Uma pessoa com dores nas costas teria respaldo suficiente para receber auxílio-doença? Se 80% da população mundial já sofreu ou sofre de problemas de coluna, então o INSS tem um abacaxi de proporções monumentais para descascar.
Em 2006, o governo concedeu 140.000 auxílios-doença acidentários. Uma parte significativa deles foi por problemas de cunho neuromusculoesqueléticos. Observem estas estatísticas:
Estes números parecem exagerados, não parecem? Mas podem ter sido um reflexo de uma decisão da 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) que acatou provimento um recurso de um empregado de uma fábrica de tijolos no RS que alegava sofrer “de graves problemas na coluna lombar, com discopatia degenerativa e redução severa dos espaços dos discos intervertebrais, comprovados por diversos atestados médicos”. E que esta patologia o estava impedindo “de exercer qualquer atividade, até as que exijam o mínimo de esforço físico” — comprovado por laudos médicos.
A grande questão aqui é: como avaliar objetivamente um problema de coluna? Os sintomas de uma hérnia de disco paramediana de, por exemplo, 05 milímetros, podem ser severos em uma pessoa e amenos em outra. Decide-se quem vai ser “encostado” somente por causa do tamanho da dita hérnia? Observa-se o quadro clínico do paciente para assim chegar a uma decisão? E quem garante que não há exagero nos sintomas?
Por outro lado, a perícia é muitas vezes imperita. Alguns pacientes relatam que durante a tal (por incrível que pareça), são somente solicitados a se agacharem. Se o exame físico é deficitário, quais os critérios seguidos? Que tipo de treinamento específico o perito teve? Desde fevereiro de 2006, as perícias médicas são realizadas apenas por peritos médicos do INSS. Em 2005 e 2006, a Previdência Social realizou concursos públicos para a contratação de três mil médicos, substituindo os 2.491 médicos credenciados que eram os responsáveis pela concessão dos benefícios por incapacidade. Mas até que ponto é adequado um ginecologista ou um pneumologista avaliar problemas de coluna? Exatamente quantos ortopedistas ou neurologistas fazem parte do quadro de peritos do INSS?
Este tipo de pressão nós, Quiropraxistas, não temos. Por ora.
E, afinal de contas, o que diz a lei? Seguindo o manual à risca, para se ter direito ao benefício é necessário que o segurado esteja definitivamente e indubitavelmente impossibilitado de trabalhar. Aproximadamente 60% das pessoas que procuram uma Agência da Previdência Social buscam um benefício por incapacidade, como o auxílio-doença, concedido pelo INSS ao segurado que não pode trabalhar, por motivo de doença ou acidente. Portanto, não basta que a pessoa tenha algum tipo de doença, pois em alguns casos, a doença não impede o trabalho. “O benefício (auxílio-doença acidentário) é dado a quem necessita se afastar por mais de quinze dias. O artigo 75 do decreto 3265/99 diz que durante os primeiros 15 dias consecutivos de afastamento de atividade, por motivo de doença, incumbe à empresa pagar ao funcionário segurado. E só quando a incapacidade ultrapassar os 15 dias, é que o segurado será encaminhado à perícia médica do INSS para o auxílio-doença”, relata o médico do trabalho de São Paulo-SP, Alexandre A.A. de Andrade. (VEJA, 11/07/2007)
Mas há muita desinformação. Fatos nem sempre são esclarecidos à pessoa que busca o benefício. A liturgia do cargo induz o médico perito a modificar seu relacionamento com o paciente.
