• Mané Garrincha foi indiscutivelmente um dos maiores jogadores de futebol que o mundo conheceu. Tinha as pernas tortas, e isto o fazia completamente imprevisível na hora de driblar, desconcertando e confundindo seus adversários. O que muita gente não sabe é que Garrincha sofria de intensas dores nos joelhos por causa deste defeito, principalmente na copa de 62. E como a equipe médica tratava dele? Com injeções em cima de injeções de analgésicos para que o craque continuasse jogando. Isto pode ter contribuído para os desgastes que culminaram em sua precoce saída do futebol, que, por sua vez, pode ter tido um efeito na decadência física e psicológica do jogador. Garrincha morreu de cirrose hepática por alcoolismo aos 50 anos de idade em 1983.

  • Ronaldo Nazário só se recuperou de uma rutura do tendão patelar do joelho direito depois de muita fisioterapia. E ganhou a Copa do Mundo de 2002. Se recuperou do mesmo tipo de lesão no joelho esquerdo. Mas até hoje sofre as consequências.

  • Gustavo Kuerten foi obrigado a se aposentar após uma lesão recorrente do quadril que causava dores incapacitantes. A cirurgia não obteve os resultados esperados.

  • Daiane dos Santos já passou por algumas interferências cirúrgicas em ambos os joelhos e tomava anti-inflamatórios para que a dor não atrapalhasse suas apresentações — tal qual Mané Garrincha.

Aliás, todos estes atletas supostamente tomaram (ou ainda tomam) analgésicos para aliviar as dores. Mas não estão sozinhos.

80% da população mundial sofreu ou sofre de algum tipo de dor na coluna vertebral — e parte significativa dela se automedica.

50 milhões de pessoas sofrem de dores crônicas no Brasil. Desses 50 milhões de sofredores, 60% desenvolvem depressão, de acordo com um artigo da revista ÉPOCA (14/03/2005) — 2 décadas atrás, ressalte-se. Boa parte delas envereda pelo caminho da automedicação e do uso excessivo de analgésicos e anti-inflamatórios. Há “mais gente tomando anti-inflamatórios, porque é mais simples do que enfrentar uma terapia, mudar a dieta ou fazer relaxamento”, dizia o saudoso Daniel Salomon, especialista em artrite do Brigham and Women’s Hospital — um dos mais conceituados centros de estudo da dor nos Estados Unidos.

Dados da Organização Mundial de Saúde informa que:

  • “50% de todos os medicamentos são prescritos, dispensados ou usados inadequadamente”;

  • que “a metade dos consumidores compra medicamentos para tratamento de um só dia”;

  • e que “25 a 70% do gasto em saúde nos países em desenvolvimento correspondem a medicamentos” (menos de 15% nos países desenvolvidos).

A situação tem sido e é preocupante — especialmente considerando esta lista publicada na ÉPOCA anos atrás (26/05/2008). Das dez medicações mais vendidas no Brasil nos últimos dez anos (desde 1998, portanto), analgésicos e anti-inflamatórios ocupam pelo menos 05 posições (a 3ª, a 5ª, a 6ª, a 7ª e a 8ª, para ser mais exato) — mais do que muitos remédios infinitamente mais imprescindíveis. Será que isto mudou ao longo dos anos? Este ranking pode também ser reflexo do já mencionado aumento de automedicação e uso excessivo destes tipos de medicamentos?

O que o público ignora é que analgésicos e anti-inflamatórios não são exatamente inofensivos. Há efeitos colaterais. Alguns sérios. Como todos os medicamentos, são feitos para serem consumidos por tempo determinado e com doses preestabelecidas.

Sim, se automedicar definitivamente não é uma prática salutar. Ingerir medicamentos sem prescrição médica pode ser perigoso. E misturar medicações mais ainda. A interação medicamentosa (combinação de diferentes medicamentos), quase nunca avaliada, pode causar inúmeros prejuízos à saúde do paciente. Dr. Antônio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica (SBCM), alerta que “um remédio não-tóxico pode assumir posição contrária quando misturados a outros” (DIÁRIO DE ILHÉUS, 25/08/2007).

