Sonhar o sonho impossível

Combater o inimigo imbatível

Suportar uma dor insuportável

Ir onde os corajosos não se atrevem a ir

Pois é. Clésio sempre gostou de correr. Desde pequeno.

Eis que este então jovem balconista de uma loja de produtos veterinários na bucólica Camacã-BA ousou sonhar o sonho impossível: correr em competições — praticamente sem patrocínio, ganhando salário mínimo e com uma hérnia de disco. Incrível? Mais inacreditável ainda é a sua vida e o que o levou a perseguir este proverbial pote de ouro no final do arco-íris.

Nosso herói foi nascido e criado em Santarém, a “Pérola do Tapajós” do Pará, uma cidade com pouco menos de 280 mil habitantes. Seus pais, naturais de Camacã, resolveram voltar com toda a família para a cidade natal — 22 anos atrás. Nesta época, a vassoura-de-bruxa soava apenas como uma ameaça distante. Ledo engano.

Um parêntese: a vassoura-de-bruxa é um fungo que assola o cacaueiro e praticamente dizimou a produção de cacau no sul da Bahia nas décadas de 80-90, fazendo cair a participação do Brasil no mercado internacional de produção de cacau “de 14,8% para 4%” e causando profunda depressão econômica na região.

Então. Camacã (população atual estimada em pouco mais de 22 mil habitantes) era um dos maiores municípios produtores de cacau na década de 70. Isto poderia significar melhores oportunidades para a família de Clésio. Mas não. A Crinipellis perniciosa devastou e destruiu grande parte da lavoura cacaueira no final da década de 80. Mas a ficha demorou a cair. Os efeitos não foram sentidos imediatamente.

Clésio ainda tinha esperanças e sua vida inteira pela frente. Formou-se técnico agrícola em 1994 pela então Escola Técnica de Uruçuca-BA (hoje Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano). Casou-se com uma garota da região e parou de correr. Mas foi aí que os resultados da vassoura-de-bruxa começaram a aparecer e a demolir seus sonhos. O casamento evetualmente acabou. E a depressão começou logo depois. Migrou-se então para o Espírito Santo. Lá, conseguiu trabalho capinando e colhendo café. Virou trabalhador rural.

Foi neste período que nosso amigo redescobriu o prazer de correr. Os antidepressivos foram deixados de lado. Resolveu competir na Corrida do Bombeiro de 2005 em Ilhéus. Ficou na 18° posição. E nunca mais parou. Conseguiu acompanhamento via internet por um personal trainer famoso do Rio de Janeiro e foi orientado por outro de Camacã.

Clésio participou de todas as edições da São Silvestre desde 2005 até pelo menos 2010 (quando este artigo foi primeiro redigido). É comum os atletas (amadores e profissionais) sofrerem de desidratação e insolação neste percurso de 15 quilômetros cheio de obstáculos geográficos e em pleno verão paulista. Contudo, suas posições, para um amador, não são de se jogar fora: 764° em 2005 e 630° em 2006. Lembramos aos diletos leitores que são mais de 20 mil pessoas competindo.

Aí as dores apareceram em 2007. Foi diagnosticado com uma hérnia de disco. Sua posição despencou para 935° naquele ano até chegar a 1.934° em 2008. O sonho se esvaía. Clésio então se tornou nosso paciente. Animou-se de novo. E convenceu este cético escriba que poderia competir na São Silvestre apenas dois meses depois de iniciar o tratamento. Ficou em 654° lugar na edição de 2009 – seis minutos mais rápido. E, em 17 de janeiro, na II Corrida Temática da Costa do Cacau (com 10 km. de extensão), conseguiu o 22° lugar. Um salto para quem tinha tirado 35° no ano anterior. Seu tempo foi melhorado em quatro minutos! Credita sua recuperação, em parte, à Quiropraxia.

E o mundo seria melhor por isto

Que um homem desprezado e coberto de cicatrizes

Ainda luta com o que resta de sua coragem

 Para alcançar a estrela inalcançável

Perdemos o contato com Clésio (nome, claro, fictício) depois de alguns anos. Mas sua irmã ainda é paciente e de vez em quando nos dá notícias dele. Nosso herói acabou arrendando a loja de produtos veterinários e trabalhou nela por um período. Depois, cursou universidade e formou-se em Psicologia. Fiel às raízes, voltou a mexer com cacau. A coluna nunca mais foi um problema. Corre até hoje.

Nada mal para um ex-balconista com hérnia de disco. Nada mal.

Em tempo: os versos acima, no começo e no fim do artigo, são trechos de um sucesso da Broadway chamado O Homem de La Mancha, baseado no clássico literário Dom Quixote de Miguel de Cervantes. O musical foi encenado pela primeira vez em 1965, teve 2.329 apresentações, e ganhou cinco prêmios Tony — considerado o Oscar do teatro americano.