Quando havia acabado de completar 17 anos (lá pelos idos de 1987), fiz com meu irmão uma louca viagem de 40 dias para o sudeste do Brasil — a primeira vez que estivemos no Sul Maravilha! Visitamos a cidade de São Paulo, São José dos Campos, Santo Antônio dos Pinhais, Campos de Jordão e as cidades litorâneas de Ubatuba e Caraguatatuba. Andamos também pelo Rio de Janeiro, Teresópolis, Petrópolis e Nova Friburgo.
E foi nesta última que vivi o meu próprio e pessoal “Caminho de Santiago” — o Pico do Caledônia. Trata-se de uma das maiores montanhas do estado do Rio, com 2.255 metros de altitude. Nos dias mais claros, pode-se até enxergar a Baía da Guanabara e parte da Cidade Maravilhosa. Esta elevação foi também palco de alguns acidentes de avião.
Saindo do centro de Nova Friburgo, pega-se um ônibus para o bairro Cascatinha. De lá, anda-se por mais de quatro horas e meia até chegar ao topo da montanha. Na época, era uma estrada simpática e pavimentada. Fiz o percurso descalço, sem água e somente com o dinheiro do ônibus de volta. Ah! Os arroubos da juventude…
O resultado? Uma experiência espiritual fantástica e uma bela dor nos solados dos pés que durou dias. Foi uma fascite plantar autolimitante — minha primeira experência de algumas que tive com ela ao longo de minha vida.
Na segunda vez que a tal fascite apareceu, foi como consequência direta de ter pisado com o calcanhar numa pedrinha afiada. Durou meses. A terceira (e, esperançosamente, última) veio sem motivo uma década depois, mas passou durante a pandemia, quando quase não dirigia. Uma radiografia tirada ainda na década de 90 já acusava esporão do calcâneo quando eu nem sabia direito o que era fascite plantar.
Mas voltando à primeira ocorrência, neste caso específico houve uma agressão contínua na sola dos pés: subir o Pico do Caledônia por uma estrada de pedra e descalço, ainda por cima. E os sintomas cessaram com algum tempo. Só que, infelizmente, nem todos os casos são tão simples assim. Existem pessoas que sentem dores crônicas na base do calcanhar e no arco dos pés, principalmente ao levantarem-se da cama ou mesmo após um período de repouso. A dor é intensa nas primeiras passadas, mas melhora conforme a movimentação. Ocorre diariamente e é reincidente. Este tipo de sintomatologia é característico — quase patognomônico.
Para entender o que é, de fato, fascite plantar, necessita-se entender a sola dos nossos pés — que nada mais é do que uma faixa apertada de tecido conjuntivo fibroso denso (chamado de fáscia). Age como uma espécie de viga de sustentação para manter o arco longitudinal medial. Algumas pessoas, com este arco arriado, têm os pés chatos (mas não necessariamente sofrem de fascite plantar, ressalte-se).
Pois é. Esta aponeurose se prende do calcâneo à base dos dedos do pé. O tendão de Aquiles também se insere no calcâneo. Se houver tensão no tendão, vai haver uma redistribuição de carga ao longo da fáscia. Isto causa uma desordem nas suas fibras. E, com o decorrer do tempo, podem resultar num processo inflamatório, com fibrose e tudo mais.
Causas? Há várias, como falta de flexibilidade do arco longitudinal da fáscia plantar (daí a predileção pela meia-idade), rigidez das musculaturas da panturrilha (causadas, em grande parte, pelo uso de salto alto, por exemplo — ver artigo 127), uso de tênis de má qualidade para correr ou até de sapatos inadequados no dia-a-dia. Há correlações com obesidade, pronação excessiva do pé, balé e exercícios aeróbicos. Mas é bem mais comum, obviamente, entre corredores.
Quando a tuberosidade medial do calcâneo sofre forças de tração anormais e exacerbadas por microtraumatismos repetitivos, a inflamação crônica resultante causará uma formação óssea reativa — o tão famigerado, temido e falado esporão. Esse aí nada mais é do que uma tentativa do corpo de tentar estabilizar uma área problemática. Então, pode-se dizer que o esporão do calcanhar é um tipo de mecanismo de defesa do corpo, ainda que de forma negativa. Tal e qual o bico de papagaio, na coluna vertebral.
O esporão pode doer, ou não. Estima-se que 50% das pessoas que sofrem de fascite plantar efetivamente apresentem também esporão do calcâneo, que pode também aparecer até em pessoas sem nenhum sintoma de dor nas solas dos pés. Ou seja, o esporão é endêmico em aproximadamente 10% da população, tendo ela fascite plantar ou não. É curioso, porque esta afecção também ocorre também em mais ou menos 10% da população mundial — mas não necessariamente nos 10% do que têm esporão.
Daí o título deste artigo, uma brincadeira com o clássico do Cinema Novo de Glauber Rocha O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969): do esporão que é tido como vilão (malvado) e da fascite que é tida como persistente (guerreira). Entre aspas.
Tratamento fisioterápico tradicional tende a ser muito eficaz. Alongamento da panturrilha e massagens com bola de tênis nas solas dos pés, o uso de gelo e compressas de água quente costumam obter bons resultados. Dentro da Quiropraxia, manipulações do calcâneo, talo, joelho e bacia aceleram o processo de melhora.
Nos últimos anos, vem se popularizando o uso de “ondas de choques” por ultrassom para tratar a fascite plantar. Não deixa de ser uma espécie de litotripsia e, apesar de ser mais frequentemente utilizada para o tratamento de cálculos renais, parece não ser “capaz de destruir proeminências ósseas como o esporão de calcâneo“. Contudo, o ultrassom terapêutico desinflama e ajuda a diminuir o desconforto.
E tudo vale para ficar sem dor, né?