Em alguns artigos passados (ver 63, 103 e 161), já havíamos alertado sobre o uso indiscriminado de medicações, sobretudo dos analgésicos e antiinflamatórios. Auto-medicação virou coisa corriqueira — uma verdadeira mania nacional. Até o próprio diretor corporativo da Novartis, Nelson Mussolini, já havia alertado que “o problema é que muita gente toma esses remédios como se fossem água”. Sem orientação médica e ingeridos em excesso, medicamentos aparentemente inofensivos têm causados sérios problemas de saúde.
Vioxx e Bextra foram retirados do mercado em 2004 e 2005, respectivamente. Segundo artigo publicado no Jama, o Celebra (celecoxibe) “pode causar problemas cardíacos quando consumido em doses elevadas (acima de 200 miligramas/dia)”; o Arcoxia (etoricoxibe) “eleva o risco de ataque cardíaco e derrame” e não é vendido nos Estados Unidos. Resultados semelhantes foram encontrados em estudo do New England Journal of Medicine. Cientistas da Universidade de Newcastle, na Austrália, em um megaestudo envolvendo 1,6 milhão de pessoas, concluíram que o diclofenaco, comercializado no Voltarem e no Cataflan, “aumenta em 40% o risco de morte súbita”. Dr. Ari Timerman, cardiologista e chefe da seção de Emergência do Instituto Dante Pazzanese, em São Paulo, vai mais além: “a venda de diclofenaco sem receita deve ser revista. Em caso de uso crônico, os remédios realmente aumentam a incidência de infarto”. Lembramos, entretanto, aos diletos leitores que estes efeitos são raros, mas potencializados pela auto-medicação e uso indiscriminado. É aí que mora o perigo.
O aumento da oferta dos genéricos nos últimos anos, e o Programa Farmácia Popular criado alguns anos atrás pelo Governo Federal para “ampliar o acesso aos medicamentos para as doenças mais comuns entre os cidadãos”, produziram um inusitado conhecimento bioquímico nos lares brasileiros — até nos grotões mais miseráveis do país.
Considere o documentário Garapa do hoje meio sumido José Padilha (diretor dos 2 Tropa de Elite e do remake Robocop). Realizado em 2005, mas somente lançado quatro anos depois, é um autêntico soco no estômago. O filme acompanha a vida de três famílias cearenses em situação de plena miséria. A insegurança alimentar é gritante (naquela época, 11,5 milhões de pessoas no Brasil, segundo o IBASE — hoje são 20 milhões e, durante a pandemia, 33 milhões). Mesmo garantidas pela então Fome Zero, a comida daquelas famílias só durava 12 dias. Aquele pessoal passava apuros no restante do tempo. Para aliviar a fome dos pequenos, as mães preparam a tal garapa do título. Composto de água e açúcar e ausente de nutrientes, tapeiam o choro das crianças. Como resultados, são desnutridas e doentes.
O que também chocou este que vos escreve foi assistir a cena em que uma das mães pede a filha para ver se a vizinha “tinha paracetamol ou diclofenaco” para baixar a febre da irmãzinha. Considerem, caros leitores: esta gente pobre coitada, miserável, analfabeta, sem eletricidade, sem móveis, sem perspectivas, vivendo numa imundície chocante, SABIA A TERMINOLOGIA QUÍMICA DESTAS MEDICAÇÕES!!! Consequência não-prevista do Programa Farmácia Popular? É pra se pensar, não?
Outra cena perturbadora foi um pai agradecer aos cineastas a medicação que aliviou a dor de dente do filho. Não entrava na cabeça dele a voz em off alertá-lo que a medicação não seria suficiente; que era um paliativo; que os dentes da criança estavam podres; e que seria necessário levá-lo ao dentista. O pai somente retrucava: “mas a dor passou”… Isto, para ele, era suficiente. Como se o futuro não existisse. Só o aqui e o agora.
Mas triste mesmo foi constatar o sucesso com que o axioma “tomou Doril, a dor sumiu” ficou impresso na psique do brasileiro. Tratar a causa não parece mais importante do que tratar o efeito — neste caso, a dor. Mais alarmante é ver isto acontecendo em qualquer esfera social. As famílias do documentário têm a desculpa da ignorância. Mas e a classe média e alta? Isto reflete inclusive nos problemas de coluna, que não deveriam, mas são frequentemente tratados só e somente com medicação.
Mascara-se o efeito e a causa que se dane. Tem que ser assim?