Quando a gente acha que já viu de tudo, aparece mais alguma coisa. E nestas quase 3 décadas de prática clínica, não deixo de me surpreender. Como já dizia o filósofo grego Sócrates, “tudo que sei é que nada sei”. Mas sigo aprendendo.
Joice*, uma cozinheira de 42 anos apareceu na minha clínica no início do ano. Apresentava uma “dor lancinante e latejante” na ponta do dedo mindinho esquerdo — dor esta que apareceu 15 dias antes, sem motivo aparente. A coluna cervical não doía e nem sentia irradiação para o MSE. Achei estranho. Perguntei se acaso um espinho não tivesse entrado nesta ponta de dedo. Ela disse que não. Indaguei se poderia ter se cortado um tempinho atrás. Negou qualquer corte. Disse que um dia começou a doer a ponta do dedo mindinho e ponto final.
Me entregou uma radiografia da mão esquerda. A imagem não apresentava nada fora do comum. Examinei o dedo. Nenhuma protuberância, nenhum inchaço, nenhuma vermelhidão. Apertei a pontinha onde doía. Não elicitei dor. Cocei a cabeça.
Perguntei como havia ouvido falar de mim. Respondeu que seu chefe, dono de pousada, paciente meu, disse que poderia ser alguma coisa na coluna e me indicou. Expliquei a ela que a natureza dos sintomas era muito atípica para ser um problema de coluna — mesmo que, na minha mente, já estivesse elaborando uma lista de hipóteses diagnósticas:
Seja lá como for, fiz alguns testes de força muscular. O aperto de mão da paciente era forte. Os extensores e flexores longos dos dedos estavam normais. Testei também o flexor e extensor longo do polegar, o flexor profundo dos dedos, os músculos tenar/hipotenar. Até os músculos intrínsecos foram testados. Nada. Tudo firme e forte. Cocei de novo a cabeça.
Expliquei novamente que a sintomatologia não condizia com o que eu sabia ser uma compressão de um nervo ou raiz nervosa. Indiquei que fizesse uma radiografia cervical e que marcasse uma consulta com um ortopedista especializado em mãos.
A radiografia foi fácil tirar. Mas os resultados eram relativamente comuns à idade: hipolordose cervical com diminuição de espaço discal em C5/C6 e C6/C7, alguma osteofitose anterior e nenhuma posterior. O próximo passo seria marcar uma ressonância magnética — que, pelo SUS, levaria uma eternidade. Dona Joice conseguiu, porém, marcar uma consulta com o tal ortopedista que ocorreria em 4 meses. Entrementes, como ficaria a dor na ponta do dedo mindinho?
Propus então fazer algumas sessões de Quiropraxia por um tempo determinado. Muito provavelmente nào ajudaria nada, mas, pelo menos ela melhoraria daquela “dorzinha na base do pescoço”. Dona Joice topou.
Meu plano, como qualquer Quiropraxista, foi, além de ajustar a coluna inteira, focar os ajustamentos cervicais em C7 e T1 — que realmente estavam fixos. Ajustei o ombro esquerdo, a ulna esquerda e o osso piramidal do punho esquerdo. Aí aconteceu o inusitado: a paciente começou a melhorar. Sendo assim, concordei em continuar o tratamento.
Dona Joice notou uma diferença acentuada na intensidade, frequência e na natureza da dor do dedo mindinho. Já não latejava mais. Só uma dor leve continuava. Fiquei contente e ela mais ainda. Mas pedi que mantivesse a consulta com o ortopedista.
Um belo dia, recebo uma mensagem dela desmarcando a sessão. Ela nunca falta nem remarca. Me avisou que não viria pois estaria fazendo uma cirurgia. Avisei que esperasse uns 45 dias para marcar de novo. Dito e certo, passados 45 dias, dona Joice marcou sua sessão. Ao perguntar como e onde foi a cirurgia, ela me respondeu que foi na ponta do dedo mindinho. “Ah, você foi então ao ortopedista especialista em mãos. Me conte como foi”.
