Paradigma é uma coisa difícil de mudar. Mas sem a habilidade de rever conceitos, a humanidade como a conhecemos não evoluiria. Considere este exemplo:

Houve uma reação fortíssima por parte da comunidade médica de Praga em 1847 contra um cientista chamado Ignaz Semmeweiss, cuja “heresia” foi declarar que todos os médicos deveriam desinfetar as mãos com cloreto de cálcio antes das cirurgias. Micróbios (ou “animáculos”) já haviam sido observados em microscópio inventado acidentalmente por Anton van Lewenhooken quase duzentos anos antes, mas ninguém entendia como eles agiam. E tais observações eram desmerecidas como crendices e superstições. Muitas mulheres morriam por febre puerperal (infecção pós-parto) e ninguém correlacionava isto com a falta de assepsia — que era prática comum entre os cirurgiões. Após sua declaração, Semmeweis foi execrado. Hoje em dia assepsia é lugar-comum. O tempo provou que Sommeweiss estava certo: seres microscópicos (bactérias) realmente existiam. E as mortes por falta de assepsia diminuíram exponencialmente. O paradigma da época foi mudado. O atual conceito alopata de que repouso e imobilização sejam as opções principais para tratar afecções neuromusculoesqueléticas deve ser mudado também.

Pensem: repouso absoluto e imobilização são raramente utilizados na recuperação pós-cirúrgica hoje em dia, exceto em casos que envolvam fratura, neoplasmas, doenças debilitantes, febre, e deficiência imunológica. Mães são freqüentemente estimuladas a andar apenas horas depois da cesareana. Mobilização virou algo essencial.

A razão para isto tem a ver com o processo de cicatrização do corte cirúrgico. Quanto mais movimento fisiológico normal o corpo tiver, menos fibrótica a cicatrização será. Pressupõe-se que a formação de quelóide seja minimizada. O paciente teria alta mais cedo, e por isso, menos chance de contrair uma infecção hospitalar.

Mas considerem este axioma, caros leitores: se mobilização é recomendada horas após cirurgia nos meios alopatas, por que os mesmos ainda indicam repouso e imobilização para casos de bursite, tendinite, lesões por esforço repetitivo, e problemas de coluna em geral?

É público e notório que 60% a 80% da população já teve ou tem problemas de coluna. A grande maioria invariavelmente fica assintomática (pelo menos por enquanto) após aproximadamente 06 semanas. Se fomos rezar de acordo com esta cartilha, basta receitar repouso e analgésicos/antiinflamatórios, que as pessoas estariam destinadas a “melhorar” de qualquer jeito. É fácil se acomodar à esta situação, tanto o médico como o paciente. Todos ficam felizes, mas o problema não é resolvido — apenas procrastinado.

É óbvio que imobilização minimiza a dor. A curto prazo o problema é resolvido. Mas e depois?

Em 1987, pesquisadores (Spitzer, Le Blanc e Dupuis) publicaram na prestigiada revista científica Spine (nº 12) um artigo intitulado Report of the Quebec Task Force Focus on Spinal Disorders (Relatório da Força de Trabalho do Quebec com Foco em Afecções da Coluna). Nele, concluem que “repouso não é necessário para dores lombares sem irradiação significante. Quando prescrito, não deveria durar mais do que 02 dias. Repouso prolongado pode ser contraprodutivo”.

Existe uma minoria (5% a 15%) deste universo de 80% da população, cujas dores não passarão com imobilização e nem com tratamentos convencionais. E estas pessoas, como ficam? A equação repouso + medicação = alívio perde força e o paradigma começa e se esfacelar.

A recuperação de lesões neuromusculoesqueléticas obedece a 03 fases distintas e cronológicas: inflamação, reparos e remodelamento. Cada um deste é imprescindível para o processo recuperativo. Inteferir com este curso natural só prejudicaria o paciente. O ideal seria monitorar estes passos com uso do gelo para debelar efeitos mais nocivos do processo inflamatório, e reduzir a dor à um nível tolerável. Sentir dor, aliás, é importante para o processo recuperativo. Além de ser um alarme de defesa, evita com que o paciente se extrapole em atividades potencialmente nocivas.

