NOTA: Para quem não entendeu a referência, o título acima é uma corruptela do livro Comédias da Vida Privada, de Luis Fernando Veríssimo, meu escritor predileto desde a adolescência. Filho do grande Érico Veríssimo (que, junto com Jorge Amado, completa minha tríade preferida). Na verdade esse livro, lançado em 1994, foi um compêndio de outros livros lançado por Luis Fernando Veríssimo na década de 80 — que, por suas vezes, eram compêndios de histórias publicadas anteriormente na revista Domingo, no Jornal do Brasil e no jornal gaúcho Zero Hora. Diferente do pai, que escreveu sagas como O Tempo e o Vento, o filho se especializou em crônicas curtas e muito engraçadas. A obra foi até tema de um seriado de sucesso na Globo entre 1995 e 1997: A Comédia da Vida Privada — que, de fato, era toda baseada nos textos de Luis Fernando Veríssimo.

O relato real que vou narrar abaixo poderia bem ter sido palco da mente privilegiada deste brilhante escritor. Os nomes foram mudados para proteger os envolvidos. E, claro, o que parece comédia para nós não foi nada engraçado para quem vivenciou de fato o ocorrido.

Joilton apareceu no meu consultório uns 15 anos atrás em plena crise de lombalgia com ciatalgia. Depois de preencher uma ficha, pediu para já deitar na maca, pois só assim a dor passava. Começamos então a fazer a anamnese. Perguntei quando começou as dores. Ele respondeu que começou há uns 30 dias. Perguntei como começou. “Quando caí de uma maca de hospital, doutor”. Fiquei curioso e quis saber mais detalhes.

Nunca mais me esqueci desta estória.

Joilton era um cara mulherengo. Todos na cidade pequena onde morava sabiam das suas indiscreções. Era conhecido por varar a noite na farra. Sua esposa sabia, tinha ocasionais crises de ciúme, mas Joilton sempre levava ela no bico, negando tudo veementemente. A pobre coitada aceitava, fingia que acreditava e se resignava.

Eis que um dia nosso “herói” foi se envolver com uma linda e jeitosa morena que trabalhava numa loja de perfumes. Se apaixonou, aparente e perdidamente. Perdeu as estribeiras e o pouco que restava da compostura, discrição e decoro. Saía com a moça pra cima e pra baixo sem se preocupar com os comentários cada vez mais crescentes da sua cidade. Queria até montar um apartamento para a tal teúda e manteúda, como dizia Jorge Amado. Fazia o deleite dos fofoqueiros de plantão. Na sua santa inocência, ainda achava que a esposa nunca iria saber de nada.

Seria só questão de tempo quando a notícia chegasse aos ouvidos da patroa. Eventualmente chegou. Como de outras feitas, ela chorou, se desesperou — mas desta vez não fez crises de ciúmes. Sim, a situação desta vez parecia mais séria do que de costume. Não disse nada ao marido e resolveu fazer algo que nunca havia feito antes: conversar com a outra.

Munida de muita coragem e autocontrole, se dirigiu a tal loja de perfumes. A tal atendente não havia ainda chegado: estava num salão de beleza colocando um aplique de cabelo. “Provavelmente com o dinheiro do safado”, pensou a esposa. Mas esperou pacientemente. Quando a moçoila finalmente chegou, nossa heroína se levantou, polidamente se apresentou, e, diante dos olhos arregalados da outra, começou a expor seus argumentos. “Me chamo Joana, sou esposa de Joilton, casada com ele há 5 anos. Temos dois filhos juntos, um de 5 e outro de 2. Amo muito meu marido. Mas ele não aguenta ver um rabo-de-saia que sai correndo atrás. Tenho sofrido muito. Mas com você as coisas tomaram um rumo diferente. Ele desfila contigo pelos bares da cidade, até já ouvi falar que já te levou em algumas viagens. Joilton parece ter se encantado e perdeu a noção”. A outra retrucou: “o que a senhora quer de mim”?

“De mulher para mulher, lhe peço que pare já com isso. Termine com Joilton. Por favor”. A moça deu uma risada meio petulante e disse: “isso quem decide é Joilton. Eu gosto dele e ele gosta de mim. Não vejo razão para terminar”. Joana respirou fundo. “Bem, eu tentei ser razoável com você. Considere-se avisada”. Calmamente despediu-se e, sem alarde, saiu da loja.

