O pintor renascentista Leonardo da Vinci (1452-1519) entendia o pé humano como uma obra-prima da engenharia. E é. Com seus 26 ossos, 114 ligamentos e 20 músculos, os pés mantêm o nosso equilíbrio e nos permitem caminhar, correr, saltar, dançar e chutar. Além disso, ajuda a nos proporcionar a postura ereta — algo extremamente raro entre os mamíferos.
No decorrer dos milhares de anos, perdemos a destreza e a flexibilidade dos pés dos nossos “primos” primatas. Neles, não temos mais os polegares opostos. Por isso, não somos mais acrobáticos ao subir e dependurar de uma árvore — uma pequena perda comparada ao imenso ganho que obtivemos em velocidade para caminhar e correr. Descemos das árvores, dominamos a savana africana, e, com nossos pés, ganhamos o resto do mundo.
Já com as mãos, a conversa foi outra. Os polegares opostos fez uma diferença enorme em fabricar ferramentas e foi crucial para nossa evolução como espécie. Perde-se com um, ganha-se com outro, né?
E andar foi o que a gente fez. Estima-se num ser humano ativo que o pé toca o chão mais de 270 milhões de vezes durante a vida.
Caminhar é um processo que envolve três fases:
Mas ainda no paleolítico, o ser humano inventou então o sapato. No começo, sua utilidade era óbvia: proteger os pés de espinhos (ou qualquer objeto afiado), e também do frio. E daí por diante a estética predominou. Algumas culturas, como os chineses, têm verdadeira adoração por pés femininos minúsculos. As desafortunadas que nasceram com pés não tão pequenos assim tinham que se submeter a verdadeiras sessões de tortura para inibir seu crescimento. Eram amarrados. “(…) com uma bandagem de 5 cm. de largura e três metros de comprimento, os quatro dedos menores eram cruelmente curvados para trás e amarrados (…)” para que “se juntassem ao tornozelo. (…) Só o polegar escapava ao castigo” (Desmond Morris, A Mulher Nua, Editora Globo, São Paulo, 2005 – p. 233).
A versão original (e bem mais sangrenta) do conto de fadas Cinderela também refletia esta obsessão. Nela, as irmãs da heroína amputavam seus polegares para que seus pés coubessem no sapatinho de pele que o príncipe tinha nas mãos Aparentemente, a palavra vair (uma pele rara como a zibelina) foi confundida com verre (vidro) e perdeu-se na tradução. As irmãs feias da Disney são uma versão mais light. Felizmente.
Credita-se a Luís XIV, o “Rei Sol” da França (1638 – 1715), ter lançado moda com o salto alto. Pegou muito bem na época. Este aí levanta o calcanhar, mexe com o centro de gravidade do corpo e aumenta a lordose lombar. Os sapatos de bico fino causam o encravamento das unhas. Os dedos são forçados numa posição triangular e se dobram para aliviar a pressão. “Com o passar do tempo, a articulação se afina e calos se formam na ponta dos dedos, dando uma aparência de cabeça de martelo” (Revista Galileu, outubro de 2004). Com uso excessivo, o tendão de aquiles é encurtado e inflamado. Como os pés são impedidos de absorver impacto corretamente, esta “função é transferida aos joelhos, que, além disso, são obrigados a trabalhar flexionados. Tudo isso sobrecarrega a patela (rótula) e pode causar artrite (…)”. Isto sem falar no aumento de entorses causadas pela falta de estabilidade. Perturba o equilíbrio do corpo, provoca dores nas pernas, nas costas a até dores de cabeça. Mas nunca caiu em desuso.
Ainda assim, é de surpreender que qualquer mulher usasse o salto alto hoje em dia. Mas usam. Talvez porque seja estiloso. Talvez porque seja sofisticado. Talvez porque seja bonito. Talvez porque seja sexy. Talvez porque seja socialmente aceitável — ou até preferível em ambientes muitas vezes dominado por uma cultura predominantemente masculina. Ou talvez seja porque elas gostam mesmo e ponto final.
“No século XVII, o principal artifício para exagerar o traseiro feminino eram os sapatos de salto alto. Este tipo de calçado distorcia o andar da mulher de tal maneira que as nádegas eram empurradas para cima e para fora e obrigadas a ondular mais ainda” (MORRIS). Marilyn Monroe realçava ainda mais seu famoso gingado usando sapatos de salto alto que tinham um salto ligeiramente menor do que o outro (ver artigo 112).
Seja lá o que for, os sapatos de salto alto parece que vieram mesmo pra ficar. Não obstante, o sexo feminino responde por 80% das cirurgias de pés realizadas no mundo todo. Muito sacrifício para tanto prejuízo. Como os cigarros, deveriam vir com fotos dos pés das vítimas do seu uso excessivo. Um estudo conduzido pela periódico American Journal of Preventive Medicine comprovou que, pelo menos com o fumo, as fotos são eficazes para repensar o caso…
Delírios à parte, uma coisa é certa: mulher sofre. Dos séculos usando espartilhos apertadíssimos só para moldar a cintura e ressaltar os seios. Das cirurgias plásticas para fins puramente estéticos. Da tortura sistemática da depilação. E do salto alto.
A Sociedade Americana de Ortopedia aponta-o como o vilão responsável por gastos de aproximadamente US$ 3 bilhões anuais com cirurgias nos pés. E das quase 800.000 operações anuais para corrigir algum problema nos pés, 90% são mulheres. No entanto, uma pesquisa do Instituto Gallup nos Estados Unidos (o IBGE de lá) afirma que 37% das mulheres entrevistadas teimariam em usar sapatos de salto alto — por mais doloridos ou desconfortáveis que sejam. Ora, se andamos uma média de 10.000 passos por dia (de acordo com o American Orthopedic Foot and Ankle Society), este problema começa a assumir proporções endêmicas.