É consenso que os mais modernos tratamentos na área de reabilitação recomendem movimento (e não repouso) para pacientes convalescendo de problemas de coluna ou de outras afecções neuromusculoesqueléticas.

Se o repouso for realmente imprescindível, seria até o fim do 3º dia, geralmente no final da primeira fase. Depois desta, as células reparatórias (fibroblastos) entram em ação e tenderiam a causar fibrose se não houvesse o dito movimento fisiológico.

A cicatriz, mais dura e desprovida de circulação do que o tecido original, deve ser mantida ao mínimo. Mobilização estimula a formação adequada do material cicatricial, e diminui a tolerância à fadiga dos tecidos afetados. O objetivo da reabilitação é minimizar a área da cicatrização, e estimular a extensão no mesmo sentido paralelo das fibras afetadas, recuperando a função normal do tecido o mais amplamente possível.

Imobilização prolongada tem efeito negativo nos músculos, tendões, ligamentos e cartilagens — e pode acarretar em até 20% de perda muscular por semana. Os tendões perdem flexibilidade apenas dias após serem imobilizados e as articulações também são afetadas. No primeiro dia de imobilização, observa-se pequena diminuição de condrócitos (células reparadoras da cartilagem) — que começam a degenerar-se a partir do segundo dia. A quantidade de proteoglicanos começa a diminuir após o 4º dia. Há significante diminuição dos condrócitos após 02 semanas. Com 45 dias, começa a formar adesões entre as cartilagens com formação cística. Depois de 90 dias, há úlceras com penetração para o osso subcondral. Pensem antes de utilizar um colar cervical, colete lombar ou engessar uma articulação por bursite. Portanto, caros leitores, imobilizar sem motivo não dá.

E se, além da mobilização, a volta ao trabalho também fosse recomendada — de preferência, o quanto antes (razoavelmente falando)? Surpresos com este conceito? Este paradigma assusta?

Imaginem o dilema dos peritos do INSS para avaliar um contigente populacional endêmico de 80% que sofre de coluna e decidir quem recebe ou não o benefício. Qual o critério? Como objetivar um problema de alto teor subjetivo? Até que ponto a Previdência sustentaria tal oneração? A solução seria reunir-se com os empregadores com a finalidade de readaptar o beneficiado de volta ao trabalho. Custa menos para o INSS, há menor burocracia para o empregador, e recupera a autoestima e produtividade do trabalhador. Todos, afinal de contas, querem ser úteis. E todos ganham com isso.

De fato, eis aqui um novo paradigma: trabalhar pode até se positivo para recuperar-se de um problema de coluna. Se aquela pessoa estiver num bom programa de reabilitação, a volta para o trabalho (com limitações) pode ajudar a promover a recuperação (e não perpetuar a doença), sem falar na melhora do estado emocional do paciente. “Manter as pessoas trabalhando é uma terapia muito eficaz” (Cats-Baril e Frymoyer, Spine 1991). “Períodos prolongados sem trabalhar faz com que a possibilidade de recuperação e do retorno ao trabalho fiquem progressivamente menos possíveis” (Weddel, Spine 1987). A questão biopsicossocial que precisamos proporcionar ao paciente é primeiro restaurar a função para então promover o retorno ao trabalho. Por incrível que pareça, o controle e diminuição da dor vêm em terceiro lugar. Naturalmente, haverá diminuição do estresse relacionado e conseqüente redução do comportamento anormal da doença.

O que há de mais moderno em reabilitação da coluna são exercícios específicios para restaurar a função normal das articulações. Em 08 pontos, os exercícios têm que ser feitos de maneira EQUILIBRADA e REGULAR, com objetivos REALISTAS, bastante VARIADOS, os mais ESPECÍFICOS possíveis e sem SOBRECARGA, visando a total RECUPERAÇÃO, mas respeitando integralmente a INDIVIDUALIDADE do paciente.

Recuperar e reintegrar, mas sem (na medida do possível) imobilizar: eis aí nosso novo paradigma.