Naquela mesma noite, Joilton saiu para uma noitada inesquecível que culminou num motel. Não passou a noite em casa nem se dignou a dar uma desculpa avisando. Não sabia, no entanto, que um amigo de longa data havia acabado de morrer vitimado por um ataque cardíaco fulminante. Era da mesma idade que Joilton e muito conhecido na cidadezinha.

Assim que soube da tragédia, ele, naturalmente, se despediu da amante, saiu direto do motel e foi para o funeral. Iam realizar o sepultamento quase no final da manhã. Estava Joilton lá, pesaroso, diante do caixão. Seu amigo estava prestes a ser enterrado numa área nobre do cemitério, no topo de uma colina. De lá, viu o carro da sua esposa se aproximando. Sentiu-se reconfortado. Só Joana podia consolá-lo naquele momento. Ela saberia o que dizer, sabia as palavras certas de acalanto. “Que mulher boa e maravilhosa eu tenho”, pensou. Seu coração se encheu de carinho e afeição por aquela que era mãe de seus filhos.

Sem estacionar o carro, Joana buzinou e sorriu. Joilton sorriu pra ela de volta e acenou. Da janela do veículo, ela retribuiu o aceno e, mantendo o sorriso, ergueu o aplique da outra. Ao ver o escalpo, Joilton congelou. “Ela sabe. Meu Deus, ela sabe”, deduziu. Seu mundo caiu. Quando Joana arrancou o carro cantando os pneus, nosso “herói” entrou em pânico, começou a ficar tonto e a passar mal. Desmaiou.

Foi uma comoção no velório. O caixão estava no processo de ser enterrado. As pessoas não sabiam se terminavam de jogar terra ou se acudiam Joilton. Uma ambulância foi chamada e o levaram para o hospital. Lá, constataram ser apenas uma crise de ansiedade. Alarme falso. Mas deixaram-no em observação numa maca tomando soro.

A esposa chegou assustada. “Joilton, o que aconteceu”? O enfermeiro apressou-se em acalmá-la. “Foi só uma crise de ansiedade. Não tem nada de grave. Ele está bem, senhora”. No que ela retrucou: “Nada de grave, é? Safado, descarado, sem-vergonha, filho-da-mãe!! (os expletivos foram amenizados para não ofender os leitores) Peraí que já te dou o teu, miserável”! Agora foi a vez de Joana perder as estribeiras, a compostura, a discrição e o decoro costumazes. Avançou no pescoço de Joilton. O enfermeiro até que tentou desapartar, mas não conseguia arrancar as mãos da dileta companheira da garganta do assustado e desorientado marido.

A confusão foi medonha. Outras pessoas se juntaram ao furdunço tentando tirar a patroa de lá, sem sucesso. Joana estava munida de uma força descomunal — decerto fruto de anos de frustração, desilusão e raiva. A maca não aguentou e caiu, machucando Joilton no processo. O homem gritava de dor, mas não adiantava nada. Eventualmente a situação se acalmou. Joana foi pra casa possessa. Joilton ficou uns 5 dias no hospital morrendo de dor e morrendo mais ainda de medo de ir pra casa.

“E aqui estou, doutor. Você pode dar jeito na minha coluna”?

Me pus a tratá-lo. Com o decorrer das sessões, Joilton melhorou. Até mais cedo que esperado. Ficou fazendo manutenção. Algumas semanas depois, criei coragem e perguntei como ficou o casamento dele depois daquele dia. “Melhor impossível, doutor. Voltei para casa, conversamos muito e estamos melhor do que nunca”. Indaguei sobre a morena. “Nunca mais a vi, doutor. Terminei tudo. Nunca mais faço isso. Nunca mais vou ser infiel a minha esposa. Aprendi minha lição. Descobri que tenho muito amor a essa mulher. E também a minha coluna”.

A vida imita mesmo a arte (que imita também a vida). Este caso, menos extremo, me lembra o enredo do filme Te Amarei Até Te Matar (I Love You to Death, 1990). Baseado numa história real, o filme narra as desventuras de uma mulher que descobre ser traída por seu cronicamente infiel marido. Com a ajuda de alguns sem-noções, ela tenta matar ele pelo menos 4 vezes na mesma noite. Mas o marido insistia em não morrer. Sobreviveu e perdoou a esposa. Se reconciliaram. Pois é.

Até onde me consta, o jovem casal está até hoje junto e feliz. Joilton, aparentemente, tem se mantido fiel e leva Joana aos beijos pros bares e restaurantes da sua agora bucólica cidade. Só os fofoqueiros de plantão se decepcionaram.

Esta epopéia é uma autêntica Comédia da Vida Privada — pelo menos para quem está de fora, né?