Sem querer pecar pela falta de modéstia, há um elo em comum entre a minha pessoa e alguns grandes personagens da História, como Alexandre Magno, Luiz XIV, Gengis Khan, Isaac Newton, Martinho Lutero, João Calvino, Leonardo Da Vinci e Benjamin Franklin: todos nós sofremos de Gota a partir de algum momento de nossas vidas — um seleto clube do qual eu preferiria não fazer parte.
Supõe-se que o nome “Gota” (“gout” em inglês) tenha sido criado pelo monge dominicano Randolfo de Bocking, lá pelo ano 1200, na Baixa Idade Média — derivado do latin gutta — expressando a forma lenta (de conta-gotas) como se manifesta.
É uma doença reumatológica, inflamatória e metabólica relativamente comum. De cada mil pessoas, 2 ou 3 são afetadas (0,3% da população, portanto). Sua maior incidência ocorre entre os 30-50 anos de idade, com predomínio do sexo masculino (95%) — e pode se manifestar depois da puberdade ou na idade adulta. No sexo feminino, ocorre geralmente após a menopausa.
Gota pode ser classificada em dois tipos:
Esta afecção, como a diabetes (ver artigo 74), é bem antiga. Figura amplamente pela História e rivaliza pandemias de enfermidades infecciosas e transtornos mentais. Foi descrita pela primeira vez por Hipócrates no século V a.C., que também reconheceu e descreveu a característica dor no dedão do pé (podagra). Galeno, no século II d.C., descreveu a gota tofácea, comentou a aparição familiar da enfermidade, e a atribuiu à “corrupção, intemperança e a um caráter hereditário.” Sua descrição definitiva tal qual a conhecemos hoje foi feito no século XVII pelo famoso médico Thomas Sydenham, em 1683. O ácido úrico, como componente dos cálculos, foi descoberto em 1776 pelo farmacista Carl Wilhelm Scheele.
Gota é relacionada com o processamento celular dos alimentos. Por isso, até relativamente pouco tempo atrás, era considerada uma doença da gula e dos excessos da aristocracia. Existia até um ditado dos tempos medievais que dizia: “na juventude, o vinho vai parar na cabeça; na meia-idade, o vinho vai parar nos pés.” Se o consumo de bebida e comida requintada era a causa, então a Gota era considerada a doença dos ricos. Mas isto se provou uma falácia. Porque, contrário à crença popular, a alimentação das classes mais abastadas não mais parece ser um fator predominante de predisposição à afecção. De fato, a forma primária da Gota é de origem desconhecida. Mas com um componente genético.
A razão pela qual relacionou-se Gota durante muitos séculos à uma determinada classe social, foi porque os excessos alimentares e o alto consumo de carne eram privilégios quase exclusivos dos reis e aristocratas da Antiguidade e Idade Média (nela, eventualmente, o clero e a classe burguesa se juntaram ao clube dos “gotosos”). Hoje em dia, comer mal e em excesso se popularizou a tal ponto dela ter sido “democratizada” para o populacho em geral.
A afecção se manifesta como uma inflamação articular (artrite) iniciada durante a madrugada. Nota-se inchaço (edema), vermelhidão (rubor), calor e muita dor. Geralmente afeta uma única articulação, sendo que, em 60% dos casos, a primeira metatarsofalangeana (o popular dedão do pé) — alguns sofredores de coluna podem confundir isto com dores ciáticas. Mas, pode também acometer inicialmente o dorso do pé e o tornozelo, bem como qualquer articulação, na medida em que a doença evolui. Apesar da preferência pelas articulações dos membros inferiores (tarso, joelho e quadril), ocorre também no cotovelo (bursa olecrânica) e mãos. Observa-se clinicamente que os uratos têm uma certa preferência por articulações previamente lesadas. Uma distensão antiga no joelho ou até uma velha lombalgia pode servir de foco para a Gota, atrapalhando assim o diagnóstico clínico.
Sim, de fato, os sintomas podem se misturar aos da artrite reumatóide (veja este artigo). E não é lá muito comum, mas podem até ser confundidos com os de dores relacionadas à coluna — como ocorreu, por exemplo, com estes dois pacientes (nomes fictícios) atendidos no nosso consultório:
Antes de discutirmos níveis dele no sangue, cabe agora clarificar: o que é, exatamente, o ácido úrico, como é produzido e por quê?
