É bem provável que boa parte de nós já viveu um amor impossível (ou que, pelo menos, não foi adiante) — principalmente na adolescência ou nos arroubos da juventude. Estou falando de uma paixão arrebatadora, em que a gente não para de pensar no outro, uma coisa mais idealizada do que necessariamente real. Uma bolha vivida a dois. E que, por algum motivo, caiu por terra.

Pensava-se que este conceito de Amor Romântico tivesse sido “uma invenção exclusiva da Europa medieval do século XII, originando-se no amor cortês, ou como uma criação moderna capitalista a partir do romantismo; porém, isso se tornou refutado com novos estudos.” Porque há indícios de que, ainda na Antiguidade, as pessoas padeciam desta emoção: “na literatura árabe, persa, chinesa, japonesa, bem como na Antiga Grécia, Roma e Índia Clássica, dentre outras culturas”.

Conheci Léo há uns 15 anos. Bia mais ou menos neste mesmo período. Separadamente, os dois iniciaram o tratamento de Quiropraxia com queixa de dores lombares. Os dois são hoje em dia pacientes de manutenção. Ambos moram em uma cidade onde atendo uma vez por mês. Costumam ser assíduos. Ele, entusiasta de ciclismo e corretor de imóveis. Ela, secretária administrativa e avó coruja. Os dois estão na casa dos 60 anos. Até onde ia meu conhecimento, não se conheciam.

Uma clarificação: Os nomes destes pacientes e suas profissões foram mudados, obviamente. Rebatizei-os com os dois personagens da canção de 1979 composta e cantada por Osvaldo Montenegro. “‘Léo e Bia‘ (…) é uma delicada narrativa que explora a natureza do amor (…) talvez indicando os riscos inerentes ao ato de se apaixonar e se entregar a outra pessoa.”

Um belo dia, coincidiu dos seus horários estarem próximos um do outro. Se reconheceram, se cumprimentaram com sorrisos, mas nada muito efusivo. E só.

Mas depois daquele dia, houve outras ocasiões onde os horários permitiam os dois a, pelo menos, passarem um pelo outro enquanto um entrava e o outro saía — sempre se cumprimentando amigavelmente.

Com uma sessão de Quiropraxia durando aproximadamente 15 minutos, sobra pouco tempo para conversas pessoais. Foca-se nas queixas daquele dia, ou se apareceu algo novo, ou se as dores melhoraram. Com Bia, a conversa, quando pessoal, sempre girava em torno da sua paixão por fazenda e cavalos. Mais tarde, com o nascimentos dos netos, o bate-papo, quando o tempo permitia, quase sempre girava em torno dela curtindo os pimpolhos. Tirou até licença do trabalho para ajudar a filha logo depois dos partos. Em suma, uma avó nota 10. Com Léo, a conversa sempre girava em torno do ciclismo — interesse este que temos em comum. Ele gosta, investe, faz viagens longas. Já eu uso a bicicleta como meio de transporte urbano.

Numa das nossas sessões, após ter passado por Bia na recepção, ele comentou admirado como ela ainda continuava muito bela, daquelas mulheres de parar o trânsito. De fato, para uma senhora de 60 anos, ela era extremamente (e naturalmente) bem conservada — além de muito simpática. Então não estranhei o comentário.

Passou-se algum tempo. Anos talvez. Um belo dia, após terem novamente se cruzado saindo e entrando da clínica, Léo comentou que os dois haviam sido namorados na adolescência. E, ao longo dos anos seguintes, volta e meia ele comentava algo que, na minha infinita curiosidade e imaginação, eu (tal qual no Artigo 12) comecei a tecer uma colcha de retalhos a partir destes fragmentos de informação.

Frise-se que o relato abaixo é semiverídico e unilateral. Foi obtido a partir dos ocasionais comentários de Léo (até porque Bia jamais proferiu sequer uma palavra sobre o assunto). As lacunas foram preenchidas com minhas próprias deduções, clichés, idealizações e pressuposições.

Talvez tenham se conhecido numa festa. Talvez tenham sido colegas de escola. Mas o que se sabe é que Léo e Bia se apaixonaram perdidamente — ele com 19, ela com 17. Naquela época, final dos anos 70 a começo dos anos 80, os pais de uma jovem casadoira sonhavam com um pretendente mais velho e com alguma segurança financeira. Era a norma do período. Léo não tinha nada disso — só andava de cabelos comprido, com uma velha calça desbotada (como rezava a canção de Roberto Carlos) e um Corcel 73 (como na canção de Raul Seixas). Basicamente, como cantava Belchior, “apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco”.

