Sebastião é um homem de 55 anos de idade, acima do peso, que há cerca de dois anos começou a sentir dormências nas mãos ao dormir. Agora esta perda de sensação ocorre com frequência, e se alastra pelas pernas abaixo do joelho. Alguém comentou que estes sintomas podem ser causados por algum problema de coluna. Ele então fez uma ressonância magnética, que acusou discopatia degenerativa com algumas hérnias discais cervicais e lombares. Coluna? Talvez. Mas que tal um simples teste de glicose antes? Sim, porque nosso paciente pode estar apresentando sintomas de neuropatia diabética. E precisamos descartar esta possibilidade antes de começar a tratar sua coluna.
E se, durante uma anamnese mais detalhada, o clínico descobrir que Sebastião sofre de repentino aumento de frequência urinária; ficar morrendo de sede sem motivo; perder peso sem nenhuma explicação; e passar períodos de letargia e desorientação — então precisamos definitivamente descartar esta possibilidade antes de começar a tratar sua coluna. Depois do teste de glicose, indicá-lo a um endocrinologista seria o passo seguinte.
É uma doença tão velha quanto a humanidade. Já havia até menções à ela no Egito antigo pelo papiro de Ebers. Isto 15 séculos antes de Cristo! Acredita-se que foi no século II que esta afecção foi batizada. Areteu da Capadócia chamou-a de uma antiga palavra grega, Διαβήτης (diabetes), que, na época, significava “sifão” ou “passar através de”.
Claro que, com o decorrer dos anos, a palavra “sifão” no grego moderno ficou mesmo “σίφων”. A doença tomou para si a palavra original, Διαβήτης.
O nome evoca a eliminação exagerada de urina pelos rins (poliúria). Para os antigos, a água entrava e saía do organismo do diabético sem fixar-se nele. Galeno também estudou a diabetes com detalhes na mesma época. Há registros na Índia que a urina tinha um sabor doce já no ano 500 d.C.. No século XI, Avicena (Ibn Sina) fez um relato minucioso na sua famosa obra Cânon da Medicina. Após magistral descrição do estudioso Thomas Willis em 1679, o diabetes ficou desde então definitivamente reconhecido. Mas faltava descobrir o mecanismo da doença.
Willis era um talento só. Um de seus feitos mais famosos foi ter descoberto um círculo de artérias na base do cérebro: o famosos círculo de Willis.
Mas a presença de glicose na urina só foi identificada mesmo em 1775. Suspeitava-se que havia a deficiência de alguma substância que causasse este aumento de glicose, mas ninguém sabia o que ela era. Seguindo pesquisas por Claude Bernard (1848), deduziu-se que era de alguma maneira produzida no pâncreas. Isto foi motivo de muita discussão e controvérsia. Afinal de contas, o conhecimento da época indicava que o pâncreas era um órgão digestivo. Como poderia ter também uma função endócrina?
Aí veio Paul Langerhans, que matou a charada em 1869. Sim, o pâncreas é um órgão de ação exócrina com produção de enzimas que atuam na digestão. Mas também possui células de ação endócrina que secretam hormônios que interferem no equilíbrio metabólico. Mais do que depressa, nosso cientista batizou-as de ilhotas de Langerhans. Mas, foi somente em 1921 que os canadenses Frederick Banting e Charles Best conseguiram o feito de isolar a insulina, hormônio produzido por estas células (as betas). Esta descoberta significou uma das maiores conquistas médicas do século XX, e mudou a vida dos diabéticos para sempre. Hoje, sabemos que a insulina é a responsável por levar glicose para dentro das células. Portanto, e mais importante, é ela que controla os níveis de açúcar no sangue. Sem insulina, a glicose sobe à níveis perigosos. E há cada vez mais gente sofrendo de diabetes. Na época que este artigo foi originalmente escrito, em 2008, a Organização Mundial de Saúde estimava que havia cerca de 171 milhões de diabéticos no mundo. E a tendência deste número seria DOBRAR até 2030.
Hoje este número está na casa dos 422 milhões. Ou seja, os casos mais que dobraram — oito anos antes da projeção de 2008.
