Além da escolha óbvia de Selton Mello, os meninos de ouro do cinema nacional foram por algum tempo os baianos (e soteropolitanos) João Miguel (Estômago e Cinema, Aspirina e Urubus); Wagner Moura (a franquia Tropa de Elite, O Homem do Futuro e os internacionais Narcos, Elysium e Guerra Civil); e Lázaro Ramos (O Homem que Copiava, Cidade Baixa e a franquia Ó Paí, Ó).
Aliás, Selton Mello está cotado para uma indicação ao Oscar™ de Melhor Ator Coadjuvante no filme Ainda Estou Aqui (2024). Torçamos por ele e por Fernanda Torres. Vai ser bem merecido se conseguirem.
Meus conterrâneos têm sido sinônimos de bons filmes. Talentosos, até em novelas eles se dão bem:
Pois é. Amanhã Nunca Mais (2011), muito elogiado pela crítica, foi o primeiro (e aparentemente o único) longa-metragem do “videoartista, curador de exposições, roteirista e diretor Tadeu Jungle”. O filme retrata a vida patética de Walter — interpretado justamente por Lázaro Ramos.
O rapaz, apesar de ser médico anestesista, é um fraco, um pulha, um completo pusilânime. Tem uma incapacidade doentia de dizer não. Na praia, um cara paquera sua mulher descaradamente e nosso herói nada faz. No hospital onde trabalha, vivem, por causa de sua cor, confundindo-o com um enfermeiro. Seu chefe pede para ele estacionar o carro. “Você vai adorar”, diz, como se Walter não pudesse comprar um. Seu colega e suposto amigo (Milhem Cortaz) vive lhe pedindo favores e não faz nenhum em troca.
Em suma: Walter é um bosta mesmo. Lázaro Ramos interpreta o personagem de ombros recurvados, com a voz débil, em constante estado de defesa e com o infeliz hábito de estalar o pescoço a todo o instante (este que vos escreve observou pelo menos cinco ou seis vezes num filme de apenas 77 minutos). Chega a ser irônico um profissional que se especializa em analgesia ter que se automanipular em busca de pequenas secreções de endorfina (ver Artigos 65 e 152). O que um tique nervoso não faz…
Engraçado como este pessoal da indústria do entretenimento acha bonito o sujeito ficar estalando o pescoço para relaxar e até para entrar numa briga. Até um matador profissional no ótimo The Killer (ver Artigo 195) curtia uma automanipulação enquanto se concentrava no seu próximo alvo.
Voltando ao filme em questão, um belo dia, após ouvir o monólogo do amigo sobre as maravilhas de fazer sexo com mulheres obesas e/ou geriátricas (o melhor diálogo do filme), e de não conseguir entubar um paciente, a emasculação de Walter atingiu seu ápice. Liga para a patroa em busca de conforto e ouve-a reclamar de não ter tempo de pegar um bolo no outro lado da cidade para o aniversário da filha. Walter então oferece para ir buscar a iguaria. É uma ótima chance de agradar a esposa, e, quem sabe, mais tarde, fazer um amorzinho “ixperto”. Afinal de contas, já são três meses de abstinência. E ainda por cima com um ricardão azarando por aí.
Então, nosso herói larga tudo e se manda pelo trânsito caótico e engarrafado de São Paulo. E engarrafamento é o que ele encontra. O tempo vai passando, Walter vai ficando cada vez mais agoniado, e, quando finalmente se safa do congestionamento, as coisas começam a realmente dar errado.
Logo de primeira, atropela um motociclista. Depois, sem saber, dá carona a um travesti. O carro falta gasolina. Começa a chover torrencialmente. Encontra, por acaso, uma alma caridosa, uma antiga amiga de infância (Maria Luisa Mendonça) que se revela uma louca varrida. A mulher sacaneia a esposa de Walter por celular, obriga-o a ir a uma festa judia, e depois, bêbada, perde as estribeiras quando ele engrossa para ir embora. O bolo ele acaba pegando, mas chegar em casa parece cada vez mais longe e complicado. O quase-corneado Walter decepcionará sua mulher mais uma vez?
O enredo lembra Depois de Horas (After Hours, 1985), de Martin Scorcese, onde Paul Hackett (Griffin Dunne), após pegar um táxi e ir para o outro lado de New York, perde todo o seu dinheiro, se envolve com uma garota meio nebulosa, com várias outras, e se vê numa situação que parece só ter personagens caricatos e exagerados, que farão dar errado uma sucessão de eventos — e esta crescente maré de má sorte inferniza a vida de Paul. Soa familiar?
Na época, o já extinto site oficial do filme descreveu Walter como “um pouco do Brasil contemporâneo, anestesiado, sem forças para romper com a rotina e o destino. Até que um dia, ele resolve se levantar e fazer o que tem que ser feito rumo a uma vida mais esperançosa”.
A jornada de autodescoberta de um anestesista anestesiado e afeito a se automanipular num filme hoje meio esquecido, mas que vale a pena assistir.