Pior ainda, um artigo antigo da VEJA relatou na época em que foi publicado que uma estimativa de “250.000 brasileiros estejam sob o risco de sofrer uma reação alérgica intensa, e a maioria desses episódios é deflagrada por remédios de uso corriqueiros, sobretudo analgésicos e anti-inflamatórios, revela uma pesquisa da associação Brasileira de Alergia e Imunopatologia. O dado chama a atenção num país como o Brasil, onde a automedicação é um hábito cultivado por 60% da população. 50% das crises graves de alergia são causadas por medicamentos, sobretudo analgésicos e anti-inflamatórios”. A Sociedade Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai) “estima que 14 e 16 milhões de brasileiros têm alergia a algum tipo de medicamento. O número representa entre 6% a 7% da população, que é alérgica principalmente a antibióticos e anti-inflamatórios”. Isso mesmo: o consumo excessivo destes medicamentos, além de ser alarmante, é também uma armadilha.

Especialistas chegam ao ponto de desaconselhar o uso de analgésicos mais de duas vezes por mês. O saudoso neurocirurgião Edgard Rafaelli Jr. afirmava que “quanto mais analgésicos se toma, mais a dor pode se perpetuar. O cérebro produz endorfinas para combater a dor, mas, quando se exagera na quantidade de remédios, ele deixa de fabricá-las adeqüadamente e a pessoa pode criar uma cefaléia crônica diária”. O corpo deixa de ser um veículo adequado para sensações prazeirosas. Com passar dos anos, a atenção do organismo fica toda focada no combate ao estímulo doloroso e as sensações agradáveis são “apagadas” do radar (ÉPOCA, 14/03/2005).

“A automedicação é extremamente arriscada e acarreta elevados custos pessoais e coletivos. Ao ingerir um fármaco inadequado, o tratamento correto de uma enfermidade pode ser retardado. O fato interfere na terapêutica apropriada e faz com que a pessoa permaneça mais tempo em tratamento ou piore, o que envolve mais investimentos em medicação, consultas, exames, etc.”, adverte o dr. Jorge Machado Curi, ex-presidente da Associação Paulista de Medicina (DIÁRIO DE ILHÉUS).

Felizmente estão surgindo estudos que alertam para os efeitos potencialmente nocivos do uso indiscriminado e crônico de determinados analgésicos e anti-inflamatórios, usados como principal forma de tratamento da coluna. E as autoridades estão tomando providência:

  • Hoje em dia quase ninguém se lembra do medicamento Prexige da Novartis. É que, em 2008, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) baniu o medicamento na versão para uso contínuo (comprimidos de 100 miligramas) e, na época, suspendeu por 90 dias os comprimidos de 400 miligramas, indicados para dores agudas. A proibição foi decidida após a agência ter detectado um aumento significativo de reações hepáticas (16 casos em janeiro de 2007, 93 em agosto e 211 casos em abril de 2008). De fato, entre julho de 2005 e abril de 2008, foram notificados em vários países 3.585 casos (35% no Brasil) de efeitos adversos relacionados à este medicamento. Há incidências de pancreatite, hemorragias, infarto, insuficiência renal e de problemas hepáticos graves como a hepatite. Houve até mortes (06 no Brasil; 30 no mundo). O Prexige, apesar de ter sido exaustivamente testado num megaestudo envolvendo 18 mil pacientes (número mais que suficiente para o padrão dos estudos clínicos), não correspondeu a expectativa da experiência obtida a partir do uso do remédio por milhões de pessoas. Não obstante, Jorge Safi, diretor da área terapêutica da Novartis, afirma que “o remédio já foi usado por 9,5 milhões de brasileiros e não conseguimos estabelecer nenhuma relação entre o uso do Prexige e os óbitos” (ÉPOCA, 28/07/2008). Dos 35 países consumidores, apenas seis ainda permitiam a venda do Prexige: México, Colômbia, Equador, República Dominicana, Bahamas e Brasil (só na versão de 400 miligramas). O medicamento jamais conseguiu ser aprovado nos Estados Unidos.

