Nota: Este artigo foi escrito nos idos de 2011, logo depois do 11º Congresso Bienal do WFC. O evento, realizado no Rio de Janeiro em abril daquele ano, ocorreu no apogeu do sucesso das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). Estava tudo tão tranquilo na Cidade Maravilhosa que acabou inspirando este que vos escreve a redigir um perfil do seu então Secretário de Segurança Pública José Beltrame. Que ingênuo, não?
De qualquer forma, segue o artigo:
Para uma pessoa que exerce um cargo vital na sociedade, uma insignificante dor na coluna pode interferir em decisões extremamente importantes. “O estresse, o desgaste e a responsabilidade pesam sobre os ombros (…).” Se essa pessoa for José Mariano Benincá Beltrame, Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, não é uma boa coisa que dores lombares possam vir a ocupar um lugar importante no seu dia-a-dia.
A Revista ÉPOCA, de 17/10/2011, publicou um extenso e favorável perfil deste gaúcho de Santa Maria. Homem rústico, “na forma de falar e também de comer, segurando o garfo com a mão inteira (…)”, revolucionou a política de segurança do Rio por meio das Unidades de Polícia Pacificadora (as UPPs).
Funciona da seguinte maneira: o governo anuncia o dia que vai invadir uma determinada favela. Aí então entra, assume o domínio do morro, e institui polícia comunitária que PERMANECE no local. O intuito não é reprimir, e sim fazer parte do dia-a-dia da comunidade, extinguindo assim o estado paralelo imposto pelos bandidos. “A ‘pacificação’ está baseada num tripé inicial: a recuperação do território para a comunidade, o fim da ostentação de traficantes com fuzis e metralhadoras e a entrada definitiva de novos policiais, dispostos a ouvir — não a matar”.
Tem funcionado direitinho. “Com a nova política de segurança, os indicadores de violência caíram, de acordo com os dados oficiais: homicídios, balas perdidas, autos de resistência, assaltos a pedestres, roubos de carro. O plano, até 2014, é beneficiar 1,5 milhão de moradores e pacificar 40 complexos de favelas, ao todo 165 comunidades. Ainda é pouco, diante das 1.000 favelas do Estado”.
“Até agora não fiz nada de mais, nada que já não tivesse sido pensado”, afirma o fechado e formal Beltrame, não sem uma pontinha de orgulho. “O que faltava antes era só vergonha na cara.” Mas ressalva: “(…) não está nenhuma maravilha. Não tem jogo ganho. Sem educação, crédito e perspectivas, pode ser uma catástrofe. (O policial) não vai cuidar do lixo, da iluminação, dos cabos telefônicos, não vai oferecer a NET a preços populares, (…) não vai segurar o pessoal com fome e sem emprego”. E alerta: “instalar uma UPP é como jogar água quente no formigueiro. Com a perda de território, os comandos dos bandidos sempre se reorganizam para tentar uma reação”.
O jogo definitivamente não está ganho. Mas o Rio de Janeira está bem mais tranquilo do que antes. Este humilde escriba sentiu isto na pele durante sua estadia pela Cidade Maravilhosa em abril deste ano. Chegou até a jantar numa pizzaria na entrada da Rocinha sem problema algum — isto bem antes da recente intervenção policial em que o traficante Nem foi preso. O projeto, para ter sucesso, requer mesmo eterna vigilância.
José Mariano Beltrame está pagando um preço alto por tamanha ousadia. Só anda com um “hexágono de guarda-costas; (…) usa uma escolta de nove seguranças. Diz que são apenas quatro. Não quer chamar a atenção para as 17 ameaças de morte (…)”.
“Avisar aos traficantes que, em tal dia e hora, o Bope vai entrar no morro — e assim permitir a fuga, sem prender nem matar ninguém”, fez inimigos dentro da própria polícia. Definitivamente o homem não é “um ídolo das bases. Mexeu em vaidades. Exigiu abertura de dados da Polícia Civil. Começou a punir desvios de conduta”. De fato, nestes últimos seis anos, “1.046 policiais civis e militares” foram defenestrados. “Milícia é um problema interno”, diz Beltrame. “Não é só crime. É desvio de conduta.”
Seus detratores dizem que Beltrame fez “concurso para delegado federal em 2004, ficou em 896º lugar e só conseguiu entrar depois de liminares perdidas, repescagens e acordos”. Por isso, o chamam de Sassá Mutema (o personagem de Lima Duarte da novela O Salvador da Pátria) e de Forrest Gump (interpretado por Tom Hanks no filme homônimo — ver Artigo 20). O ex-governador Anthony Garotinho, no seu blog, volta e meia bate pesado e o acusa de demagogismo em prol de um projeto político.
Todo esse estresse pesou na sua coluna — especificamente “nas vértebras L4 e L5. A dor irradia para a virilha”. Mas, depois das sessões semanais de RPG, “pela primeira vez depois de dez anos, correu até o fim a meia maratona do Rio, em agosto (…)”. Deve ser gratificante para o fisioterapeuta saber que o seu trabalho contribui para que a dor de coluna do Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro não seja parte integrante do seu dia-a-dia. Sem dor, qualquer pessoa trabalha melhor.
Em tempo: “Nos primeiros anos, os índices de criminalidade chegaram a cair, mas desde 2013 teve início uma nova escalada da violência. Com as UPPs sem dinheiro e sem força, os traficantes voltaram a exibir fuzis e a mandar nos morros, mesmo estando ocupados pela polícia.”
Talvez a renúncia em 2014 e subsequente prisão do então governador Sérgio Cabral Filho em 2016 tenha levado Beltrame a entregar o cargo naquele mesmo ano. Uma reportagem de 2018 dizia que ele “teria se beneficiado do esquema de corrupção descoberto no governo de Sérgio Cabral” e recebia “R$ 30 mil mensais do esquema por sete anos”. Foi também acusado de improbidade administrativa e “suspeito de superfaturamento da compra de viaturas”. Uma investigação criminal foi aberta pelo Ministério Público do Rio de Janeiro contra ele em 2019 (uma busca rápida pela internet não conseguiu encontrar se essas acusações surtiram em alguma condenação).
Não obstante, o governo Temer queria Beltrame como Ministro da Justiça, mas àquela altura já era considerado um pária político e o plano gorou.
Em 2018, “o Gabinete de Intervenção Federal decidiu acabar com metade das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) do Rio de Janeiro.” Sim, “após cerca de dez anos da implantação da primeira UPP, o projeto foi considerado um fracasso“. Houve algumas tímidas tentativas para revitalizar, mas o fato é que os “enxugamentos” continuam — pelo menos até 2024, quando “Governo do Estado do Rio de Janeiro confirmou o fechamento de 13 Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) na capital, conforme publicação do Diário Oficial fluminense (…). Antes com 29 UPPs, “passará a operar com 16. (…) A decisão faz parte de um plano de reestruturação da Secretaria de Segurança Pública que pretende remanejar os soldados das sedes unificadas em uma redistribuição mais estratégica.”
Mas o Rio de Janeiro continua lindo mesmo assim — só mais violento do que em 2011. Resta saber o que a lombalgia de José Beltrame acha disso tudo.