O filme Menina de Ouro (2004) conta a estória de Maggie Fitzgerald, uma garçonete decidida a ser boxeadora aos 31 anos, e de Frankie Dunn, seu inicialmente cético treinador, interpretado por Clint Eastwood, que também é o diretor. A obra é um manifesto a favor da eutanásia. Acabou abocanhando quatro Oscars: o de Melhor Filme, Diretor, Melhor Ator Coadjuvante e Melhor Atriz para Hillary Swank.
E o que este filme tem a ver com o nervo ciático? Esperem e verão.
Na última luta, depois de levar a pior com os golpes desleais da oponente “Blue Bear”, Frankie manda Maggie, quando o juiz não estiver olhando, socar a nádega da adversária com o intuito de atingir o nervo ciático. Este golpe baixo causa dores intensas em “Blue Bear”. Também pudera!
O ciático é o nervo periférico mais longo e o mais grosso do corpo humano. Seu diâmetro mede aproximadamente dois centímetros. E a dor que ele pode provocar é proporcional ao seu tamanho. Mas há alguns fatos sobre este nervo que a muita gente desconhece.
Por exemplo, sabiam que existem dentro de nós não só um, mas DOIS nervos ciáticos em cada lado? O menos famoso, o ciático menor, enerva os músculos da região glútea. E sabiam que o nosso nervo ciático maior é, na verdade, composto de dois nervos unidos por uma bainha fascial? E que, pelo menos até o joelho, agem como se fossem um só?
A palavra “ciático” tem um grande impacto no paciente. Até onde vai os anos de clínica deste que vos escreve, todo paciente já atendido com este problema entrou no consultório com o prévio entendimento que dores no tal “asiático” se originam da coluna e “descem” da coluna a nádega, coxa ou perna.
Incidentalmente, a palavra parece remontar do século 14, do latin medieval sciatica, como em sciatica passio “doença ciática” — uma corruptela do latin isquiadicus que significa “da dor no quadril”. Isquiadicus vem, por sua vez, do grego iskhiadikos (ισχιαδικός), derivado da palavra iskhias (genitivo iskhiados) que significa “dor no quadril” (que, por sua vez, derivou da palavra iskhion “articulação do quadril”. Engraçado como as palavras vão mudando de significado ao decorrer dos séculos. A palavra que exprime dor na perna hoje era usada pra referir a dor no quadril antigamente.
Alguns autores, mesmo atualmente, ainda usam o termo “nervo isquiádico” ao invés do mais popular “nervo ciático”. É uma terminologia mais purista, presume-se.
O nervo ciático origina-se das raízes nervosas de L4, L5, S1, S2 (e às vezes, S3). Qualquer pinçamento dos segmentos vertebrais eqüivalentes, seja a causa mecânica ou química, pode provocar dores neste como em qualquer nervo. Se uma destas vértebras estiver subluxada, um período de tratamento com manipulações ou ajustes específicos vai, provável e eventualmente, causar alívio.
Estas e outras raízes nervosas formam o plexo sacral. O ciático é um dos nervos resultantes deste emaranhado — de longe o mais famoso (ou famigerado, dependendo do ponto de vista). Dos plexos lombar e sacral, originam-se vários nervos que descem para os membros inferiores, como o femoral e o obturador, entre outros. Mas é o ciático, como dito acima, que a população associa com as dores nas pernas. O problema é que nem todas as dores nas pernas têm a ver com o ciático, que é formado, novamente, pela união de dois nervos: o peroneal comum (também chamado de nervo fibular, popliteal externo ou lateral); e o tibial (também chamado de nervo popliteal interno ou medial, ou ainda responde pela alcunha de tibial posterior). Os nomes variam de acordo com os autores.
O nervo ciático sai da cavidade pélvica por uma espécie de abertura chamada de incisura isquiática maior, que fica entre os músculos piriforme e gêmeo superior. Neste ponto, contração muscular pode “espremer” o ciático e inflamá-lo. Causa dores na nádega com irradiação para a perna – a síndrome do piriforme (vide artigo 17). É uma lesão muito comum nas academias, principalmente nas pessoas que buscam incessantemente um bumbum sarado.
O ciático, então, entra pela região glútea, passa entre a tuberosidade isquiática (aquele ossinho do bumbum que sentimos quando sentamos) e o trocânter maior do fêmur. Aí, entra embaixo do músculo quadrado femoral e percorre a coxa entre os músculos isquiotibiais e o adutor magno. A contração destes músculos pode também inflamar violentamente o ciático. Esta neurite resultante chega a impedir a pessoa de dar um passo sem sentir dores excruciantes.