A diabetes está entre as cinco doenças que causam mais mortes. E vem crescendo. Estima-se que 50% dos diabéticos do mundo não sejam diagnosticados. 34.2 milhões de pessoas nos E.U.A. (6,2 milhões em 2008), de acordo com os CDC americano (Centers for Disease Control and Prevention) — aproximadamente 10% da população. Se considerarmos pré-diabéticos, este número sobe para 88 milhões (41 milhões em 2008) — 33% dos americanos. Os CDC classificaram este aumento como “epidêmico”, e o custo aos cofres americanos chega na casa das centenas de bilhões de dólares. Aqui no Brasil, de acordo com a Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), temos mais de 12 milhões de brasileiros com a doença — fora os não-diagnosticados.
Há 02 tipos de diabetes: o mellitus e o insipidus. No primeiro, há glicose na urina; no segundo, não.
Mas, afinal de contas, para que serve a insulina? Ela é responsável por levar a glicose para dentro das células, que será eventualmente utilizada para produção de energia. A insulina é uma espécie de hormônio polipeptídeo que, além de maximizar a utilização da glicose, exerce outras funções, como estimular crescimento antes da consolidação óssea. Seu aumento repentino e excessivo pode levar à hipoglicemia. O corpo, detectando menos glicose no sangue, produz menos enzimas para a gluconeogêsese. Isto significa menores taxas de glicogênio, que aumenta a absorção celular da glicose.
Após uma refeição, a glicose aumenta no sangue. As células-beta das ilhotas de Langerhans nos pâncreas secretam insulina, que age no mecanismo metabólico das gorduras — parte da glicose é captada pelas células adiposas e transformada (sintetizada) em triglicerídeos. Com uma bem-regulada resposta da insulina, os carboidratos são usados preferencialmente para obtenção de energia. E o excesso que não são sintetizados em glicogênio (fonte de energia muscular) serão transformados e armazenados como gorduras. O problema é quando o diabetes se desenvolve. E se associa à múltiplas anormalidades metabólicas (alto nível de colesterol e outros lipídeos no sangue). Muitos destes pacientes apresentam vários fatores de risco adicionais, entre eles doenças vasculares como aterosclerose, arteriosclerose, colesterol elevado, hipertensão arterial, coronariopatias e acidente vascular cerebral (AVC). Também obesidade, inatividade e, finalmente, múltiplas lesões microcirculatórias.
São nelas que residem a explicação porque a diabetes pode ser confundida com problemas de coluna.
Quando a taxa de glicose atinge mais de 180 mg/dl, a excreção urinária aumenta. A passagem das moléculas de glicose, que são largas por natureza, causam danos aos glomérulos dos rins. Isto aumenta os níveis de glicose nos túbulos. E, por osmose, causa menor absorção de flúidos. Aí a diurese acontece (poliúria). O normal é urinarmos cerca de 1,5 l/dia. Este volume aumenta bem mais nos diabéticos. Perde-se muito líquido e glicose também, que não dilui muito bem através dos poros de suas membranas celulares. Isto causa um aumento de glicose extracelular que aumenta a pressão osmótica. Para equalizar, H2O é expulso das células. Esta desidratação causa sede (polidípsia). A mesma pressão osmótica faz com que lipídeos altos passem pelas membranas das capilárias incompetentes (um processo conhecido como transudação), danificando-as. Isto causa disfunção no endotélio e nos músculos lisos das artérias periféricas. O aumento de colesterol e lipídeos causam tromboses e coágulos na corrente sanguínea, que, em menor escala, entopem as capilárias já danificadas e causam mini-infartos, danificando a área do tecido afetada por falta de oxigênio.
De fato, por causa disso, diabetes é responsável por até 70% das amputações. Um diabético fumante tem 30% de risco de amputação dentro de 05 anos.
Estes danos microvasculares afetam por tabelinha as pequenas artérias que irrigam os nervos (vasa nervorum). Mais suscetíveis, as raízes dos gânglios dorsais e as fibras sensórias são infartadas. Este tipo de neuropatia ocorre entre 30 a 50% dos diabéticos. O paciente se queixará de dores nas regiões equivalentes e a radiculopatia terá se instalado. Se desenvolver polineuropatia, será especialmente sensória e bilateral. A neuropatia periférica abrange especialmente a parte distal dos membros (nas mãos e abaixo dos joelhos). A disfunção de dor será sensória e motor. Podem ocorrer fraqueza e parestesia com diminuição de temperatura e vibração. Dermopatias também, bem como mononeuropatias, amiotrofias, paralisia do 3º nervo cranial, neuropatia toracoabdominal e até neuropatia autonômica. Os reflexos serão ausentes ou diminuídos. E haverá diminuição de condução nervosa na eletroneuromiografia.
