O procedimento adequado para tratar uma apendicite supurativa aguda seria extirpar o órgão (apendicectomia). Nunca passaria pela cabeça de nenhum médico sério tratar tal afecção somente à base de analgésicos e anti-inflamatórios.

Pois é. Mas problemas de coluna são muitas vezes tratados somente com tais medicamentos — mesmo que faça mais sentido e seja mais eficaz tratar a CAUSA do que tão-somente o EFEITO, que é a dor. Claro, observe-se que uma lombalgia não oferece os riscos de uma apendicite supurativa. E que, no que diz respeito à coluna, o uso de analgésicos e anti-inflamatórios pode ser às vezes até justificado para pelo menos aliviar o sofrimento do paciente em crises mais severas. Mas sempre por tempo limitado. Ocorre, porém, que muita gente vem consumindo estes medicamentos indiscriminadamente e sem indicação médica. E o que é pior: volta e meia pipocam manchetes noticiando que analgésicos e anti-inflamatórios não são assim tão inofensivos quanto as pessoas pensam.

Já se vão quase 2 décadas desde que a hoje semi-extinta revista ÉPOCA (18/09/2006) publicou uma reportagem sobre alguns fatos interessantes dos medicamentos mais populares do período:

  • Muita gente hoje em dia nunca nem ouviu falar do Vioxx (rofecoxibe). Concebido originalmente para combater a dor da artrite sem causar “úlceras e sangramentos gastrointestinais”, não demorou muito para ser “receitado para vários tipos de dor”. Chegou a liderar a lista dos anti-inflamatórios mais vendidos no Brasil e no mundo, com 84 milhões de usuários entre 1999 e 2004, e alcançando 2,5 bilhões de dólares de venda em todo o planeta. Mas aí foram aparecendo os estudos. Vioxx aumentava o risco de infarto, derrame, arritmias cardíacas e problemas renais. (…) “foi retirado do mercado em 2004 (…)”.

  • Considerado substituto do Vioxx, Arcoxia (etoricoxibe) era vendido em 63 países e liderava no Brasil a lista dos anti-inflamatórios mais prescritos pelos médicos. “eleva o risco de ataque cardíaco e derrame tanto quanto (seu predecessor), segundo estudo publicado no Jama. É vendido do Brasil, mas não nos EUA”. A FDA (Food and Drug Administration), agência americana de controle de remédios, declarou-se contrária à aprovação do dito anti-inflamatório — o que praticamente significou o veto à venda do medicamento nos Estados Unidos. Segundo o FDA, a liberação do Arcoxia poderia causar 30.000 infartos por ano na terra do Tio Sam. Acabou sendo mesmo proibido por lá.

    A questão é que este dois medicamentos pertencem à mesma classe dos inibidores da enzima COX-2 — daí a conclusão de que o Arcoxia pode provocar o mesmo risco de ataque cardíaco e derrame que o Vioxx.

  • O Bextra (valdecoxibe), da mesma família do Vioxx, “foi retirado do mercado em 2005 devido a reações dermatológicas graves, embora raras” e “em meio a receios de que o remédio possa aumentar o risco de ataques cardíacos“.

  • Pensando desta forma, até um medicamento comum como o Celebra (celecoxibe) “pode causar problemas cardíacos quando consumido em doses elevadas (acima de 200 miligramas/dia)”. Um estudo, de acordo com o laboratório Pfizer, demonstrou aumento de risco cardiovascular em paciente que ingeriram Celebrex (Celebra no Brasil) em comparação com os que consumiram placebo. Esta descoberta foi inesperada. Com isso, Celebrex se tornou o segundo anti-inflamatório da Pfizer a apresentar riscos cardíacos (depois do Bextra) — e seu uso foi restringido pela Anvisa.

    Isso não quer dizer que o remédio seja mais perigoso do que outras classes de anti-inflamatórios à venda — estudos comparativos mostram que todos eles comportam alguns perigos.

  • Até medicamentos como o Cataflan, ou o Voltarem (diclofenaco) não são 100% seguros. Cientistas da Universidade de Newcastle, na Austrália (ver Artigo 211) cruzaram os dados de 23 estudos com vários anti-inflamatórios (incluindo o diclofenaco) realizados entre 1985 e 2006. Conferiram os dados de 1,6 milhão de pessoas — algo até então sem precedentes em estudos desse tipo. Para se ter uma idéia, os maiores testes clínicos na área de cardiologia incluem cerca de 6 mil voluntários. Quase nada perto de uma metanálise capaz de compilar dados de 1,6 milhão de pessoas. E concluíram que “o princípio ativo do Cataflan e do Voltarem aumenta em 40% o risco de morte súbita”.