Logo antes de passar pela fossa poplítea (a covinha atrás do joelho), nosso nervo subdivide-se em dois, já supracitados. As dores de origem ciática propriamente dita têm que irradiar até a batata da perna (panturrilha) ou até o pé. Dores na coxa posterior — onde o ciático ainda é a junção de dois nervos — condicionou-se nos meios médicos aqui no Brasil a ser chamada de ciatalgia (mesmo que os dois termos sejam, tecnicamente, sinônimos).
A odissséia continua, mesmo depois do ciático desmembrar-se no peroneal comum e no tibial. E agora, a grandiosa e intrigante conclusão…
O nervo tibial é mais longo do que o nervo peroneal comum e segue rente à artéria tibial. Enerva a sola do pé, a parte de dentro (medial) da canela, o tendão de aquiles e a batata da perna. Faz um “sanduíche” com os músculos poplíteo e sóleo, portanto, pode inflamar-se com a contratura excessiva destes e causar dores na canela.
O nervo peroneal comum (tal qual o tibial) se separa do ciático logo antes de passar pela fossa poplítea (a covinha atrás do joelho). É responsável pela enervação dos 2/3 proximal da parte de fora (lateral) da canela, o tornozelo, a parte anterior de cima dos pés até os dedos, e as articulações do joelho e do calcanhar.
Após passar pelo joelho e circular o pescoço da fíbula, o nervo peroneal comum subdivide-se em dois: o peroneal superficial e o peroneal profundo (ou tibial anterior). Omitiremos outras subdivisões dos nervos tibial e peroneal comum para tentar manter este artigo relativamente simples — se é que isto é possível.
Paralisia do nervo peroneal profundo impede dorsiflexão do pé. Como resultado, o paciente não consegue levantá-lo e fica de “pé caído”. Acaba adquirindo um problema curioso, incomum e incontrolável com o modo de andar: a Síndrome do Pé Caído (drop foot em inglês).
O modo padrão que uma pessoa tem de andar é denominado “marcha”. Muitos dos tipos diferentes de anormalidades na marcha são produzidos inconscientemente. A maioria, mas não todos, se deve a alguma disfunção física.
Esta marcha compensatória, causada pela paralisia do nervo peroneal profundo (e consequentemente do músculo tibial anterior), força o corpo a empregar flexão excessiva do quadril e do joelho para ajudar uma perna e pé “funcionalmente longos” a limpar o solo. A caída do pé, que fica suspenso com os dedos apontados para baixo, fazendo com que os dedos possam até raspar no chão enquanto a pessoa caminha é que é conhecida como Síndrome do Pé Caído (SPC).
A origem do problema pode ser por uma lesão do ciático causada por uma hérnia de disco lombar, mas também por algum trauma direto no nervo peroneal comum, que, por tabelinha, atinge o peroneal profundo. Um ajustamento na(s) vértebra(s) lombar(es) equivalente(s), ou até na cabeça da fíbula pode melhorar, e muito, a situação.
Não obstante, o clínico deve ficar atento à outras possibilidades, como trauma da medula espinhal, algum tipo de polineuropatia, esclerose múltipla, síndrome de Guillain-Barré, poliomielite, ou atrofia muscular peroneal.
Como dissemos antes, o ciático é o nervo periférico mais longo e mais grosso do corpo. Passa perto de articulações e com pouco espaço entre certos músculos. De fato, músculos que o nervo ciático tem um contato muito próximo (como o piriforme, gêmeo superior, bíceps da coxa, semimembranáceo, semitendíneo, adutor magno e quadrado femoral) têm o potencial de inflamá-lo quando se encurtam. Por isso, qualquer disfunção articular, bem como encurtamento muscular, pode irritar este gigante. E a dor ciática não é pequena. É intolerável. Contrário das dores neuromusculoesqueléticas (que pioram com movimento e melhoram com repouso), uma violenta crise ciática impede a pessoa de dormir e piora enormemente de madrugada por alguma razão (talvez porque esfrie?). Muitas mulheres relatam preferir parir a sentirem dores semelhantes e de tamanha duração. Uma inflamação do nervo ciático pode durar semanas. Às vezes meses. E quando a neurite se instala, não há resposta imediata à medicação. Nem morfina costuma ajudar.
Sendo dor um alarme, talvez nem seja uma boa ideia reprimí-la com medicação. Sem o norteamento da dor, o nervo pode se lesionar cada vez mais, a medida que o tempo passa.
A boa notícia, é que Quiropraxia (com o auxílio da fisioterapia) consegue eventualmente excelentes resultados com este tipo de problema. Dores ciáticas são sempre sintomas — quase nunca a causa. E o segredo (que parece óbvio) é sempre tratar a causa, e não os sintomas.