No comecinho do milênio, uma senhora viúva, na faixa de seus 85 anos, esteve num consultório de Quiropraxia para tratar de uma dor na coluna. No exame físico, o clínico notou uma tatuagem na parte superior de um dos seios com as palavras Amor Sem Fim.

A tatuagem era meio tosca. Parecia ter sido feita por um amador. Isto aguçou a curiosidade do clínico. “Tem que haver uma história interessante por trás de uma tatuagem deste tipo nesta região em particular e ainda por cima numa senhora desta idade”, pensou. Mas, ao indagar sobre a tatuagem, recebeu de volta um sorriso enigmático e uma resposta evasiva. Sua filha, que a acompanhava, limitou-se apenas a comentar que o tal do Amor Sem Fim teve, sim, um fim. A senhorinha havia enviuvado pouco tempo depois de suas bodas de ouro. Mas o falecido marido não parecia ter sido o recipiente da frase da tatuagem.

De qualquer modo, a conversa parou por aí. O clínico achou prudente não insistir.

Ao cabo de algumas sessões, a tal senhora melhorou e descontinuou o tratamento. Na clínica não se ouviu falar mais dela. Mas o clínico jamais a esqueceu. E sua curiosidade e imaginação, ao longo dos anos, criou uma elaborada, mas completamente fictícia história para explicar como aquele seio veio a ser tatuado.

Sua primeira conclusão foi que uma tatuagem como esta só poderia ter sido feita nos arroubos da juventude, num momento intempestivo. Na década de 40, a senhorinha deveria ter uns 20 anos de idade. Ilhéus era uma potência do cacau nesta época e já possuía um movimentado porto. Portanto, a segunda conclusão, naturalmente, foi que o autor da tatuagem, bem como o receptáculo da frase tivesse sido muito provavelmente um marinheiro. A terceira conclusão foi que, como o amor sem fim teve fim, o romance não deve ter ido adiante.

(O leitor mais atento deve ter percebido neste enredo uma semelhança com uma antiga canção de Chico Buarque: Minha História (1970) — adaptada, por sua vez, de outra canção Gesùbambino do cantor e compositor italiano Lucio Dalla.):

Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar
Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar
Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente
E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente… (…)

Ele assim como veio partiu não se sabe pra onde
E deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe
Esperando, parada, pregada na pedra do porto
Com seu único velho vestido, cada dia mais curto… (…)

O romance (completamente fictício, diga-se) ficou mais ou menos assim: a moça, de família humilde, apaixonou-se loucamente pelo tal marinheiro. Foi aquele amor louco, de não sair da cama, de cometer loucuras (como, por exemplo, fazer uma tatuagem no seio em plenos anos 40). O marinheiro zarpou prometendo voltar. Mas não voltou.

A moça desesperou-se. Quando seu coração partido parecia não ter mais forças, notou que sua regra não chegava. Ia ao porto todos os dias, perguntava sobre o navio e sobre o marinheiro. Ninguém sabia lhe responder.

Sua barriga logo iria despontar e revelar sua condição. Como seu pai, ignorante e pobre, mas honrado homem da roça, receberia tal notícia? Seria expulsa de casa? Para onde iria? Uma mulher de família, desonrada daquele jeito, teria, naquela época, um destino certo: o meretrício. Horrorizava-se só de pensar.

Enquanto chorava sentada num banco da praça da prefeitura, enxergou uma mão oferecendo-lhe um lenço. Era o filho do vizinho, contínuo numa firma de cacau, que sempre a olhava de soslaio. Sabia que o rapaz tinha um fraco por ela. “Por que choras?”, quis saber o mancebo. Naquele momento de fragilidade, ela acabou revelando o segredo que mantinha nos últimos três meses. Contou-lhe tudo. Não omitiu nenhum detalhe, não importando a expressão de sofrimento estampada no rosto do rapaz.

Ele fitou-a em silêncio por uma eternidade. E disse que tinha a solução. “Vamos nos casar”, afirmou. Ela balançou a cabeça negativamente. Em prantos, explicou que não seria justo com ele, que não o amava, que nunca, nunca imporia tamanho fardo na sua vida. Ele simplesmente respondeu: “Você não me ama agora, mas, quem sabe, pode aprender a me amar. Mesmo que não venha a me amar nunca, ainda assim quero passar a minha vida contigo. E crio esse filho como se fosse meu. Ninguém precisa saber”.

Pois é. Os dois se casaram. Viveram juntos por mais de 50 anos. Tiveram outros filhos. Ela realmente aprendeu a amá-lo. A tatuagem, quem diria, acabou no fim sendo para ele.

Foi assim. (Pelo menos na imaginação jorgeamadiana deste clínico que não tinha nada melhor para fazer.)