    À época que foi lançado, em 2005, o Prexige era considerado um anti-inflamatório específico e com efeitos colaterais supostamente negligíveis. O problema é que virou coqueluche. Além dele e de outros da mesma família serem prescritos rotineiramente por ortopedistas, dentistas e reumatologistas, eram também usados indiscriminadamente por atletas de fim de semana que machucam o joelho ou por pessoas que buscam o alívio rápido para as dores de cabeça. Aprovados pela Anvisa basicamente para tratamento de artrite crônica e dores agudas como as provocadas por cólicas menstruais, acabaram conquistando um público muito maior do que o previsto inicialmente. De fato, o faturamento do Prexige foi de escandalosos R$ 89 milhões em 2007. Com a proibição do medicamento em 2008, o excesso de divulgação pode ter arruinado um produto que seria talvez até potencialmente promissor.

  • Outro medicamento que quase ninguém fala hoje é o Vioxx. Lançado pela Merck & Co. em 1999, e usado “para combater de cólicas menstruais e enxaqueca a dores e inflamações causados pela osteoartrite e pela artrite reumatóide” (além de “grande utilização na odontologia”), foi “receitado para 84 milhões de pessoas. Só em 2003, as vendas mundiais somaram US$ 2,5 bilhões“. Segundo o fabricante, “era mais seguro para o sistema gastrointestinal do que outros AINEs” (Anti-Inflamatórios Não Esteroides). Mas foi retirado do mercado em 2004 pela própria Merck porque aumentava o risco de infarto, derrame, arritmias cardíacas e problemas renais. devido a riscos cardíacos.

  • A FDA, a agência americana de controle de remédios, declarou-se contrária à aprovação do anti-inflamatório Arcoxia — o que praticamente significou o veto à venda do medicamento nos Estados Unidos. “Por 20 votos a 1, um comitê de especialistas da FDA, a agência de controle de remédios, declarou-se contrário à aprovação do antiinflamatório Arcoxia, do laboratório Merck, Sharp & Dohme”. Segundo a agência, a liberação do Arcoxia poderia causar 30.000 infartos por ano nas terras do Tio Sam. Lançado no início dos anos 2000, chegou a ser vendido em 63 países, e liderou no Brasil a lista dos anti-inflamatórios mais prescritos pelos médicos. Indicado para casos de osteoartrite, artrite reumatóide e dores agudas e crônicas, o remédio pode até não ser mais perigoso do que outras classes de anti-inflamatórios à venda — estudos comparativos mostram que todos eles comportam alguns perigos. “Este tipo de remédio só deve ser consumido em casos muitos específicos”, diz o reumatologista Daniel Feldman, professor titular da Universidade Federal de São Paulo (VEJA, 18/04/2007)”. Por pertencer à mesma família do Vioxx, a Anvisa entendeu que poderia provocar o mesmo risco de ataque cardíaco e derrame (veja abaixo), se adiantou e foi logo cancelando o registro da apresentação de 120mg do Arcoxia por considerar que os riscos superam os benefícios. As demais dosagens de 60 mg e 90 mg estão até hoje sendo comercializados com alterações em suas bulas alertando sobre os riscos cardiovasculares.

    O Prexige (cujo princípio ativo é o lumiracoxibe), o Vioxx (rofecoxibe) e a Arcoxia (etoricoxibe) pertencem à classe dos inibidores seletivos da ciclo-oxigenase-2 (COX-2), também conhecidos como “coxibes”. São primos.

    Um parêntese: O cientista inglês John Vane ganhou o Nobel em 1982 por seu trabalho na década de 70 descrevendo a ação do ciclooxigenase (COX). Esta enzima é envolvida no processo inflamatório, Descobriu-se mais tarde que é subdividida em dois tipos: o COX-1 e o COX-2. O primeiro protege o estômago, aumenta a circulação renal e ajuda as plaquetas na coagulação do sangue. O segundo é uma das causas da inflamação. Portanto, teria que ser combatida. Até 1999, os antiinflamatórios atuavam indiscriminadamente contra os dois tipos de enzimas até ser lançado o Movatec da Boehringer Ingelheim, que combate somente o COX-2 (e está até hoje no mercado). A novidade foi festejada na época como um divisor de águas no tratamento da dor — um anti-inflamatório específico com efeitos colaterais quase nulos. E conquistaram um público bem maior do que o inicialmente previsto. No entanto, a alegria durou pouco. O reumatologista José Goldemberg, do Hospital Israelita Albert Einstein acusa que “na teoria estas medicações funcionavam muito bem. Mas os anos de prática mostraram que as promessas de combate à inflamação com efeitos colaterais reduzidos não se cumpriram”.

