O jornalista Andrew Holtz, no seu livro A Ciência Médica de House (Best Seller, 283 páginas), discute detalhadamente a questão da heurística. Neste aspecto, o termo denota um raciocínio sistematizado que, neste caso, o profissional da área da saúde se condiciona a seguir baseado nas suas experiências clínicas. Funciona como uma espécie de “atalho diagnóstico” — e com alto grau de acerto. Útil e muito benéfica.
Para simplificar o que é um método heurístico, imagine ouvir barulhos de galope atrás de você. Há toda probabilidade de se tratar de uma manada de cavalos — não é necessário virar a cabeça para constatar isso, correto? Mas às vezes a manada pode ser de zebras. Então talvez fosse mais prudente olhar para trás — mesmo que a resposta seja óbvia a vasta maioria das vezes (veja mais sobre heurística no artigo 67).
Num ambiente clínico, nem sempre as coisas são como parecem. Por exemplo, considere o caso de Júlio, um analista de sistemas de 40 anos com dor no pescoço e dormência no braço direito. Se o Quiropraxista tiver visto grande número de pacientes com hérnia de disco, sua experiência profissional (baseado nos sintomas, idade e profissão do paciente) irá guiá-lo para este diagnóstico. Agora, considere se a ressonância magnética confirmar esta suspeita: o paradigma consolida-se na cabeça do clínico, impedindo-o de considerar outras possibilidades — uma proverbial “viseira” diagnóstica. Neste caso, então, a heurística atrapalha. Induz ao erro. E aí o pobre do Júlio estará sendo tratado gato por lebre.
Nosso analista sente dores no pescoço que irradiam para o braço, antebraço e mão. Nesta área, sente também dormências e formigamento, principalmente ao dormir. Pioram de madrugada e chegam a acordar o paciente. Apesar de sentir dormência em toda a mão direita, os dedos anelar e mindinho são mais afetados, e com perda de força muscular.
Na cabeça de um profissional acostumado a lidar com hérnias de disco, o diagnóstico está quase fechado — e é esse o problema. A parestesia nestes dois dedos indicam envolvimento do nervo ulnar, que se origina das raízes nervosas de C7, C8 e T1. E, presumindo que a ressonância confirme uma protrusão no disco de C6/C7 (o que, venhamos e convenhamos, poderia ocorrer normalmente em qualquer analista de sistemas de 40 anos de idade), é fácil encerrar o assunto. Pepino é se Júlio não melhorar com tratamento conservador. Ou pior, nem com cirurgia. Neste caso, a Síndrome do Desfiladeiro deveria ter sido considerada como, pelo menos, diagnóstico diferencial.
Então. Olha aí a tal da heurística de novo trabalhando contra nós: quando nos descrevem um bicho que tem bico de pato e que bota ovos, não devemos presumir logo de cara que se trata de um pato, ainda que seja estatisticamente plausível. O bicho pode ser um ornitorrinco. Da mesma maneira, ao examinarmos um analista de sistemas de 40 anos de idade com dores cervicais e dormência no braço direito, tendemos a suspeitar inicialmente de hérnia de disco. Mas não ocorre sempre assim. Pode, não raramente, tratar-se da tal Síndrome do Desfiladeiro . E pode muito bem também até ser a causa da cefaléia, dificuldade de coordenação e depressão em alguns pacientes.
O nome “Síndrome do Desfiladeiro” deriva da covinha no meio do triângulo formado pela primeira costela, clavícula e músculos escaleno e peitoral. Qualquer um destes componentes anatômicos pode comprimir o feixe vascular e nervoso que vai para os braços. De alguma maneira, alguém achou que a depressão no meio se assemelha a um “desfiladeiro” (aqui no Brasil, porque em inglês ele foi batizado com um nome mais apropriado: Thoracic Outlet Syndrome).
A compressão que causa esta dormência no braço de Júlio não ocorreria na coluna cervical, mas no plexo braquial, que consiste de um feixe de nervos que se origina das raízes nervosas dos quatro nervos espinhais cervicais inferiores (C5, C6, C7 e C8) e do primeiro torácico (T1). Este plexo localiza-se lateral à coluna cervical e situa-se entre os músculos escalenos anterior e médio, passando atrás da clavícula e acompanhando a artéria axilar sob o músculo peitoral maior. Este componente neurológico é responsável por 90% dos casos de Síndrome do Desfiladeiro.
