Charlie Harper é um autêntico e quintessencial cafajeste bon-vivant. Vive numa linda casa de praia. Não cumpre horário de trabalho. É rico, bonito, charmoso e galanteador — o terror da mulherada. Charlie Harper tem tudo que sempre quis. Está na vida que pediu a Deus. Um belo dia, prestes a chegar às vias-de-fato com uma estonteante mulher, é interrompido pelo seu irmão, Alan, que chegou na linda casa de praia de mala e cuia.
Alan Harper acabou de se separar da mulher e foi expulso de casa. Sem grana e sem lugar para onde ir, foi bater na casa do irmão — com um filho pequeno, ainda por cima. E vira a vida de Charlie de ponta cabeça!
Este é o mote de Two and a half men (Dois Homens e Meio), seriado de imenso sucesso que foi ao ar entre 2003 e 2015 — o primeiro programa no Horário Nobre da TV americana em que um dos personagens principais era um Quiropraxista!
Jon Cryer (coadjuvante de vários filmes adolescentes da década de 80, como A Garota de Rosa-Shocking) faz o papel de Alan Harper, um azarado e recém-divorciado pai de um menino, que, para poder se reestabelecer financeiramente, passa a viver na casa de seu irmão garanhão, interpretado por Charlie Sheen (esse, sim, uma estrela teen da década de 80, mas que fez filmes mais importantes, como Platoon e Wall Street – Poder e Cobiça).
Sheen chegou a ganhar cerca de US$ 800.000 por episódio de Two and a Half Men — fazendo dele o ator de televisão mais bem pago em Hollywood na época.
Nas primeiras temporadas, o enredo basicamente focava na diferença dos irmãos em lidar com mulheres. Alan é tímido e tende a ter relacionamentos longos, mas todos terminam mal. Seu irmão é o oposto: tem facilidade para conquistar as gatas, mas praticamente não segura uma relação. Apesar de ter sua própria clínica de Quiropraxia no San Fernando Valley, e de até sido nomeado Quiropraxista do Ano, Alan dirige um carrinho chinfrim (pelo menos ao padrão Estados Unidos). O seu dinheiro vai todo para a pensão da ex-esposa e para as despesas com seu filho. Vive na casa do irmão praticamente sem pagar aluguel, e ainda tem que aguentar os comentários irônicos e maliciosos acerca de sua profissão (que não são poucos, diga-se).
Apesar de ser meticuloso e organizado (pelo menos nas primeiras temporadas), Alan é extremamente inseguro. Tudo que ele faz acaba dando errado, inclusive as suas tentativas de manipular a coluna. Passa a distinta impressão de ser inepto na sua profissão. Seria bom se o personagem fosse mais proativo. Mas aí já seria esperar demais mudar a fórmula de uma série que rendeu altíssimos índices de audiência. Da terceira ou quarta temporada em diante, o programa começou a explorar mais explicita e hilariamente a incompetência e a flexível ética profissional de Alan:
A série sofreu um hiato entre 2011 e 2013, em consequência do comportamento errático e consequente desligamento de Charles Sheen, que andou se metendo em algumas encrencas, metendo o pau do programa, entrando e saindo de clínicas de reabilitação, e falando coisas aparentemente sem nexo, como em uma famigerada entrevista no programa 20/20:
“Eu estava batendo pedras de sete gramas e dando cabo nelas, porque é assim que eu faço, porque tenho uma velocidade, uma marcha… sou diferente. Tenho uma constituição diferente, tenho um cérebro diferente, tenho um coração diferente. Eu tenho sangue de tigre, cara. Morrer é para tolos, morrer é para amadores.”
Esta expressão “sangue de tigre” assumiu um tom mais sombrio quando, anos mais tarde, o ator revelou estar com AIDS.
Os produtores retomaram Two and a Half Men em 2013. Substituíram Charles Sheen por Ashton Kutcher, que também ganhou uma fortuna por episódio. Mas a cola que unia tudo era mesmo o personagem de Jon Cryer. Nos últimos dois anos, o Alan Harper Quiropraxista foi meio que posto de lado para dar mais espaço a um Alan Harper caricato, sanguessuga e com mais ainda sangue de barata. O filho foi relegado a um papel de quase figurante e as piadas acerca da escarsa inteligência do personagem se intensificaram.
O ator Angus T. Jones, que interpreta o filho Jake, já devidamente convertido em Adventista do Sétimo Dia, deu uma memorável entrevista a um site cristão em novembro de 2012. Jones, como Sheen, meteu o cacete no programa. Disse que era uma “sujeira que contradiz valores morais”; disse que “estava farto de fazer parte (do programa)” e ainda conclamou os fãs a pararem de assistir.
Com certeza alguma instituição ou associação de Quiropraxia deve ter reclamado da maneira como a profissão foi retratada em Two and a Half Men. Mas não foram manchete, não. Nos Estados Unidos existem cerca de 70.000 Quiropraxistas ativos (aqui no Brasil, contamos somente com aproximadamente 1300 profissionais formados). Lá, a profissão é divulgada, reconhecida, e coberta pelos principais planos de saúde. E, como outras profissões, são alvo de chacota — algumas até maldosas e crueis.
Na verdade, Quiropraxia passou pela década de 90 na telinha de maneira negativa até chegar à uma espécie de meio-termo após a virada do milênio.
É claro que em comédias como Quem vai ficar com Mary? e Ed Wood (artigo 83), a profissão é mostrada de uma maneira quase bizarra para arrancar alguns risos. E alguns programas de TV não fazem um bom retrato da Quiropraxia, como em determinados episódios de L.A. Law, American Dad! (artigo 28), House, That 70’s Show, West Wing e Os Simpsons (artigo 7) — ou até de uma forma mais perniciosa mesmo, como em Uma Família da Pesada. Em muitos deles, o profissional é retratado ora como charlatão, ora como um esotérico, ora como um santo milagreiro.
Apesar das bordoadas na profissão em Two and a Half Men, o ator Jon Cryer tomou um tempo para estudar posições de ajustamento — o que ele fazia direitinho e com certa credibilidade. A maca, porém, era claramente de massoterapia.
Apesar dos pesares, pode-se dizer que Quiropraxia tem aparecido cada vez mais (e de maneira positiva) nos filmes e na TV nos últimos anos. Até aqui no Brasil, por incrível que pareça. Mesmo que na TV tupiniquim de alguns anos atrás, um personagem playboyzinho do “folheteen” global Malhação teve o disparate de, após um cursinho de semanas, se autoproclamar “Quiropraxista”, é cada vez mais frequente hoje em dia a participação de algum profissional sério em programas de televisão.
Não temos notícias que um Quiropraxista tenha entrado de novo no Horário Nobre americano. Muito menos no do Brasil. Mas, quem sabe, não seja questão de tempo… Contanto que não seja de novo um do tipo Alan Harper de Two and a Half Men! Aí também tenha santa paciência!!