Sim, estamos vivendo, como dizia meu saudoso pai, num admirável mundo novo — e não parece ser a distopia literária de Aldous Huxley.
08 de abril de 2024 ficou marcado na história da medicina brasileira como o dia em que foi realizada pela primeira vez nas terras tupiniquins uma cirurgia de coluna auxiliada por um robô! A máquina tem até nome: Mazor. Significa “cura” em hebráico e pronuncia-se “mazór”. Trata-se de um robozinho da Medtronic — uma das líderes mundiais em tecnologia em saúde. É justamente com um de seus braços que ele “segura no local e no ângulo exato um tubo que serve de guia” para o médico poder parafusar a vértebra do paciente. Isso porque a primeira cirurgia de coluna deste tipo feita no Brasil foi uma artrodese.
Para refrescar a memória dos nossos caros Quiros, sinostose é uma fusão congênita de dois ou mais segmentos vertebrais. Anquilose é quando esta fusão se dá por um processo degenerativo (de artrose, por exemplo). E artrodese é uma fusão artificial, cirúrgica, que tenta estabilizar um segmento instável.
A primeira paciente em que foi feito este procedimento com o auxílio de um robô no Brasil foi uma senhorinha de 80 anos que “sente muita dor porque tem uma compressão dos nervos e um escorregamento de vértebra na região lombar”, de acordo com o médico Luciano Miller, cirurgião de coluna do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. “Autor de mais de 130 artigos científicos sobre esse tipo de procedimento, ele opera entre trinta e quarenta vezes por mês no hospital, ao qual se dedica todos os dias”.
Este “escorregamento de vértebra na região lombar” é o que chamamos de espondilolistese — um deslizamento (desvio) de uma vértebra em relação à vértebra abaixo dela. “O desvio anterior (anterolistese) é mais comum do que o desvio posterior (retrolistese)”. Ocorre bastante na região lombar, particularmente em L4 e L5. “Pode ser assintomática ou causar dor ao deambular ou ao permanecer em pé por muito tempo. O tratamento é sintomático e inclui fisioterapia com estabilização lombar”.
Existem cinco tipos de espondilolistese, categorizados de acordo com a etiologia:
Na região lombar, as espondilolisteses, ocorrem entre L3-L4, L4-L5 ou, mais particularmente, L5-S1. De longe os tipos mais comuns são o II (ístmico) e o III (degenerativo). Este último pode ocorrer em pacientes com > 40 anos que têm osteoartrose e é seis vezes mais comum em mulheres do que em homens. Sobrepeso pode exercer alguma influência. E a vértebra afetada é geralmente L4.
Daí o termo “4 F” em inglês: female (mulher), forty (acima dos 40 anos), fat (sobrepeso) e four (L4).
No tipo III (degenerativo), não há defeito ósseo. Mas tende a ser mais instável do que o tipo II. E neste caso específico, a cirurgia foi considerada de acordo com a estabilidade das vértebras. “Se uma delas está instável, logicamente ela perde a capacidade de fazer movimentos da forma normal, o que gera sofrimento e compromete demais a qualidade de vida. (…) Então, antes mesmo de descomprimirmos os nervos, precisamos estabilizar esse segmento com parafusos, conectando uma vértebra à outra, até para evitar que o problema retorne”, justificou o Dr. Miller.
“Segundo ele, uma vértebra da coluna pode ficar assim, mais solta, por algumas razões. Naquele caso, era por uma degeneração causada pelo processo de envelhecimento. ‘Mas o problema também pode ser provocado por uma fratura, quando não apenas a vértebra é quebrada, como há dano nos ligamentos’, acrescentou. ‘E, às vezes, o motivo é um tumor que destruiu um pedaço desse osso, fazendo com que perdesse parte da sustentação’, disse, dando mais um exemplo”.
Neste caso específico, “seriam implantados seis parafusos, três de cada lado de uma vértebra na região lombar”. O ponto exato para instalar cada um deles e qual ângulo (“se inclinado mais para cima ou mais para baixo, mais para um lado ou para outro”) eram variáveis sujeitas a erro humano. “‘Até então, sem essa ajuda, fazíamos tudo a olho nu, contando com imagens de raio X feitas na sala de cirurgia’, explicou o médico. Pouco tempo atrás, é bem verdade, o Einstein também trouxe para o país uma tecnologia em 3-D que melhorou bastante a qualidade do que os cirurgiões de coluna conseguiam enxergar em tempo real. ‘Mesmo assim, havia a probabilidade de pequenos posicionamentos incorretos’, disse o doutor Miller”.
E é aí que Mazor entra. Elimina-se a variável com “risco praticamente inexistente com a mão, ou melhor, com o braço da nova plataforma robótica. (…) dias antes da operação, seu programa analisou as imagens de tomografia daquela senhora” — e, portanto, já havia calculado o tamanho e diâmetro correto de cada um dos parafusos. E, depois de tirar duas imagens de raio-X logo antes da cirurgia (uma em AP e a outra Perfil), o robozinho, durante o procedimento, “fez uma detalhada análise topográfica (…) usando as cinco câmeras que carrega, as quais emitem raios infra-vermelho, iguais aos de um controle remoto.” Desta forma, pôde indicar com precisão a exata localização e o ângulo correto para por os parafusos.
Depois disso, só bastou o robô posicionar “uma espécie de tubo preto por onde o doutor Miller introduziu instrumentos” para então parafusar na trajetõria correta. A próxima etapa seria a descompressão dos nervos. E essa parte o robô não tem capacidade pra fazer. Por enquanto.
Esta pioneira cirurgia foi a culminação de uma temporada de treinamento do Dr. Miller com Mazor em Denver, Colorado, nos Estados Unidos. “(…) a dupla treinou mais um bocado em peças anatômicas, quando Mazor chegou ao Brasil, aterrissando direto no Einstein”. Mas o robozinho não era inexperiente, não. “Sua fama, como especialista em cirurgia de coluna vertebral, já corre o mundo, depois de 14 mil casos de sucesso acumulados em países como Estados Unidos, Canadá e Japão”. A parceria estava bem afiada, então.
“A união de máquina e ser humano é um fator de segurança e benefício ao paciente, opina Mario Lenza, gerente médico de Ortopedia do Einstein. Para ele, “não haverá substituição e, sim, sinergia.” Luciano Miller vê a parceria da mesma forma: “O médico continua sendo o maestro e não vejo possibilidade de isso mudar tão cedo”.
Mas há óbvias vantagens de incluir um robô como Mazor na sala de cirurgia:
Vantagens à parte, importante lembrar que tratamento conservador consegue resolver a vasta maioria de problemas causados, direta ou indiretamente, por anterolisteses. E que, o deslizamento, por si só, não significa muita coisa. O quadro clínico costuma ter mais peso.
Cirurgia deve ser considerada como último fator. Até porque, numa fusão artificial entre duas vértebras, a resultante imobilização tende a acelerar, e muito, o processo degenerativo — chegando até a provocar o possível surgimento de outra pseudoespondilolistese nos segmentos adjacentes. Além disso, numa senhora de 80 anos de idade, então, deve-se ponderar muito os prós e contras de entrar numa sala de operação — mesmo com um robozinho como Mazor auxiliando.
Falando em sinergia, Quiropraxia e reabilitação casam muito bem para tratar este tipo de problema.
De fato, em 28 anos de clínica, nunca encontramos qualquer tipo de listese que não fosse gerenciável.
Ainda assim, não deixa de ser um admirável mundo novo…