A artéria subclávia se torna a artéria axilar ao alcançar a borda externa da primeira costela. Esta, por sua vez, se torna a artéria braquial após passar pelo músculo redondo maior. É responsável por levar sangue oxigenado para boa parte dos braços, ombros e região lateral do tórax. Quando ocorre compressão, diminui o fluxo sanguíneo para os membros superiores e compõe os outros 10% dos casos — veja esta revisão narrativa.
Este tipo de compressão, neurogênica ou vascular, ocorre não raramente por certos defeitos de nascença: músculo escaleno menor, megapófise de C7 ou costela cervical. Mas vícios e alterações posturais também tem larga contribuição neste processo. Pessoas com ombros caídos, com pescoço alongado ou com projeção anterior da cabeça estão mais suscetíveis. Há também fatores traumáticos, como uma fratura na clavícula malconsolidada ou traumatismo cervical num acidente (Síndrome do Chicote), que provocaria espasmo dos escalenos. Aliás, estes músculos são a chave para entender melhor a causa e o tratamento da Síndrome do Desfiladeiro.
Mas a maior incidência da doença deve-se ao aumento de atividade repetitivas, estresse e sedentarismo. Então ocorre com frequência nas profissões em que os ombros ficam erguidos por muito tempo. É comum em jogadores de vôlei e de beisebol, nadadores, pintores, carregadores, mecânicos e digitadores em postura não-ergonômica. Mas também pode ocorrer quando há aumento excessivo de massa muscular como nos halterofilistas. Há preponderância feminina, e ocorre tipicamente entre os 20 e os 37 anos de idade.
A compressão das estruturas do feixe vásculo-nervoso ocorre, na maior parte, pelas costelas. Tudo isso deve-se ao espasmo muscular e espessamento de três musculos de cada lado do pescoço: os escalenos (anterior, médio e superior) — que se originam dos processos transversos da segunda à sétima vértebra cervical e se inserem na primeira e segunda costela. Eles auxiliam na flexão lateral do pescoço, um pouquinho na rotação, e elevam a segunda costela. Quando há tensão exacerbada nestes músculos, ocorre encurtamento. E os pontos de origem e inserção sofrem estresse e alteração biomecânica. Ocorre disfunção articular — tantos nas vértebras cervicais quanto nas costelas supracitadas (e, por tabelinha, compressão).
Anormalidades congênitas como costelas cervicais, a proximidade excessiva da clavícula com a primeira costela, ou a inserção atípica do músculo peitoral menor podem comprimir a artéria subclávia e o plexo braquial quando estas estruturas passam do tórax para o braço. Por isso, a depender destas causas, há vários subtipos de Síndrome do Desfiladeiro (Síndrome da Costela Cervical, Síndrome Costoclavicular e Síndrome da Hiperabdução). Mas na nossa experiência clínica, a Síndrome do Escaleno Anterior é a que mais ocorre.
No exame físico, por meio de palpação, procuramos por espessamento e pontos de gatilho, bem como edema ou um ombro mais alto do que o outro. Testes ortopédicos de Adson, Halstead, Roos e Wright são úteis, mas nem sempre positivos. Os reflexos são quase sempre normais. A eletroneuromiografia pode acusar neuropatia. Radiografia do ombro e pescoço provavelmente não revelarão muita coisa pertinente ao caso. No exame vascular, observa-se se há presença de sopro subclávio. Mas isso é raro. Angiografia pode ser indicada.
Meio escorregadia, confunde-se muito Síndrome do Desfiladeiro com neurite do plexo braquial, degeneração discal cervical, problemas do ombro, túnel do carpo, compressão do nervo ulnar, síndrome miofascial, ou até com esclerose múltipla, angina e infarto. É, felizmente, mais fácil de tratar do que estas possibilidades. De longe, os sintomas da hérnia de disco são os que mais confundem o clínico.
Síndrome do Desfiladeiro não é tão raro assim. Ocorre bem mais comumente do que se imagina. Mas é uma daquelas afecções que respondem magnificamente a um tratamento de Quiropraxia. As manipulações visam corrigir as disfunções articulares das costelas e das vertebras cervicais. Os escalenos são alongados. A postura e ergonomia são melhoradas. O progresso é excelente, mas pode levar algum tempo.
Uso de cortizona pode ser indicado em alguns casos mais extremos. Aplicação de anestesia, toxina botulínica e até cirurgia para bloquear os escalenos são pontos a serem considerados, mas só como último recurso. Afinal de contas, estes músculos têm boa razão de existir. Bloqueá-los daria origem a outros problemas. Tratá-los conservadoramente é sempre melhor.
É só ficar de olho na heurística, usá-la a seu favor e não se deixar levar por ela — essa eterna faca de dois gumes.