  • Nem medicações tidas como inofensivas escaparam. Doses exageradas de paracetamol — analgésico popularíssimo como o Tylenol, o Tylex, e o Dorilax — são a principal causa de insuficiência hepática nos Estados Unidos (revela um estudo publicado na revista World Journal of Hepatology), “contribuindo em até 50% dos casos de falência hepática aguda nos Estados Unidos”. Esses índices vem aumentando anos após ano. De 1998 a 2003 a taxa praticamente dobrou (de 28% para 51%) — provocado indubitavelmente pelo consumo excessivo do remédio. “O paracetamol é uma droga bastante segura quando consumida na dose de até 2 gramas por dia. Mas em altas doses pode levar à hepatite fulminante”, dizia Sérgio Mies, então chefe da unidade de fígado do Hospital Albert Einstein em declaração à VEJA (12/12/2005).

    Ressalte-se que estes estudos (e os anteriores) podem se pautar em exceções, e não em regras. Ainda assim os números impressionam.

Claro, isto não quer dizer que todas estas medicações devam necessariamente ser banidas. “Mais de 800 milhões de pessoas já tomaram Cataflan e Voltarem. Estamos tranqüilos, porque nunca vimos aumento de risco cardiovascular QUANDO O PRODUTO É USADO EM DOSES RECOMENDADAS”, afirma Nelson Mussolini, ex-diretor corporativo da Novartis e atual principal executivo do Sindusfarma. “O problema é que muita gente toma esses remédios como se fossem água.” E num país em que a automedicação é mania nacional, adicionada ao fato de que “15% da população brasileira consome mais de 90% da produção farmacêutica” (dados da Organização Mundial de Saúde), e ainda que “50% dos pacientes, em média, tomam corretamente seus medicamentos,” a situação fica gritante.

Sim. Anti-inflamatório, como bem disse Mussolini, não é para ser ingerido como água com açúcar. “Este tipo de remédio só deve ser consumido em casos muitos específicos”, diz o reumatologista Daniel Feldman, da Universidade Federal de São Paulo”. (VEJA, 18/04/2007)

Necessita-se mais vigilância? Ari Timerman, ex-chefe da seção de Emergência do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia e atual Diretor Técnico de Serviço de Saúde – Serviço Médico Hospital e Diretor da Divisão de Pós-graduação lato sensu e stricto sensu do mesmo instituto, pensa que sim. “A venda de diclofenaco sem receita deve ser revista. Em caso de uso crônico, os remédios realmente aumentam a incidência de infarto”, afirma. Os problemas ocorrem em pessoas que tomam os remédios por meses a fio e em doses elevadas.

E aí, como consequência, a Organização Mundial de Saúde relata que:

  • Hospitais gastam de 15% a 20% de seus orçamentos para lidar com complicações causadas pelo mau uso de medicamentos;

  • “50% de todos os medicamentos são prescritos, dispensados ou usados inadequadamente”;

  • (…) “a metade dos consumidores compra medicamentos para tratamento de um só dia”;

  • E de “25 a 70% do gasto em saúde nos países em desenvolvimento correspondem a medicamentos” (menos de 15% nos países desenvolvidos).

Ainda tem mais: a Sociedade Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai) “estima que 14 e 16 milhões de brasileiros têm alergia a algum tipo de medicamento (…) principalmente a antibióticos e anti-inflamatórios. (…) O número representa entre 6% a 7% da população (…). Outra pesquisa mais antiga desta mesma instituição relatou que “250.000 brasileiros estejam sob o risco de sofrer uma reação alérgica intensa, e a maioria desses episódios é deflagrada por remédios de uso corriqueiro (…). O dado é especialmente preocupante num país como o Brasil, onde a automedicação é um hábito cultivado por 60% da população. 50% das crises graves de alergia são causadas por medicamentos, sobretudo analgésicos e anti-inflamatórios.”

Remédios, quaisquer que sejam eles, devem ser consumidos com parcimônia. “Quando consumidos de forma adequada, num período controlado e com indicação médica, dificilmente provocam problemas”, diz o cardiologista Antonio Carlos Chagas, do Instituto do Coração, de São Paulo.

Esta declaração se torna ainda mais relevante ao considerarmos o hábito atual de receitar levianamente Paco e Pregabalina para dores crônicas ou não.

Por isso, repetimos: melhor procurar corrigir a causa de um problema do que perpetuá-lo tratando os sintomas com medicamentos que, cronicamente e indiscriminadamente usados, não são assim tão inofensivos (ver artigos  63103 e 161). Isso se aplica, não só na coluna, como em outras áreas também.

Afinal de contas, medicação não é água.