Quando todas as soluções são possíveis, devemos então escolher a mais simples. Esta frase, de acordo com Andrew Holtz, jornalista e autor de A ciência médica de House (ver Artigo 111) é conhecida como a Navalha de Occam — um tipo de heurística popular. Não é, contudo, necessariamente aplicável à medicina. Nela, nem sempre a explicação mais simples é a correta (ver também artigo 67 e artigo 62).
Só pra lembrar: para chegar à um diagnóstico adequado, o clínico (seja que ramo da saúde for) se condicionou a seguir um raciocínio sistematizado. Cientes de que toda profissão tem suas “regras gerais” (não somente a medicina), chamamos estas estratégias baseadas no que já vimos e observamos sobre o que realmente funciona (ou não) de heurística. No nosso caso específico, são basicamente atalhos diagnósticos que invariavelmente iremos utilizar baseados em nossas experiências e expectativas (mais sobre heurística no artigo 131).
Desta maneira, podemos realizar nosso trabalho e minimizar a possibilidade de erros que, por mais raros que sejam, acontecem. Entretanto, este mesmo sistema de raciocínio que utilizamos para diagnosticar também representa uma armadilha para o profissional. A heurística beneficia, mas às vezes atrapalha. E pode, sim, nos levar também à cometer erros.
Diagnosticar tendenciosamente um paciente baseado na familiaridade do clínico com o problema em questão, ou pelo fato do paciente pertencer a um grupo de risco, são exemplos de Heurísticas da Disponibilidade e da Representatividade, respectivamente.
Chamamos de Heurística da Disponibilidade quando o clínico prontamente diagnostica algo que lhe é extremamente familiar — pois já viu casos semelhantes incontáveis vezes na sua experiência clínica. Já na Heurística da Representatividade, o clínico, ciente que o paciente pertence a um determinado grupo com altas incidências de certas afecções, o categoriza assim. É basicamente a pressuposição que alguém de determinado grupo compartilha características semelhantes com outras pessoas desse mesmo — por exemplo, pescoço de dentista, DORT de bancário, lombalgia de caminhoneiro.
Só que nem tudo que parece, é. Ao ouvir galopes, podemos presumir que seja por uma manada de cavalos. É raro, mas, às vezes pode ser por uma manada de zebras. Se o bicho tem pé de pato, bico de pato e bota ovo, as chances de ser um pato são enormes. Mas pode também ser um ornitorrinco.
Pois bem: décadas atrás, os economistas Amos Tversky e Daniel Kahneman apresentaram um modelo de como as pessoas tomam decisões, embora muitas vezes não disponham de todos of fatos. Este trabalho, intitulado “Judgement under Uncertainty: Heuristics and Biases” (Julgamento sob incerteza: heurísticas e noções pre-concebidas), muito citado na época, foi publicado na revista Science. Nele, os autores propuseram quase uma dúzias de vieses ou “ilusões cognitivas” que podem afetar o julgamento médico.
É típico da natureza humana enfatizar informações que confirmem nossas crenças e descontar os fatos contraditórios. Ao tentar fazer estimativas rapidamente ou com informações incompletas, nossos pressupostos iniciais muitas vezes influenciam os resultados. Isto se chama Ancoragem. Por exemplo, se um médico pede um exame sanguíneo que corrobore sua suspeita diagnóstica, ele manterá esta suspeita inicial, mesmo que um segundo teste coloque em dúvida o diagnóstico original. Agora, se no primeiro exame o resultado questionasse seu diagnóstico, o médico estaria mais propenso para mudar de opinião. Isto se chama Ajuste.
Nesses tempos de incertezas políticas e radicalizações, bem que a gente precisava de mais ajustes e menos ancoragens… É impressionante como esses dois economistas previram isso. Kehneman levou o Nobel de Economia em 2002 (Tversky já era falecido, e, por isso, não podia levar o prêmio…)
Isso causa um tipo de paradoxo. Apesar da maior facilidade de diagnosticar, a possibilidade de cometer algum erro por causa da heurística é maior num clínico com mais experência do que com um novato. Pode acontecer com qualquer um. E já aconteceu comigo uma ou outra vez. Observem este caso:
Sim, o paciente estava com dois processos acontecendo ao mesmo tempo. Por um lado, uma dor lombar com ciática. Por outro lado, dores relacionadas a esta degeneração no quadril que, mesmo assintomática, refletia naquela regiãozinha da coxa. Simultaneamente. Um problema camuflou o outro.
Este tipo de degeneração unilateral no quadril muitas vezes é causada por necrose avascular. O suprimento sanguíneo da cabeça do fêmur é interrompido (às vezes sem razão aparente) e sofre mudanças morfológicas. Novas rotas de vascularização são criadas, mas o prejuízo está causado porque o corpo tende a não reconhecer a área afetada e a ataca imunologicamente. O resultado é esta artrose avançada. E não infrequentemente, a sintomatologia se localiza na região do joelho.
A boa notícia foi o fechamento do diagnóstico. A má notícia é o prognóstico do problema. Esta pessoa, mais cedo ou mais tarde, terá que considerar prótese. No entanto, se observarmos bem a imagem acima, veremos que ainda há uma articulação lá — mesmo que bem limitada no aspecto superior. Nosso mecânico não usa bengala, jogava bola até o início da crise ciática, e exibiu melhora (limitada, ressalte-se) após termos começado a tratar o quadril diretamento. Neste caso específico, melhor protelar a prótese por enquanto (ver artigo 124).
A heurística acabou se tornando uma armadilha para um clínico com décadas de experiência. Mas a boa comunicação com o paciente pode ter sido a chave para se redimir deste erro (se é que podemos chamá-lo assim). Fosse este caso nos Estados Unidos, teria dado algum quiproquó jurídico? Nem sempre.
Um estudo publicado no Journal of the American Medical Association por Hickson, et. al., observou que “os pacientes atendidos pelos médicos com o maior número de processos judiciais eram o que mais reclamavam que seus médicos não ouviam suas queixas, nem retornavam suas ligações, ou eram arrogantes e pouco respeitosos”. Em outras palavras, com humildade e empatia, o clínico tem possibilidade de encontrar a melhor maneira de resolver o problema que ele, inadvertidamente, causou. O paciente terá melhores chances de entender isso. “Quem é bonzinho não é processado”, reza um velho ditado americano. Ou seja: ouça o que seu paciente tem a dizer. Afinal, apesar de estar sujeito à erros, o médico é, antes de tudo, um humanista. É esta a chave: comunicação.
“Não há maior oportunidade, responsabilidade ou obrigação para um ser humano do que se tornar médico. Ao cuidar dos que sofrem, os médicos precisam de qualificação técnica, conhecimento científico e entendimento humano. Tato, simpatia e compreensão são sentimentos esperados no médico, pois o paciente não é meramente uma coleção de sintomas, sinais, funções desordenadas, órgãos lesionados e emoções perturbadas. (O paciente) é humano, está com medo e tem esperanças de encontrar alívio, ajuda e tranqüilidade” (Harrison’s Principles of Internal Medicine, 16º edição).
Não devemos nunca, como clínicos, perder o foco de tudo isso. E lembrar-mos de primum non noncere (acima de tudo, não fazer mal).
Utilizar, sim, a heurística. Mas questionando-a. Sempre.