  • O Celebra da Pfizer parece provocar problemas cardíacos quando consumidos em doses elevadas (acima de 200 miligramas diários). Um estudo, de acordo com o laboratório Pfizer, demonstrou aumento de risco cardiovascular em paciente que ingeriram Celebrex (o Celebra no Brasil) em doses diárias acima de 200 miligramas em comparação com os que consumiram placebo . Esta descoberta foi inesperada. O Celebrex foi o segundo anti-inflamatório da Pfizer a apresentar riscos cardíacos. O primeiro foi o Bextra em 09/11/2005 (A TARDE). A Anvisa andou estudando algumas restrições ao Celebra, mas parece não ter ido muito adiante, não.

    Aliás, o Bextra, que, de acordo com a ÉPOCA de 18/09/2006, já havia sido retirado do mercado em 2005 “por reações dermatológicas graves, embora raras”, também caiu na mira da Anvisa. A agência “suspendeu a comercialização da versão oral em 2005 devido a preocupações sobre riscos cardíacos. A versão injetável (Bextra IM/IV) também foi suspensa, mas a Anvisa liberou novamente a comercialização em 2005. No entanto, a Pfizer comunicou uma falta temporária do Bextra IV (parecoxibe) 40mg em dezembro de 2024, com previsão de normalização em maio de 2025″.

  • Doses exageradas de paracetamol — analgésico popularíssimo como o Tylenol, o Tylex, e o Dorilaxe — são a principal causa de insuficiência hepática nos Estados Unidos, revela um estudo publicado na revista Hepatology. O índice de falência de fígado provocado pelo paracetamol dobrou em seis anos, e isto é provocado pelo consumo excessivo do remédio. A taxa saltou de 28% para 51% em 2003. “O paracetamol é uma droga bastante segura quando consumida na dose de até 2 gramas por dia. Mas em altas doses pode levar à hepatite fulminante”, diz Sérgio Mies, Professor Sênior do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em “transplante de fígado e hipertensão portal” (VEJA, 12/12/2005).

  • Sim, anti-inflamatórios não foram feitos para serem ingeridos como água com açúcar. E isto vale até para aspirinas. Abrão José Cury Jr., médico assistente da Universidade Federal de São Paulo e “supervisor e Líder de clínica médica do Hospital do Coração SP”, alerta que o uso indiscriminado de ácido acetil salicílico (princípio ativo da Aspirina, AAS ou Melhoral) “pode provocar problemas de estômago e hemorragias, além de ser fatal em casos de dengue” (DIÁRIO DE ILHÉUS, 25/08/2007). Drogas mais eficientes e baratas como os diclofenacos (Cataflam e Voltarem), ibuprofeno e naproxeno “também podem provocar efeitos colaterais graves”, e devem ser consumidos com “orientação médica e por períodos curtos”, atesta Fernando Neubarth, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia (ÉPOCA, 28/07/2008).

Correto seria usar tais remédios “por um breve período de tempo, o suficiente para amenizar os momentos de crise”, afirma Troels Jensen, professor de neurologia no Departamento de Medicina Clínica da Aarhus University, fundador do Centro Dinarmaquês de Pesquisas da Dor (The Danish Pain Research Centre) e então presidente da International Association for the Study of Pain / Associação Internacional para o Estudo da Dor (ÉPOCA, 14/03/2005). Mesmo assim, somente “em casos muitos específicos”, diz o reumatologista Daniel Feldman (VEJA, 18/04/2007). Analgésicos e anti-inflamatórios não devem ser tomados como água com açúcar. O efeito, além de ser paliativo, em hipótese nenhuma substitui a boa e velha reabilitação (e, por que não dizer, a Quiropraxia).

Remédios, quaisquer que sejam eles, devem ser consumidos com parcimônia. “Quando consumidos de forma adequada, num período controlado e com indicação médica, dificilmente provocam problemas”, diz o cardiologista Antonio Carlos Chagas, Professor Titular na Faculdade de Medicina do ABC e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia (ver mais sobre este assunto nos artigos 63103161211 e 249 e 256 e 260).

É óbvio que ninguém deseja sentir dor. Mas, no que diz respeito à coluna vertebral e demais problemas de cunho neuromusculoesquelético, o melhor é procurar tratar a causa.