Ácido úrico é um lixo metabólico, geralmente eliminado pela urina. Representa o produto final da degradação das purinas (particularmente a adenina e a guanina) que constituem 50% das bases dos ácidos nucléicos — RNA e DNA. Alguns aminoácidos, como as purinas e pirimidinas, contêm nitrogênio e são os “tijolos” das grandes moléculas informacionais: as proteínas e os ácidos nucléicos.
Nos peixes e animais marinhos, o produto final é amônia. Apesar de ser um composto altamente tóxico, é solúvel em água — o que existe em abundância na vida desses animais. Como os animais terrestres não gozam de um ilimitado suprimento de H20, seus organismos deram um passo a mais. No caso do homem e dos macacos antropóides, o ácido úrico, pouco solúvel em água, tornou-se então o produto final.
Porém, apesar dos casos descritos acima, nossa equação não é assim tão simples. A elevação excessiva de ácido úrico no sangue (hiperuricemia) por si só não constitui necessariamente Gota. É um engano presumir isso. Além da hiperuricemia (acima de 7mg/dl no homem e 6mg/dl na mulher), de acordo com o livro Tratado de Medicina Interna de Cecil-Loeb (Ed. Interamericana, 1.192 pgs), necessita-se constatar as deposições de cristais de urato nos tecidos e articulações.
Para isso, basta visualizá-los no líquido sinovial dentro da articulação afetada por meio de um microscópio de luz polarizada. Este exame serve também para diferenciar a Gota da mais branda ou da Pseudogota (nesta última, os depósitos são de pirofosfato de cálcio, e não de cristais de urato). Um clínico menos atento pode confundí-la também com uma artrite ou até com celulite séptica. Ou, como vimos acima, como problemas de coluna.
Cristais de urato, à propósito, são resultados da reação do ácido úrico com as bases no sangue. E o resultado da reação ácido-base é o sal, que eventualmente cristaliza. Por isso o gotoso descreve a sensação da articulação afetada como “salpicadas de cacos de vidro”!
Outra maneira de diagnosticar a Gota seria observar a presença de tofos – lesões macroscópicas com depósito focal de uratos moles nos tecidos (semelhante a giz). Ocorrem frequentemente na borda da orelha, ponta do nariz, e na superfície das articulações (cotovelos, joelhos, mãos e pés). É claro que o diagnóstico pode ser apenas sugerido (mas não confirmado completamente) com base nos sinais e sintomas do paciente.
Gota por si só não mata ninguém. Mas, pode ocorrer concomitantemente ou estar relacionada com certas doenças como diabetes, leucemia, anemia perniciosa, obesidade, doença de Paget, hipertensão arterial e a dislipidemia (elevação dos níveis de triglicérides e colesterol) — estas, sim, potencialmente graves e com níveis mais elevados de letalidade. Sem falar do possível compromentimento (e até falência renal) devido aos cálculos de uratos. E risco de acidente vascular cerebral.
Cerveja e vísceras são normalmente citadas como sendo fontes de purinas, assim como sardinhas, anchovas, carnes, ovos, queijos e leguminosas (amendoim, feijão, lentilha, ervilha e principalmente a soja). Há muito pouca quantidade de purinas nos vegetais. E é praticamente ausente nas frutas e cereais.
Cafeína (componente do café e do chá preto), teobromina (do chocolate), xantina (encontrada nos produtos animais e em algumas plantas) são outros tipos de purinas.
Existem alguns mitos sobre a Gota que necessitam ser esclarecidos. Um deles é afirmar que somente restrição alimentar controla a doença. Se o ácido úrico é um lixo metabólico produzido pela nossa necessidade de processar moléculas que contém nitrogênio, uma dieta pobre em purinas resolveria nosso problema. Entretanto, a simples restrição de alimentos ricos em purinas não assegura a remissão dos sintomas da Gota, embora possa certamente aliviá-los. Não é tão simples assim. Isto porque apenas 10% dos ácidos úricos eliminados pela urina têm origem na alimentação, segundo o livro Atualização Terapêutica do prof. Jairo Ramos, et. al. (Ed. Artes Médicas, 2.180 pgs.). Nosso corpo é responsável pela produção de aproximadamente 90% de ácido úrico. E a alimentação nos supre com somente 10 a 12%. Mas a dieta ajuda.
