Considerem um jovem paciente de, digamos, 25 anos com queixa de dores generalizadas e constantes:
A próxima pergunta do clínico deveria ser: “você tem o hábito de estalar sua própria coluna?” Porque uma substancial maioria do seus pacientes com este perfil tenderá a responder “sim”. Mas o que fazer se a resposta for positiva? Como conscientizar este paciente que se automanipular é ruim, mas a manipulação que você está prestes a fazer não é?
E o que leva algumas pessoas a “estalar” sua própria coluna?
Quase sempre tudo começa com um incômodo persistente. Institivamente o ser humano, contrário de muitos animais, irá bulir na região. E tem alguma lógica: mexer, coçar, massagear uma área dolorida estimula os mecanorreceptores que tendem a inibir os nociceptores. Algumas pessoas se torcem, se retorcem, até que, por fim, chegam ao extremo de sentir aquele barulhinho característico (“trrrreeec”) da cavitação da articulação ou articulações vertebrais. Aí este incômodo persistente é imediatamente aliviado pela secreção de endorfina, um hormônio neurotransmissor, cuja função é inibir a dor. A pessoa se sente livre, leve e solta. Resolvido o problema? Longe disso!
Este tipo de inibição dos nociceptores e este modo de secretar endorfina em pequenas doses tendem a ter vida útil curta. Logo o incômodo aparecerá de novo e logo a pessoa estará novamente torcendo e se retorcendo à procura do alívio que só o estalo causa. O corpo gosta das minissecreções de endorfina e pede mais. Cada vez mais. Fisiologicamente, isso causa diminuição do limiar da dor. A pessoa fica mais suscetível a ela. E o autoestalo se torna uma necessidade cada vez mais frequente. A ponto de ocorrer três, quatro, dez vezes ao dia. E se isso virar uma espécie de tic nervoso, pior ainda.
Geralmente este clínico gosta de calcular a automanipulação durante um período de tempo. Um paciente, por exemplo, que tem mania de se autoestalar dez vezes ao dia, irá fazê-lo 70 vezes por semana, 300 vezes ao mês, 3.650 vezes ao ano — e pode até chegar a impressionante marca de 36.500 vezes em 10 anos! E, acreditem ou não, tem gente que faz isso por décadas!!
Claro, o paciente mais cético pode até se perguntar porque um clínico que trabalha com manipulação vertebral se professaria contra esta prática de se autoestalar? Será que por reserva de mercado? Ciúme profissional? Infelizmente, não. É que automanipulação não é saudável mesmo. E cabe ao Quiropraxista, mais do que só dizer que “faz mal”, explicar o porquê.
A automanipulação é prejudicial por dois motivos: um mecânico e um fisiológico.
O primeiro tem a ver com o processo que nós, Quiropraxistas, chamamos de subluxação vertebral. É um fenômeno articular em que diminuição de movimento (fixação) acarreta efeitos miológicos, histológicos e neurológicos — intimamente interligados entre si. Em nossa coluna, no decorrer dos anos, invariavelmente aparecem certos “vícios” posturais que “naturalmente” se tornam fixações crônicas em determinados segmentos vertebrais. Por exemplo, digamos que um bancário, professor ou contador que fique muito tempo em flexão cervical, desenvolva uma disfunção articular nas vértebras mais afetadas nesta posição: a quinta e a sexta vértebra cervical (C5/C6). Pois bem: um dos sinais da subluxação é cinesiopatologia (neste caso, hipomobilidade, ou diminuição de movimento). Ocorre que a coluna vertebral, em sua infinita sabedoria, compensa com hipermobilidade o segmento superior e o inferior àquele afetado. Trocando em miúdos, para cada vértebra “travada”, há pelo menos duas com excesso de movimento. Nosso bancário, professor ou contador terá, pois, flexibilidade excessiva em C4 e C7. É exatamente nestes dois pontos de instabilidade que, muito provavelmente, ocorre o “estalo” sentido durante a automanipulação.
Percebem aí onde está o problema? O sujeito que tem o hábito de “estalar” sua própria coluna, está, na verdade, e em toda probabilidade, automanipulando o segmento errado. Ou seja, fazendo-o aleatoriamente e sem valor terapêutico algum. Mas seria até bom se fosse só isso. O desgaste produzido por este exagero se foca principalmente nas articulações zigapofiseais das vértebras, e pode, ao longo dos anos, causar hipertrofia. E, depois de algumas décadas, pode até se transformar em um processo de estenose. Literalmente, o canal vertebral se estreita — tanto central como lateralmente. O resultado final é dor, muita dor. Constante e desmedida. Na coluna e nos membros. Isto sem falar na questão da endorfina, como descrito anteriormente.
Nos anais da neurologia, há alguns estudos de caso que correlacionam automanipulação com síndrome de Wallenberg e até com derrame. Mas casos como esses são raros, contestados, e muitas vezes desmentidos, felizmente. Já este site traz à tona alguns pontos interessantes sobre automanipulação e manipulação excessiva — apesar de ser meio tendencioso e alarmista.
O segundo motivo pela qual automanipulação faz mal a saúde é fisiológico. Dor na coluna é sinal que alguma coisa está errada nela. E que precisa ser corrigida. O corpo humano tem seu próprio mecanismo de inibição da dor. Isto tem a ver com secreções de endorfinas e encefalinas que reduzem a propagação do impulso elétrico. Não fosse assim, de acordo com o médico Dráuzio Varela, “a dor de um pequeno corte persistiria enquanto durasse o processo de cicatrização”. Por isso, é de primaz importância sentir dor, e mais ainda, de ter como inibi-la. As pessoas que se automanipulam várias vezes durante o dia interferem com este processo fisiológico normal. Endorfina é produzida mais vezes do que deveria. O corpo passa a querer mais. A dor, gerada repetidamente, faz com que os circuitos neurológicos sofram “alterações eletroquímicas que os tornam hipersensíveis aos estímulos e mais resistentes aos mecanismos inibitórios da dor”, afirma Varela. O corpo desenvolve uma espécie de “memória da dor”. E dor crônica afeta um terço da população mundial. Convém falar um pouco sobre ela.