Heurística é uma coisa engraçada. Trata-se basicamente de estratégias baseadas no que já vimos e observamos sobre o que realmente funciona (ou não): atalhos diagnósticos que invariavelmente nós, clínicos, iremos utilizar baseados em nossas experiências e expectativas (ver artigo 131 e 181). Como Quiropraxista, a gente reconhece de longe um problema de coluna. Se condiciona a seguir um raciocínio sistematizado e acha estranho quando uma determinada sintomatologia não se comporta como tal.
Então eu sabia que aquela dor “lancinante e latejante” na ponta do dedo mindinho era estranha demais para ser coluna. Mas aí dona Joice foi melhorando e eu fui apagando minha reação inicial. De uma certa forma, caí na Armadilha da Heurística. Ocorre que o ortopedista, acostumado a ver dezenas ou centenas de casos assim, sabia exatamente do que se tratava. Usou a heurística para chegar ao diagnóstico. E prontamente encaminhou a paciente à cirurgia.
Era um tumor glômico — neoplasia benigna 75% das vezes encontrada “embaixo da unha (subungueal), nos dedos da mão ou nos dedos do pé” e representa “menos de 2% de todos os tumores de tecidos moles”. É mais comum em mulheres de meia-idade, “na proporção de 7:1“. Costuma ser benigna e relativamente rara — mas podem assumir “características malignas” e “se espalhar para várias partes do corpo”.
Tumores glômicos “são células de músculo liso modificadas” que se originam “de uma estrutura neuromioarterial da pele, o glomo. Essa estrutura é constituída pelo canal Soucquet-Hoyer, cercado por fibras adrenérgicas finas sobrepostas diretamente sobre a superfície exterior do tumor, cuja função é regular a circulação sanguínea e a temperatura corpórea” — ou seja, “controlam a função de termorregulação da derme“. E por isso, “histologicamente, possuem uma arteríola, uma anastomose e uma vênula”.
“Essas lesões não deve ser confundido com paragangliomas, que já foram equivocadamente chamados de tumores do glômicos. Tumores glômicos não surgem a partir de células glômicas, mas os paragangliomas sim.”
Os exames ideais para identificar tumores glômicos são:
Só que no caso de dona Joice, o ortopedista nem pediu os exames. Quando ouviu dela que frio piorava, não teve dúvidas (olha aí a heurística cantando — nem me passou pela cabeça fazer esta pergunta). Foi lá, fez uma rápida excisão cirúrgica com confirmação anatomopatológica. Retirou um nodulozinho de menos de 3 milímetros que estava causando a tal dor “lancinante e latejante”. Nem precisou remover a unha.
Confesso que até aquele momento nunca havia ouvido falar de tumor glômico. À primeira instância, até achei que Dona Joice confundiu o nome. Mas o “pai dos burros” (o google) me confirmou o que era.
Houve até um famoso estudo de caso de uma senhora armênia de 58 anos, que, desde os 18 vinha sentindo estas dores e ninguém conseguia descobrir o que era. Pensaram até tratar-se de Síndrome de Reynaud e neuroma de Morton. Neste ínterim, a mulher sofreu com dores intensas na ponta do dedo indicador direito por 40 anos. O trabalho foi apresentado no “Euroanaesthesia, congresso da Esaic (Sociedade Europeia de Anestesiologia e Cuidados Intensivos), realizado entre os dia 4 e 6 de junho de 2022, em Milão (Itália)”.
Pois é. Nossa cozinheira voltou satisfeita, contente, feliz da vida — e continuou seu tratamento de coluna. Chegou até a me agradecer efusivamente por ter indicado o ortopedista. O único mistério desta história toda é o porquê da paciente ter melhorado da dor do dedo mindinho com os ajustamentos.
Seja lá como for, já eu, me sentindo burro como uma porta, busquei consolo no filósofo grego do começo deste artigo e disse pra mim mesmo: “tudo que sei é que nada sei”.
Mas sigo aprendendo…