A primeira frase do título remete a comédia politicamente incorreta que foi um dos maiores arrasa-quarteirões de 1998. Escrita e dirigida pelos irmãos Bobby e Peter Ferrelly (Débi & Lóide, O Rei do Boliche e Eu, Eu Mesmo e Irene), o filme é, para quem curte o gênero escatológico, uma das melhores comédias dos anos 90. Foi o maior hit dos irmãos Ferrelly, que não conseguiram fazer outro filme tão engraçado desde então. Nada é perdoado — psicanálise, homossexualidade, cocainômanos em recuperação, deficientes físicos, casamentos interraciais, cachorros neuróticos, excepcionais, masturbação, e até um “gel de cabelo” pra lá de criativo (pensando melhor, periga até os dois serem cancelados nos dias de hoje).

Peter Ferrely, por incrível que pareça, deu a volta por cima e acabou se consagrando no Oscar de 2018, ganhando duas estatuetas por Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Filme pelo legalzinho Green Book.

Ted Stroehman (Ben Stiller, de Uma Noite no Museu e Entrando numa Fria) é um aspirante a escritor que ainda não encontrou o rumo de sua vida. E mesmo passado 13 anos (o filme é de 1998), não consegue tirar aquela garota perfeita da época do colegial da cabeça — a tal Mary do título (Cameron Diaz, de O Máskara).

Vigorava o ano de 1985 em Rhode Island. Ted, então um adolescente feioso, desengonçado, e com braçadeiras nos dentes, leva um empurrão após desapartar uma briga entre o valentão da escola e Warren, o irmão excepcional da tal Mary, interpretado por W. Earl Brown (que rouba todas as cenas em que aparece). Mary intervém e Ted se apaixona perdidamente por ela naquele instante. Linda, loura, inteligente, meiga, e com uma tara secreta por aparelhos dentários, Mary o convida para o baile de formatura da escola. Ted fica no sétimo céu. Mas não por muito tempo.

O pobre rapaz comete inadvertidamente gafe em cima de gafe ao apanhar Mary em sua casa, e, ainda por cima,  por causa de uma desafortunada situação envolvendo, digamos assim, uma certa parte do seu corpo e um zíper, a noite dos seus sonhos vai por água abaixo. Ted passa 13 anos remoendo isso. Sua vida não vai pra frente até que este caso mal-resolvido tenha um desfecho.

Um detetive particular chamado Pat Healy (Matt Dillon, de Crash – No Limite) é contratado para encontrá-la em Miami, mas se apaixona também por Mary. E não é o único. Todos se apaixonam por Mary. E tentam o filme inteiro a passar a perna um no outro para conseguir conquistá-la. A todo custo. É absurdamente engraçado.

O filme tem direito até a uma cena hilária com pitadas brasileiras: uma batalha entre Ted e o cachorro da vizinha de Mary ao som de Aquarela do Brasil de Ary Barroso (versão de Ray Conniff).

Para tirar Ted da jogada, Healy inventa uma estória de que Mary “engordou 80 quilos nos últimos 13 anos, teve 04 filhos de 03 pais diferentes, e estava confinada a uma cadeira de rodas por causa de uma joanete”. Mas nada disso importa para Ted. Ele realmente ama Mary e quer ajudá-la. Mas como encontrá-la sem Healy?

É aí que entra em cena uma das razões deste artigo ser escrito: o Dr. Bob “Cara-de-Espinha” — um dos amigos de Ted da época do ensino médio e ainda por cima Quiropraxista (viram?). Após Ted ter dado um jeito nas costas carregando um gigantesco armário de seu chefe, ele foi se tratar com seu amigo. Durante o ajustamento, Dr. Bob (ainda cheio de espinhas no rosto após 13 anos) dita para sua assistente que Ted tem “fáscia dolorida à esquerda de L7”.

Como os diletos Quiropraxistas bem sabem, L7 não há entre nós, homo sapiens. “Primatas modernos têm 5 (gibões), 4 (orangutangos, ou 3 0u 4 (chimpanzés e gorilas)“. L7 é coisa de outros mamíferos, como gatos, cachorros e guaixinins (ver Artigo 47). Na espécie humana, só vai até quinta vértebra lombar (salvo uma ocasional transicionalização de S1 em que há uma vértebra que pode ser considerada — funcionalmente frise-se — uma L6). Erro? Ignorância dos irmãos Ferrelly (que escreveram o roteiro)? Ou (hipótese mais provável) foi só para tirar sarro mesmo — colocando uma piada tipo easter egg que só um Quiropraxista perceberia?

Voltando à cena do filme, Dr. Bob lembra então que encontrou Mary, uma renomada ortopedista, numa recente convenção em Las Vegas, em que ele, como Quiropraxista, atendeu. Ainda linda, loura, inteligente e meiga. Magra, solteira e sem filhos. Perfeita?

Apesar de toda a escatologia, os irmãos Farrelly fizeram do filme um estudo sobre obsessão e a idealização feminina. Mary é o protótipo da mulher bem-resolvida, sexy, independente e divertida. Quem não queria tê-la para si? Mas e quanto à Mary? O que ela acha de tudo isso?

O filme reflete, entre uma gargalhada e outra, sobre esta linha tênue que separa o amor da luxúria. Estaria Mary reduzida a esta versão idealizada de mulher? Amá-la de verdade significaria ter que renunciá-la?

Nas comédias de Hollywood, nossa profissão é, muitas vezes, retratada de maneira irreal e caricata (ver Artigos 7, 33, 83 e 98). Mas doloroso mesmo é ver a prática da automanipulação (ver Artigos 65 e 152) ser disseminada na maior sem-vergonhice. Virou clichê o sujeito estalar o próprio pescoço antes de entrar numa briga, numa corrida de carro, ou qualquer outro tipo de ação.

Vejam, por exemplo, a segunda frase do título deste artigo — esta produção da Netflix The Killer (2023) dirigido pelo sempre ótimo David Fincher. Baseado num graphic novel francês, o filme é estrelado pelo alemão Michael Fassbender (nominado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por 12 anos de Escravidão e também, claro, o eterno Magneto dos filmes dos X-Men — o tal assassino do título. O sujeito, como bom assassino de aluguel, é metódico, organizado e específico (o filme nunca revela seu nome verdadeiro).

O enredo é basicamente um “trabalho” que dá errado, e a perseguição do protagonista àqueles que invadiram sua casa e quase mataram sua namorada na tentativa de apagar rastros. É um filme legal, mas tem um problema que (sem trocadilho) dá nos nervos: o assassino se automanipula o tempo todo (a outra razão deste artigo ser escrito): às vezes torcendo o pescoço com as próprias mãos, às vezes alongando a coluna durante uma sessão de iôga . Mas a maioria das vezes é girando o pescoço a esmo. Isso ocorre pelo menos 5 ou 6 vezes no filme. Chega a dar agonia de ver.

Houve uma época em que se fumava muito em filmes. Hoje nem tanto. Seria ótimo se podassem um pouco essa glorificação da automanipulação. Porque dá a impressão que a mensagem que Hollywood quer passar para o populacho é que se automanipular é bom, mas ser ajustado por um Quiropraxista beira o chalartanismo.

Enfim… Assistam ambos os filme e tirem suas conclusões.