O fato é que o salto alto agride as articulações do pé, causa danos nos joelhos, e afeta até a coluna. Se empina o bumbum é por aumento excessivo da lordose lombar. Se arrebita o peito é por mudança do centro de gravidade impulsionando a coluna para a frente. E este “reposicionamento” biomecânico pode causar aumento da pressão intradiscal e ser um dos fatores para o desenvolvimento de uma hérnia de disco. A pior parte desta explicação é quebrar o encanto e a magia de ver uma mulher andando de salto alto. Mas vamos em frente…
Qualquer salto alto com mais de 5 centímetros aumenta a carga no peito do pé 6 vezes mais do que um modesto salto de 2 centímetros. E a pressão nesta área sofre um aumento de 76%. Usar salto alto diariamente (45 a 60 horas semanais) altera a marcha, encurta a panturrilha (a popular “batata”) e o tendão de Aquiles, e alonga excessivamente a musculatura da frente da perna.
Este desequilíbrio muscular faz com que a musculatura da coxa tenha que trabalhar mais. E impõe mais carga no joelho e no tendão da rótula. Andar de salto alto aumenta a pressão dentro desta articulação em até 26%, comparado com andar descalço. No decorrer dos anos, isto pode evoluir para uma osteoartrose, culminando num belo quadro de condromalácia patelar.
Casey Kerrigan, médica pesquisadora da Universidade Harvard, conduziu um estudo que especula “o uso de salto alto (…) ser uma das razões” por osteoartrose ser duas vezes mais comum em mulheres do que nos homens.
Havendo exageros à parte, podemos, sem sombra de dúvida, afirmar que, ao decorrer dos anos, o uso de salto alto (45 a 60 horas por semana) pode causar deformidades nos dedos dos pés, joanetes, encurtamento do tendão de Aquiles, dores no calcanhar, esporão calcâneo, fascite plantar (ver artigo 130), unhas encravadas, dores no arco anterior dos pés, pinçamento dos nervos plantares, metatarsalgia (dores no peito do pé), dores no joelho (condromalácia patelar) e na coluna (aumento excessivo da lordose lombar). Ou seja, definitivamente danosa para as articulações. Concluímos então:
Certo?
Ah, mas aí temos o outro lado do stiletto.
Por incrível que pareça, o potencial do salto alto de causar danos não é unanimidade na comunidade científica. Existe estudos que indicam melhora na circulação e até na capacidade de provocar (pasmem!) orgasmos!!
Calma lá. Vamos por partes.
Há alguns estudos que atestam, sim, o efeito benéfico do salto alto na saúde da mulher. Alguns anos atrás, uma pesquisa na Unicamp desenvolvida pelo cirurgião vascular João Potério Filho, constatou que o uso de salto alto (de 7 a 10 cm.) diminui a pressão sanguínea nas veias das pernas. Isto facilita a circulação do sangue e pode até melhorar as varizes. Em teoria, impediria o inchaço das pernas. A pesquisa chega ao extremo de afirmar que o salto alto ajudaria até a corrigir postura!
Mais pitoresco é o resultado de outra pesquisa alguns anos depois da do Dr. Potério, conduzida pela urologista Maria Cerruto da Universidade de Verona. O estudo, realizado com 66 mulheres com menos de 50 anos e que não haviam ainda atingido a menopausa, afirma, que o uso de salto de até 7 centímetros pode relaxar e fortalecer os músculos da região pélvica. Baseado nisso, a pesquisadora conclui que o salto alto pode até facilitar o orgasmo. Não deixa de ser uma noção interessante…
Circulação e orgasmos à parte, é inconteste que o salto alto agride as articulações do pé, causa danos no joelho, e afeta até a coluna. A vasta maioria dos estudos correlaciona o uso do salto alto com mudanças do centro de gravidade e faz com que a concentração de peso fique restrita aos dedos do pé.
A consequente dificuldade de flexão da planta do pé pode, sim, ter o potencial de prejudicar a circulação e potencializar a tendência à varizes. Encurta a panturrilha e alonga excessivamente a musculatura anterior da perna. Algumas mulheres habituadas ao salto alto sentem isso na pele quando tentam usar tênis ou sapatos sem salto. O desconforto muscular é enorme.
Dito isso, reiteramos novamente que o sapato de salto alto está aqui para ficar. E nos resignamos ao fato de que problemas articulares não vão necessariamente impedir as pessoas de usarem. Mas há maneiras de minimizar os danos. É o que afirma o médico ortopedista Fábio Ravaglia, membro do corpo clínico externo do Hospital Albert Einstein, então presidente do Instituto Ortopedia & Saúde (ONG), e primeiro brasileiro a ser aceito pelo programa do prestigiado e concorrido Royal College of Surgeons of England.
Dr. Ravaglia aconselha:
Assim, há subterfúgios que as mulheres podem ter para esticar um pouquinho o usufruto do salto alto. O importante é limitar o uso. Desta maneira, preserva-se a moda com menor detrimento para o corpo.
Porque, venhamos e convenhamos, o tal calçado é elegante. É bonito. É sofisticado. Mas, não esqueçamos, pode ser também nocivo para os pés e sobretudo para a coluna vertebral.
E lembrando que nada em excesso faz bem. Nem mesmo água.