Se a Bia sexagenária já era linda, imagina na flor da juventude. Talvez fosse timidazinha. Talvez fosse contestadora. Talvez até fosse uma patricinha (termo este que só foi aparecer na década de 90). Mas adorava entrar naquele carango e sentir o vento esvoaçando seus cabelos. E era louca por aquele menino como jeito de rebelde.

Se gostavam cada vez mais. Os laços se estreitavam. Viviam uma paixão avassaladora, daquelas de não se desgrudarem nunca. Os pais de Bia começaram a ficar incomodados. Talvez tenham chegado a tentar proibir o namoro. Ou talvez tenham esperado pacientemente que tivesse fim. Mas as coisas estavam ficando mais intensas.

Até que um dia, num passeio de carro, uma pessoa atravessou a estrada de repente. O atropelamento foi fatal. Os dois jovens, desesperados, não sabiam o que fazer diante de todo aquele sangue. Foi a partir daí que Bia acabou o relacionamento.

Léo ficou deprimido e destroçado. Teve uma dor-de-cotovelo monumental. Mas o trauma foi demais para Bia. Ela ficou irredutível na sua decisão de terminar. Mais cedo ou mais tarde, se envolveu com um cara mais velho e com muita segurança financeira — como sempre sonhou seus pais, ressalte-se. Talvez tenham tido alguma influência na escolha do pretendente. Ou talvez não. Mas Bia se casou com ele.

O tempo cura tudo. Léo se recuperou, conheceu outra pessoa e se casou também. O matrimônio durou mais de 30 anos. Se separou recentemente. “A melhor coisa que aconteceu com ele”, de acordo com a irmã (também paciente). Bia continua casada (e até onde eu sei, muito bem-casada). É uma pessoa positiva, contente, e muito família. Não parece ter arrependimentos. Léo, por sua vez, nunca se lamentou do amor perdido, do que poderia ter sido. Parece também ter se recuperado.

E depois de me ter relatado o acidente, não voltou mais a comentar o assunto.

E é assim que nossa história termina. Se os diletos leitores pensavam que teria um “final feliz”, na medida do possível foi um separadamente final feliz. Ela avó coruja, ele aproveitando a vida de solteiro e curtindo o ciclismo. Sem reencontro, sem reacender antiga chama nenhuma. E sem melancolia também.

Às vezes a vida é assim, né?

A questão é que a gente se condiciona a esperar algo mais. A literatura e os filmes estão salpicados de histórias de Amor Romântico e Amor Proibido:

  • Um dos primeiros sucessos de William Shakespeare foi a peça Romeu e Julieta. Escrita entre 1591 e 1595, a obra “pertence a uma tradição de romances trágicos que remonta à antiguidade.” É “sobre dois adolescentes cuja morte acaba unindo suas famílias, outrora em pé de guerra. (…) Hoje, o relacionamento dos dois jovens é considerado como o arquétipo do amor juvenil.”

  • Em Amor Sem Fim (Endless Love, 1981) de Franco Zefirelli, um “jovem casal (ele 17 anos, ela com 15) se apaixona perdidamente (…)”, mas os pais, em teoria liberais, começam a se incomodar com a intensidade da relação. “Um dia a situação explode e (o pai) diz para (a filha) que ela não poderá receber o namorado. Então (o rapaz), de maneira obsessiva, cria um plano para ficar nas boas graças da família dela, mas os resultados são dramáticos.”

    Foi feito um remake em 2014, mas já sem o impacto do original. Talvez um reflexo do tempo mais cínico que vivemos… Ou talvez porque o filme não foi lá muito bom.

  • Diário de uma Paixão (The Notebook, 2004) conta a história de dois jovens “que se conheceram e apaixonaram-se num parque de diversões (…) nos anos 40. Foi o verão mais intenso de suas vidas. Porém, por imposição da família (da jovem), o casal, loucamente apaixonado, teve de separar-se quando as férias acabaram. Eles não aceitavam que ela, uma jovem rica de 17 anos se envolvesse com um pobre operário.”

Percebem como as histórias se parecem? E que, às vezes, a vida imita a arte?

O escritor francês (e também crítico literário e de teatro) Georges Polti (1868-1946), concluiu na sua obra Trinta e Seis Situações Dramáticas (Les Trente-Six Situations Dramatiques, 1895 — Paris: Édition du Mercure de France, 1912, segunda edição) que havia somente 36 enredos básicos. “Depois de estudar obras gregas, latinas e francesas (…), observou que todas continham elementos de confronto e conflito”.