Minha primeira crise de gota foi aos 32 anos. Há um fator hereditário: na minha família, acometeu meu pai, meus tios e um dos meus irmãos. Mas no meu caso específico, só o fato da carne vermelha e da cerveja não fazerem mais parte de meu menu quotidiano (exceto em esparsas ocasiões) fez com que as crises se tornassem bem raras (knock on wood! Ou “Pé-de-Pato, Mangalô Três Vezes”, como dizia minha avó…).
Um parêntese: já ouvi em mais de uma ocasião pacientes me contarem preferir as crises de gota à restringir a cervejinha e aquele churrasquinho de final de semana. Nunca entendi isso. Mas, por outro lado, considero-me frouxo e covarde em relação à dor. Prefiro não sentí-la — mesmo que tenha que abdicar de alguns prazeres terrenos. O peixe, afinal de contas, morre pela boca. Sem falar no desastre que é a imagem de um Quiropraxista capengando em plena crise gotosa e tentando tratar um paciente com dor. É irônico, para dizer o mínimo. Gota é associada com excesso e indisciplina. E há uma certa verdade neste estigma — mesmo que não seja só isso.
Sendo assim, acessos de gota podem também ser desencadeados por frio, consumo de proteína, cansaço físico, traumatismo local (aconteceu comigo uma ou duas vezes), abuso gastronômico ou até, mais raramente, por doenças infecciosas. As crises podem durar de 5 a 7 dias e passam por elas mesmas. Com a evolução lenta da doença, o período assintomático pode tornar-se cada vez menor e as crises mais longas. Pode até envolver mais de uma articulação.
Então, eis o resumo da ópera:
Descrevo essa sensação como se colocassem meu tornozelo esquerdo numa prensa que vai sendo apertada gradativamente misturada à sensação de andar com a articulação cheia de minúsculos cacos afiados de vidro. A pior parte é que piora com repouso. Dormir vira um suplício!
Suponho que a única coisa positiva disso tudo foi eliminar a sensação de invencibilidade que o clínico costuma ter. Que sentir dor na própria pele proporciona mais humildade e empatia no tratamento dos pacientes (que efetivamente sentem dor).
Gota é uma doença de gerenciamento. Não tem cura. Uma dieta específica deve ser orientada; doenças associadas devem ser tratadas; e os níveis de ácido úrico no sangue devem ser normalizados. Sim, caros leitores, ainda que ácido úrico alto não seja sinônimo de Gota, o controle do mesmo minimiza a reação que forma os cristais de urato.
Então, o bom e velho conselho médico de diminuir o consumo de alimentos ricos em proteínas (carnes, vísceras e frutos do mar, por exemplo) ainda vale. Abstinência alcoólica, sobretudo dos fermentados (vinho, cerveja, etc.) terá um efeito benéfico no controle da doença. Mesmo que a alimentação seja responsável por somente 10% do ácido úrico que produzimos, já é alguma coisa.
Alguns médicos optam por receitar produtos naturais como o óleo de copaíba. Gelo causa alívio em alguns e aumento da dor em outros. Quiropraxia não costuma tem efeito nenhum. Pode até piorar. É, portanto, importante que o profissional reconheça a doença e indique o paciente para um especialista. A maioria dos médicos prescrevem medicamentos específicos para controlar os níveis de ácido úrico no sangue ou reduzí-los rapidamente nas crises. Por isso, em caso de gota, consulte seu médico. Só ele pode prescrever e decidir que remédios usar.
Importante neste ínterim controlar a glicemia, conferir a pressão arterial e dosar os níveis de colesterol e triglicérides no sangue do gotoso. Atenção é fundamental.
Afinal de contas, prudência e canja de galinha não fazem mal à ninguém (bem, talvez canja de galinha faça mal ao gotoso…).