“O médico deve esforçar-se em desenvolver com o paciente um objetivo comum, um relacionamento harmônico, com a afinidade e cumplicidade necessárias para o encontro de uma solução que alivie o sofrimento e permita um bom resultado terapêutico. Porém, o médico perito, em vistas das particularidades implícitas a seu trabalho e por imposição legal e ética, não pode nem deve desenvolver este tipo de relacionamento. Ratificando tal conduta, o artigo 120 do Código de Ética Médica, por exemplo, proíbe ao médico ‘ser perito de paciente seu, de pessoas de sua família, ou de qualquer pessoa com a qual tenha relações capazes de influir no seu trabalho’. Essa breve austeridade e imparcialidade não deve significar frieza e desatenção no procedimento executado. Que o ser humano ‘segurado’ seja atendido com a deferência a que tem direito e realmente se sinta examinado; que ao lhe ser negado o benefício lhe seja explicado com a atenção e paciência necessárias ao completo entendimento, que sob o ponto de vista previdenciário não basta ele estar doente, mas sim que a doença apresentada efetivamente determine sua incapacidade para o trabalho, e primordialmente, que se respeite sua dignidade, para que não venha sentir-se um pedinte junto ao INSS. Em várias circunstâncias, há o esquecimento de que o INSS é uma espécie de ‘seguro para a incapacidade laborativa’. E que o termo ‘auxílio-doença’, por inadequado, sugere erroneamente que o benefício pecuniário seja concedido indiscriminadamente — para tal bastando o requerente estar doente. Na maioria dos casos, o fator de descontentamento e revolta dos segurados que tem o pedido de benefício negado é simplesmente a desinformação — o que convenhamos, é problema de muito simples equacionamento”, atesta Fernando Amaral de Queiroz, pneumologista, médico perito do INSS e colaborador da Revista da Cremeb (maio/junho/julho 2005).
“É impressionante a responsabilidade e complexidade das rotinas desempenhadas pelo médico perito do INSS. É dificílimo analisar num rito quase sumário os problemas sociais, físicos e emocionais dos pacientes considerando os aspectos técnicos, legais e éticos envolvidos nas análises periciais para julgar a propriedade ou não de conceder-se o benefício requerido pelo segurado previdenciário”, relata Jonas Krischke Sebastiany, diretor técnico da Consulmed e ex-perito do INSS.
O perito apenas constata, como manda a lei, se o trabalhador está realmente impedido de trabalhar. Portanto, não é o médico que decide pela concessão do benefício por incapacidade, mas a legislação brasileira. Isso, quer queira, quer não, lhe alça a ter o poder quase divino de decidir quem vai ser beneficiado e quem não vai ser. Por mais objetivo que seja o exame, a natureza subjetiva da coluna impele-o às vezes a tomar decisões e dar um parecer nem sempre condizente com a situação do paciente. E pra juntar a fome com a vontade de comer, a desinformação, juntamente com o crescimento exponencial dos problemas de coluna nas últimas décadas, têm agravado pelas dificuldades inerentes dos profissionais para avaliar uma afecção tão abstrata — e, por consequência, exaltado os ânimos de ambos os lados.
De fato, parece que uma barreira invisível foi atravessada em 2006 e 2007. A partir deste período pipocaram casos de agressões e até assassinatos de peritos médicos pelo Brasil por segurados por recusa de benefício. E isto ilustra até que ponto esta frustração pode chegar.
Há relatos de uma médica que quase perdeu a visão por descolamento de retina provocado por socos. Culminou, na cidade de São Paulo, com o espancamento de uma perita grávida. É deprimente constatar até que ponto chegamos. Mas não atingimos o fundo do poço. Ainda não. A involução continua.
Perceberam o padrão, caros leitores? Desde quando virou lugar-comum o perito do INSS virar saco de pancadas? De acordo com dados da Associação Nacional dos Médicos Peritos (ANMP), ocorrem, em média, mais de 100 agressões por ano. Os casos são escabrosos e apavorantes.
Uma pesquisa da Universidade Federal de Sergipe, feita mais ou menos na época em que houve aumento gritante desses casos, detectou que 26% dos profissionais de saúde do Programa Saúde na Família já sofreram assédio moral — 09% deles pelos usuários (o resto pelos colegas, chefes ou gestores). Então em termos absolutos, ainda são “pequenos”. Mas dão uma dor de cabeça danada.
