Nessas décadas de clínica, temos nos deparado com muitos mitos, falácias, e inverdades ditos ou escritos sobre a nossa querida (e ousamos dizer, às vezes maltratada, execrada — mas nunca odiada) coluna vertebral. Enumeramos abaixo algumas das dúvidas mais comuns dos pacientes que atendemos ao longo desses anos:
Obesidade traz problemas de coluna?
O biótipo de quem tem dores de coluna é extremamente variado e democrático. Os gordinhos são somente parte deste quadro demográfico — e não necessariamente apresentam incidência mais alta dessas dores comparados ao resto da população. É claro que perder alguns quilinhos ajudariam a diminuir a carga, mas uma musculatura paravertebral bem tonificada e lordose lombar adequada são mais importantes para manter uma coluna sadia (ver Artigo 126). Em nossa experiência, seu grande inimigo hoje não é o excesso de peso. A famigerada hipolordose, é esta que causa estas dores no cidadão — seja ele ou ela preto ou branco; rico ou pobre; católico ou protestante; jovem ou idoso; gordo ou magro.
Fumar faz mal para a coluna?
Tudo indica que sim. O fumo, além de causar todos estes danos a saúde que a gente já conhece, pode também causar problemas de coluna — especificamente no disco. O processo é simples: nicotina interfere na absorção de vitamina C no organismo. Vitamina C é parte integral na formação de colágeno. Colágeno é a matéria prima do disco intervertebral. Ora, se o colágeno não está sendo reposto normalmente, a discopatia degenerativa ocorre mais cedo e mais freqüente. Hérnia de disco é o resultado direto deste processo (ver Artigo 36). Nosso conselho: melhor parar de fumar. Além das afecções conhecidas, ainda causa problemas de coluna.
Hérnia de disco pode levar alguém para a cadeira de rodas?
Por paraplegia, extremamente improvável. Por dor ou incapacidade, talvez. Muitos pacientes relatam ser esta a frase que alguns colegas mencionam para frisar a gravidade da situação. Apesar de bem-intencionados, acabam por assustá-los. Na verdade, existe uma capacidade muito grande da coluna para se adaptar à uma hérnia de disco, sobretudo lombar. Uma das razões para isso é o fato da medula espinhal propriamente dita terminar no nível de L2. A partir daí ela continua como um feixe de nervos aparentando uma cauda de cavalo (daí o nome científico cauda equina). Este feixe possui uma capacidade (até um certo ponto, diga-se) de se adaptar e se redirecionar em redor de uma hérnia de disco. Isto é um pouco controverso, mas o fato é que 40% da população convive com uma hérnia discal e não se dão conta disso. Por outro lado, é possível que os sintomas associados a uma hérnia de disco tenham passado de um ponto em que não haja retorno. Se além das dores e dormências, o paciente apresentar atrofia muscular com perda de função, é obvio que ele vai acabar fazendo uso de muletas ou até, quem sabe, de cadeira de rodas. E se além disso, apresentar incontinência urinária ou fecal, é definitivamente necessário intervenção cirúrgica o quanto antes. Felizmente, casos extremos como esses são raros.
Qual é a diferença de “ciática” para “ciatalgia”?
Tecnicamente são sinônimos. Mas aqui no Brasil, convencionou-se chamar de “ciatalgia” a dor do membro inferior acima do joelho (coxa posterior), e de “ciática” aquela dor que vai de toda a parte posterior do membro inferior até o pé.
Osteoporose causa dores de coluna?
Por si só, não. Isto, por sinal, é uma simplificação exagerada por parte de alguns colegas quando as pacientes idosas chegam se queixando de dores de coluna. “É a osteoporose”, dizem. Mas não é. Pode gerar um desconforto se a altura das vértebras diminuírem, causando cifose postural acentuada. Ou quando, após alguma queda, acarreta fratura compressiva vertebral. Aí, sim, osteoporose causará dores de coluna. Muitas. Mas a maior parte destas dores erroneamente atribuídas à osteoporose podem ser tratadas, algumas até com relativa facilidade (ver Artigo 89).
Bico-de-papagaio causa dores de coluna?
Na maioria das vezes, não. Causa desconforto, mas não necessariamente dor. Os osteófitos, conhecidos pela alcunha de “bicos-de-papagaio”, são calcificações de ligamentos que não deveriam estar calcificados ou remodelações ósseas que não deveriam ter sido remodeladas — e só se tornam assim na tentativa de estabilizar um determinado segmento. Então, de uma certa maneira, osteófitos são uma espécie de defesa do corpo. No que diz respeito a coluna, a maior parte dos bicos-de-papagaio é localizada na parte ANTERIOR das vértebras, onde NÃO existe raiz nervosa, e portanto, praticamente não causa dor. Agora, se localizados na parte posterior das vértebras, onde há raízes nervosas, aí, podem, sim, causar algum grau de desconforto (ou até dor).
Uma curiosidade: “bico-de-papagaio” é uma terminologia tipicamente brasileira e até bem perfeita para descrever um osteófito. Obviamente não existe tal expressão em inglês. Fazem uso do termo bony spurs (esporas ósseas) popularmente.
Qual a diferença entre “artrite” e “artrose”?
Seriam um a consequência do outro. O sufixo –ite significa inflamação. Ou seja: artrite é inflamação aguda das articulações (sem deformidades ósseas). O sufixo –ose denota condição, circunstância. Ou seja: um processo de degeneração da articulação (que certamente inclui ou incluiu artrite).