O de nº 28, Obstáculos do Amor, vaticina que “dois amantes querem ficar juntos, mas são impedidos por algum Obstáculo intransponível. Essas histórias relatam empecilhos de união e eventualmente casamento. Os obstáculos podem ser interraciais, interculturais, interreligiosos, (interssociais) — para mencionar alguns. Estes dilemas morais têm a ver com valores, criação e sistema de crenças”,

Soa familiar? Pois é. Sendo bombardeados por séculos com variações em torno deste enredo em particular, como não haveríamos de esperar que Léo e Bia ficassem juntos no final? Mas as possibilidades na vida real são bem mais ricas, variadas e diversas do que meros 36 enredos, não são?

Claro, conheci no consultório pelo menos dois casais que, namorados na juventude e agora viúvos ou separados, se reencontraram na meia-idade. E decidiram juntar os trapinhos. Tais histórias ecoam com os enredos dos ganhadores do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 1967 e 1982:

  • Um Homem,Uma Mulher (Un homme et une femme, 1966) é sobre dois viúvos recentes que “encontram-se por acaso quando visitam seus respectivos filhos num colégio interno, (…) acabam tornando-se amigos chegados e, finalmente” se apaixonam um pelo outro. “(…) mas percebem que as lembranças dos cônjuges falecidos ainda são muito fortes”.

  • Começar de Novo (Volver a Empezar, 1982) conta a história de um renomado escritor espanhol ganhador do Prêmio Nobel de Literatura que regressa a sua cidade natal após décadas de exílio voluntário e involuntário. Durante sua estadia, ele reflete nas escolhas que fez na vida, particularmente os sacrifícios pessoais em prol da carreira literária — incluindo um amor perdido da juventude que acaba reencontrando e se reapaixonando.

Até onde vai meu conhecimento, isso não se aplica a história de Léo e Bia, que parece ser página virada. Aparentemente, nenhum dos dois têm disposição, interesse, vontade ou sequer cogitação de retomar o relacionamento.

A razão pela qual eu achei merecedora a ideia de escrever este artigo, não foi pela questão do Amor Romântico. Foi, como no filme espanhol, pela questão das escolhas e encruzilhadas que ocorrem na nossa vida. A história de Léo e Bia apenas me fez refletir sobre isso.

Sim. Mais do que um arrebatador Amor Romântico na juventude, é bem mais possível que todos nós, de uma forma ou de outra, nos deparamos com algum tipo de encruzilhada nas nossas vidas. E as escolhas que fizemos, o caminho que escolhemos percorrer, impactaram nosso destino de tal maneira que, às vezes, num momento de reflexão, ficamos curiosos em saber o que aconteceria se tivéssemos tomado o outro caminho daquela tal encruzilhada.

Nas sábias palavras do psicanalista e escritor Abrão Slavutzky, “nossas escolhas são determinadas por desejos inconscientes, as marcas na memória gerando as identificações que formam a personalidade de cada um. Escolhemos assim amigos, estudos, caminho profissional, casamento. Amor e trabalho são as fontes principais, as encruzilhadas decisivas da vida. Quanto entusiasmo dá fazer o que se ama e sentir a felicidade de estar bem casado. Entretanto, muitas vezes, os sonhos não se casam com a realidade. Além do que, nada é estático, a vida está sempre em movimento, com novos desafios ao longo dos tempos.”

Então é isso. Observando os encontros ocasionais, indiferentes e casuais de Léo e Bia no consultório — duas pessoas que começaram a se tratar comigo em princípio aleatoriamente — me ponho a pensar no que a vida tivesse reservado a eles se aquele passeio de carro não tivesse sido trágico. Teriam ficado juntos? Teriam, como tantos relacionamentos da nossa juventude, trilhado caminhos separados? Estariam individualmente mais felizes? Menos felizes? E, claro, reflito sobre as situações na minha própria vida em que também me deparei com estradas bifurcadas — qual delas eu optei e qual delas talvez devesse ter optado. Ou não.

De qualquer maneira, certo estava Slavutzky quando disse que, “se as encruzilhadas não existissem, a vida seria mais fácil. Mais fácil e tediosa, pois nada é mais importante do que as aventuras de aprender a escolher.”

Léo e Bia parecem estar de bem com o caminho que escolheram trilhar.

“Como castelos nascem dos sonhos
Pra no real, achar seu lugar
Como se faz com todo cuidado
A pipa que precisa voar
Cuidar de amor exige mestria
E Léo e Bia souberam amar”

Oswaldo Montenegro

E foi eterno enquanto durou.