Deborah Pimentel, membro da Academia Sergipana de Medicina e professora de Medicina Legal e Ética Médica da UFS, atesta que “a perversão expressa aos profissionais de saúde em pequenos atos ou gestos caracterizados como falta de respeito, xingamentos, manipulações ou mentiras é tão corriqueira que não mais surpreende e até mesmo chega a parecer coisa normal do cotidiano funcional”. É o prevalecer das nulidades de que tanto falava Rui Barbosa. Estamos tão acostumados com o desrespeito e a falta de cidadania, que a ética acabou virando artigo raro.
A dra. Pimentel reitera que “com a alta competitividade no atual mercado de trabalho, muitos profissionais de saúde sentem-se acuados quando pressionados de forma abusiva por chefes, colegas, e até mesmo por usuários. Os médicos, em especial, formam uma categoria freqüentemente vítima de pacientes e acompanhantes que os acusam pelas falhas dos sistema público de saúde”.
Seja lá como for, toda ação impele a uma reação.
Ressalte-se que disponibiliza-se pouco tempo de atendimento para o paciente — 15 minutos por segurado, totalizando 24 atendimentos em seis horas. Os peritos alegam ser pressionados para atender nestes termos. “É impossível. No máximo só se atende bem 12 pessoas neste tempo”, afirma Verusa Maria Rodrigues Guedes, delegada da ANMP, secção Salvador. E, ainda por cima, simplesmente não há peritos suficientes para atender a constante e crescente demanda. “Apenas em Salvador e região metropolitana, existem 15 agências do INSS, com aproximadamente 40 médicos peritos” (A Tarde, 15/12/2009).
Houve uma época aqui mesmo em Ilhéus (uma cidade de 170 mil habitantes), que, de acordo com fontes internas do INSS local, contava-se com apenas três (!!) profissionais — sete (!!!) em Itabuna. E havia gente debandando.
Porque simplesmente não vale a pena, por dinheiro nenhum, trabalhar num lugar temendo pela integridade física e até pela vida. Os proventos pagos pelo INSS não se comparam aos rendimentos por serviços efetuados em clínicas e hospitais. Em suma, trabalha-se muito, ganha-se pouco e, ainda por cima, arrisca-se a apanhar ou ser morto. E colocar detectores de metal nas portas das agências palia um problema imediato, mas posterga um mais grave.
Claro, nada justifica a violência. Nem atraso. Nem mesmo negar um benefício — por mais frustrante que seja. Gritante é o declínio da moral, ética, cidadania e paciência da sociedade em geral. As reações ao descaso e à negligência se radicalizam cada vez mais. Às vezes, nem é preciso ter uma razão propriamente dita. E os médicos, na comissão de frente deste campo de batalha que é a vida, acabam pagando o pato. Triste, não? Uma palavra ou um gesto mal-interpretado numa hora imprópria pode deflagrar este tipo de reação.
Mas, lembrando como foi dito acima, os casos de agressão não necessariamente partem somente dos pacientes.
E, de fato, parece ser difícil se colocar na pele de um perito do INSS. A impressão que dá é seu trabalho não consistir em salvaguardar os interesses do paciente, e sim da instituição da qual faz parte. Mas fica complicado conceder benefícios por problemas de origem neuromusculoesqueléticas quando 80% da população é ou já foi atingida por isso. Já imaginaram o colapso que isso causaria no sistema?
Não pode ser assim. Tem que haver outro jeito para este barril de pólvora não ficar estourando na primeira fagulha.
Não obstante, os pedidos só fazem crescer. Um artigo publicado na revista ÉPOCA (08/02/2010) afirma que “90% foi o aumento de casos de doenças e acidentes de trabalho entre 2002 e 2008”. Deste total, de acordo com o Ministério da Previdência, “30% dos casos de doenças do trabalho relacionam-se a problemas de mão e pulso, típicos do trabalho de escritório e no computador”. Então, para fechar nossa conta, somente nos sete primeiros anos de governo Lula, os gastos do INSS com doenças e acidentes de trabalho cresceram 46% e somaram R$ 12,3 bilhões em 2009. É muita grana! Equivaleria na época quase metade do custo de reconstruir o Haiti (quase US$ 14 bilhões), segundo dados do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Como reverter tal quadro?