Dor é um mal necessário. Extremamente importante para nossa sobrevivência, é também fundamental para manter a integridade do nosso organismo. Surge quando há ameaça de danos aos tecidos. Sentí-la é preciso. Assim que um determinado tecido sofre danos, “ocorre liberação local de substâncias químicas, imediatamente detectadas pelas terminações nervosas. Estas disparam um estímulo elétrico que corre até a parte posterior da medula espinal. Nessa região, um grupo especial de neurônios se encarrega de transmiti-lo para o córtex cerebral, área responsável pela cognição. Aí o impulso será percebido, localizado e interpretado”, relata Varela. “Este circuito complexo de fibras nervosas que conduzem o sinal está associado à liberação de mediadores químicos, responsáveis pela sintonia fina do mecanismo da dor”, conclui. E com uma velocidade muito rápida (3 m/s).
Maria da Graça Rodrigues Bérzin, mestre em psicologia clínica e membro da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor, define dor crônica como “aquela que perdura por meses e até anos causando altos níveis de stress emocional que, com o tempo prejudica seriamente o psiquismo e produz consequências desastrosas na vida das pessoas. Causa impacto negativo sobre muitas doenças e sua recuperação clínica. A dor é considerada hoje uma porta de entrada para muitos distúrbios físicos e psicológicos”. Com ela, perpetua-se o processo e prolonga-se além de meras dores agudas.
Vira uma dor sem dono, sem propriedade, sem freio e sem porteira. Uma disalgia — termo cunhado por este que vos escreve.
A dor crônica ocorre quando há desordens do sistema responsável pela percepção quanto da inibição da dor, acaba sendo gerada repetidamente, e estabelece uma espécie de “memória” — muito parecida com nosso processo cognitivo. “As sinapses formam certos padrões de comunicação entre os neurônios de diferentes áreas. (…) Conforme a força e o padrão das sinapses, selecionam o que vai ser esquecido ou guardado por mais tempo”. (VEJA, 13/01/2010). De uma maneira mais reduzida e específica, o processo é semelhante tanto no cérebro quanto nos nervos periféricos. Varela especula que esta “memória da dor” pode estar ligada à “mediadores químicos muito semelhantes aos envolvidos no processo intelectual de memorização”. Impressionante, não? A dor, pois, tem memória!
É triste saber que, apesar de termos alcançado tamanho progresso nas áreas de farmacologia, desenvolvido técnicas diagnósticas moderníssimas, e multiplicado nossos recursos terapêuticos, ainda cresce o contingente de pessoas com dores crônicas. Estima-se, somente no Brasil, que haja 50 milhões delas. Isto engloba gente com dores de coluna e articulações, doenças reumáticas, câncer, degenerações ou inflamações nos órgãos internos.
Dor crônica apresenta conseqüências nefastas para a condição física, psicológica e comportamental. As pessoas que sofrem disso comumente desenvolvem depressão e algum tipo de deficiência psicomotora — até uma “sensação de perda” que guarda pouca relação com o quadro doloroso. Traz à tona sentimentos conflituosos como “angústia, ansiedade, medo, raiva, irritabilidade, tristeza, depressão, desconfiança, mudança na percepção corporal, diminuição de auto-estima e sentimento de rejeição social e profissional. (…) Gera sentimento de desamparo, altera o sistema de crenças, restringe ou impede a atividade física, dificulta o convívio familiar e social, inibe o interesse e a prática sexual, piora a qualidade do sono, agravando a condição geral de saúde, que, por sua vez, compromete a percepção e o manejo da dor”, afirma Bérzin. “Tais sintomas costumam ser interpretados como característicos de patologias psiquiátricas, quando na verdade refletem apenas a semelhança que existe entre a dor e memória”, completa Varela.
Ainda que não exista um efeito terapêutico definido, é importante para o clínico ouvir e procurar entender a pessoa que sente e percebe a dor. Entender seu ciclo vicioso é essencial para definir o tipo de tratamento e manter suas limitações sob perspectiva. Conduzir o paciente nesta viagem de autoconhecimento para lidar com seus sentimentos e atitudes é um importante passo para obter melhor qualidade de vida.
Claro, nem todo mundo com dor crônica tem o hábito de automanipular-se. Mas pode apostar: praticamente todo mundo que se autoestala sofre de dores crônicas.
E mesmo que pareça um paradoxo que a solução para a automanipulação seja precisamente a Quiropraxia, por incrível que pareça, é. Claro, nossa profissão envolve manipulação vertebral. Mas feita de maneira segura, específica, eficaz e com um plano cronológico de tratamento. Em outras palavras, o objetivo da Quiropraxia é manipular certas vértebras para que elas voltem a se movimentar corretamente, se estabilizar e, mais importante, eventualmente não precisar mais serem mexidas. O segredo é saber o momento certo para deixá-las em paz. Sem o problema, teoricamente, o paciente não teria mais razão (física, frise-se) para se autoestalar.
Então, cabe a nós, Quiropraxistas, conscientizar e ajudar no processo de recuperação — até que a tal “memória da dor” não passe de uma vaga lembrança.