No Brasil se convencionou a chamar de “artrite” o processo inflamatório de, entre outros, artrite reumatóide, que é uma doença de origem difusa, e presente num exame de sangue. E “artrose” seria pelo processo degenerativo, progressivo, mecânico, crônico, com alguma deformidade que as articulações inevitavelmente e eventualmente apresentariam no decorrer de uma vida, causado por trauma ou uso excessivo.
Seguindo esta linha de pensamento, a dor da “artrose” é, na maioria das vezes, tolerável. Piora com movimento e melhora (ou até passa) com repouso. Uma crise de “artrite”, no entanto, pode gerar dores intensas. E o mais frustrante, é que piora com repouso, impedindo até a pessoa de dormir. A “artrose” dói em algumas articulações mais suscetíveis ao desgaste do tempo e responde bem a fisioterapia e manipulação. A “artrite” dói em várias articulações, sobretudo dos membros superiores e inferiores e só melhora quando as taxas de reumatismo no sangue voltam ao normal, o que pode ser alcançado com dieta, ou, medicação.
Mas quando chega um paciente se queixando que está com “espinhela caída”, com direito a “chuxadas”, “dormentezas” e “desalentos” — aí quem fica na dúvida é o Quiropraxista, que precisa decifrar esta mensagem cifrada.
Espinhela caída ainda é um mistério para este que vos escreve. De acordo com Argus Vasconcelos de Almeida, Professor Associado do Departamento de Biologia da UFRPE, e autor do estudo ESPINHELA CAÍDA: Referências Históricas e Práticas de Cura Populares, há duas correntes de pensamento no assunto:
“Segundo a medicina popular, a espinhela é um osso pequeno, flexível, ‘parecendo um nervo’, que se encontra no meio do peito, entre o coração e o estômago, e que pode envergar para dentro. Em Portugal diz-se que ‘a espinhela é um ossinho, como o rabo de uma lebre, na boca do estômago’. Quando o indivíduo faz um grande esforço e sente dor no local, significa que está sofrendo de espinhela caída. A doença seria decorrente de esforço repetitivo, como erguer ou carregar objetos excessivamente pesados.”
“Do ponto de vista da biomedicina a ‘espinhela caída’ seria uma anomalia do apêndice xifóide, tendo como resultado uma síndrome muito complexa, com uma variada gama de sintomas, conhecida em vários países. A espinhela não pode ‘cair’, de fato, mas relaxar-se ou curvar-se, por várias causas, inclusive uma tosse violenta, causando reflexos sobre estômago, diafragma, pâncreas, fígado e, portanto gastralgias, vômitos, perturbações respiratórias, pancreáticas, hepáticas e languidez de todo o corpo. No Brasil, a doença é também referida como ‘espinguela caída’, na Bahia, e ‘peito aberto’, em Pernambuco, ou ainda como ‘arca caída’. É uma doença caracterizada por forte dor na boca do estômago, nas costas e pernas, além de um cansaço anormal que acomete o indivíduo, ao submeter-se a esforço físico.”
“Chuxada” parece tratar-se de um regionalismo ouvido, até onde se sabe, na Bahia (“chuchada” e “xuxada” podem muito bem servir de alternativas ortográficas aceitáveis). À primeira vista, o profissional mais incauto pode entender como uma pontada. Não é. “Chuxada” é uma “pontada” com um “repuxo” — quase sempre nos membros inferiores e superiores. Então tem um quê de irradiação.
“Dormenteza” parece que é uma dormência generalizada, mas de leve intensidade.
“Desalento” é onde perdura o mistério. De acordo com o Oxford, é o “estado de quem se mostra sem alento; desânimo, abatimento, esmorecimento”.
Alguns anos antes, o irmão deste escriba (também Quiropraxista — ver Artigo 118), tratou um senhorzinho de idade, trabalhador rural do sertão baiano. A anamnese foi um pouquinho difícil. Veja como foi o diálogo entre os dois:
QUIROPRAXISTA
Bom dia, seu João (nome fictício). O que traz o senhor aqui hoje?
SEU JOÃO
Ô meu filho, é um desalento, um desalento…
QUIROPRAXISTA
Mas o que é um desalento, seu João? O senhor está sentindo isso aonde?
SEU JOÃO
É um desalento, um desalento, meu filho.
QUIROPRAXISTA
Mas onde, seu João?
SEU JOÃO
Nas pernas, meu filho. Um desalento, um desalento…
QUIROPRAXISTA
Então é dormência, seu João? O senhor tá com dor?
SEU JOÃO
É um desalento, um desalento, meu filho. Um desalento, um desalento…
QUIROPRAXISTA
Mas seu João…
SEU JOÃO
Um desalento, um desalento, um desalento…
QUIROPRAXISTA
(puxando os cabelos)
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!!!!!!
Ok, ok, esta última linha de diálogo aí de cima retratando a frustração do Quiropraxista nunca existiu (desculpem, não deu pra resistir). Mas falando sério, toda essa conversa de descobrir o que era mesmo que atormentava seu João tomou bem mais tempo do que deveria.
O Quiropraxista acabou desistindo de tentar saber exatamente o que seria esta sintomatologia (afinal de contas, Einstein já dizia que loucura é fazer as mesmas coisas esperando resultados diferentes). Presumiu que “seu João” tinha algum grau de estenose lombar e que queria expressar com aquela palavra algum estado de esmorecimento — uma fraqueza, talvez? Seguiu o protocolo de tratamento para estenose lombar e seu João melhorou do tal “desalento”.
Bem, depois desta, se acaso o dileto leitor tiver um paciente “despinguelado”, sentindo muitas “chuxadas”, acompanhadas de “dormenteza’ e com algum “desalento”, agora já está por dentro, né?