O governo conseguiu na época aumentar a arrecadação em 72% na tentativa de cobrir o rombo. Mas não foi suficiente. Então, na sua infinita sabedoria, resolveu lançar mão de alguns cálculos complicados para poder fechar melhor a conta.
Já ouviram falar do RAT (Risco de Acidente de Trabalho), SAT (Seguro Acidente de Trabalho) e FAP (Fator Acidentário Previdenciário)? Pois é.
Calcula-se o RAT, por exemplo, para categorizar as empresas que oferecem mais riscos e assim aplicar um “pequeno” percentual, que varia de 1% a 4%, para compensar o INSS. Se estas empresas são responsáveis por um contingente percentual significativo de doenças e acidentes de trabalho, seria mais que natural que pagassem um pouco mais por isso. Este tipo de cobrança existe, de uma maneira ou outra, desde 1934. “O RAT atende a um bom princípio: incentivar a empresa a investir mais na saúde e segurança”, diz Ernesto Guedes, da consultoria Tendências, responsável por um estudo sobre o assunto divulgado na semana anterior à epoca da publicação da reportagem da ÉPOCA.
Em princípio, a idéia seria até louvável. O problema é que o novo cálculo é feito sem a mínima transparência e com uma leve pitada de arbitrariedade. Eis, por exemplo, a lista de algumas empresas que receberam a classificação de “risco grave” e sofreram aumento deste tributo: agências matrimoniais, as então locadoras de DVD, lojas de cama, mesa e banho, organizações patronais, logística de carga, e escritórios de arquitetura, paisagismo e decoração.
Segundo a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), as novas regras deverão drenar do caixa das empresas em 2010 mais R$ 2,35 bilhões. Isto representa pelo menos 30% acima da arrecadação do ano passado. É quase como se fosse uma tentativa de extorquir mais de quem não tem muito a ver com o problema. “(…) não tem sentido tentar fechar essa conta arrecadando mais em cima de um grupo de empresas que gera grande parte dos empregos no país”, afirma Guedes.
Mais pitoresco ainda é analisar a lista das empresas que obtiveram redução do RAT e passaram a pagar menos: fabricação de cigarros, coleta de resíduo perigoso, produção de aço, bancos comerciais e organizações sindicais.
Prestaram atenção nos dois últimos? Neste ínterim, os pedidos de benefícios continuam sendo indeferidos… E o barril de pólvora continua…
É necessário mudanças que atendam às necessidades daqueles que realmente sofram de coluna sem, ao mesmo tempo, levar a previdência ao colapso. Esta tensa situação seria muito mais aliviada com a criação de forças-tarefas que envolvam diretamente o INSS e o empregador. Teria que existir um projeto de lei obrigando o empregador a remanejar o empregado para uma função que minimize o impacto em sua coluna, aproveitando ao mesmo tempo o seu potencial de trabalho. O INSS, obviamente, seria encarregado pela fiscalização e de recomendar um tratamento adequado. Uma medida como esta reduziria o tempo do benefício, desoneraria a previdência pelo menos neste aspecto, e aumentaria a auto-estima do trabalhador. Mas servem a quem esses interesses?
Até porque, muitos de nossos próprios pacientes presentemente beneficiados com o auxílio doença prefeririam se sentir úteis trabalhando à estarem “encostados.” E se queixam do constrangimento de não conseguirem realizar suas funções, da humilhação imposta pela visita com o perito do INSS e da incompreensão dos patrões e até dos colegas de profissão. O benefício a longo prazo, parafraseando a música do saudoso rei do baião Luiz Gonzaga, “… ou o mata de vergonha ou vicia o cidadão”.
Por isso, caros leitores, compreensão é a palavra-chave deste artigo. Compreensão por parte do paciente quando seu pedido é negado (fácil de dizer, nem sempre fácil de fazer). E compreensão por parte do médico quando seu paciente fica visivel e compreensivelmente frustrado e irritado. Às vezes uma simples palavra amiga e um bom ouvido são tudo que precisamos para evitar escalar uma situação a tal ponto que não tenha mais volta.
Sim, porque compreenção, comunicação, cidadania, ética e canja de galinha nunca fizeram mal a ninguém.