol, importância dos micróbios, e outras coisas. Tratam-se, claro, e antes de mais nada, de teorias. Mas que mexem com nossos paradigmas. E uma mexidinha de vez em quando sempre é bom.

Observando sob este prisma, fica mais fácil entender porque a natureza fez com que andássemos eretos, mesmo que isto resultasse em 80% da humanidade tendo dores de coluna. Ora, se o ato de andar ereto aumenta o fluxo sanguíneo para o cérebro, então a evolução escolheu um mal menor (predispor dores de coluna) em prol de um bem maior (desenvolver excepcionalmente o nosso cérebro e possuir maior capacidade cognitiva).  

Partindo desta mesma linha de raciocínio, os intricados processos que nos levam a adquirir uma posição antálgica causada por dores na coluna cervical ou lombar com ou sem irradiação para braço ou perna, não deixam de ser também uma forma de defesa. Melhor andar torto do que ficar prostrado à mercê dos predadores. Mesmo que não seja por uma antalgia; mesmo que seja somente por subluxação ou por vício de postura — não seria mais viável, num ponto de vista evolutivo, lidar com um problema daqui a alguns anos do que morrer pisado por um mamute ou devorado por um tigre dentes-de-sabre? Pois é.

Se Moalem & Price estiverem corretos, enxergar doenças como parte do design da natureza permite um melhor entendimento do seu mecanismo. Ganhamos, portanto, melhor noção de que passos tomar para preveni-las. Desta maneira, fica até mais fácil entender a função dos animais e insetos que consideramos inúteis, como ratos, baratas, moscas e pernilongos. Meros vetores? “Porque você tomaria uma droga que certamente o mataria daqui a quarenta anos? Por ser a única coisa que lhe impediria de morrer amanhã”. Hummmm. Touché!