Resumindo: lesões microcirculatórias eventualmente afetam o sistema nervoso. E por isso, os sintomas muitas vezes se confundem com os de problemas de coluna. De fato, “a neuropatia diabética pode anteceder em até 10 anos o diagnóstico do diabetes”, afirma a endocrinologista Valéria Vasconcelos, cujas valiosas contribuições tornaram este artigo possível. Dra. Valéria, que clinica em Ilhéus-BA há mais de 20 anos, reitera que, “quando o indivíduo vai procurar auxílio médico, habitualmente vem evoluindo anos a fio com queixas de parestesia: dormência, formigamento, sensação de enrijecimento e inchaço nos dedos das mão, etc.. Sabemos que tais sintomas podem representar a manifestação precípua de Neuropatia Diabética. Ou seja, já há o Diabetes Mellitus incipiente com pouca manifestação dos sintomas clássicos — sede intensa, aumento da diurese, aumento de apetite e perda de peso”.
Esses mini-infartos que ocorrem nas pequenas artérias que irrigam os nervos (vasa nervorum) são só parte da equação. Ocorre também um processo chamado de acidose metabólica.
Na ausência de insulina então, os ácidos graxos são mobilizados e armazenados como substrato energético primário. Com menor captação de glicose pelas células, o diabético passa a depender maciçamente do metabolismo das gorduras para obtenção de energia. O aumento de ácidos graxos livres, triglicérides e cetonas produz um excesso de cetoácidos e uma tendência para acidose.
Quanto menos insulina for secretada pelos pâncreas, menos glicose será usada pelo organismo. Mas ele ainda precisa de energia e vai buscá-la na gordura. Para ser metabolizada em energia, a gordura necessita ser dividida antes em ácido acetoacético. E o aumento da concentração deste ácido nos flúidos extracelulares diminui o pH. Esta acidose metabólica resultante deprime o sistema nervoso central, causando desorientação, depressão e coma. Pode levar até à morte. Mesmo se a acidose for em uma escala bem menor, ela terá um efeito inibitório na condução elétrica dos nervos. Portanto, o diabético com problemas de coluna teria, em tese, uma recuperação lenta.
Então, danos microvasculares que causam infarto nos nervos, adicionados à diminuição de pH que causa menor condução nervosa, são os motivos porque os diabéticos podem ter sintomas parecidos com problemas de coluna.
É possível diminuir estes sintomas controlando a glicose no sangue com dieta e exercícios. Este controle alimentar reduz a quantidade de carboidratos e gorduras. Temos que aumentar o consumo das vitaminas B e C (veja artigo 36). Nada, porém, substitui o controle glicêmico intensivo. Dois grandes estudos (DCCT e UKPDS) mostraram que tal medida é capaz de retardar o aparecimento e a progressão de todas as complicações do diabetes. Controle glicêmico (dentro dos limites da normalidade) é a chave.
Exercícios aumentam a atividade muscular. Maximizam o transporte de glicose para as células musculares (mesmo na ausência de insulina) e diminuem a necessidade de medicações orais e das doses do hormônio. Não as eliminam, pois a indicação de insulina no tipo 1 é por ineficácia e no tipo 2, por falência da produção. Portanto, exercícios aeróbicos e de baixo impacto como natação e Pilates ajudam, mas não substituem o tratamento. Quiropraxia ajuda a aliviar um pouco as dores neuropáticas.
Nos últimos anos têm ocorrido pesquisas que visam procurar maneiras de minimizar o sofrimento do diabético com novas descobertas, como medicações orais que atuam em diversos pontos na gênese do diabetes, e insulinas de melhor qualidade para mimetizar o organismo sem a doença. Procedimentos cirúrgicos, como o transplante de pâncreas, passaram a ser considerados alternativas viáveis à insulina desde 1966. Hoje, a medicina tem buscado fazer o transplante apenas das ilhotas de Langerhans. O procedimento é simples, tem poucas complicações e exige uma hospitalização de curta duração. O grande problema é a obtenção das células. Para conseguir um número razoável delas, são necessários em média três doadores post-mortem. Mas, pelo menos na época que este artigo foi originalmente escrito, não existia estudos comprovando eficácia a longo prazo.
E aí entra o que se chama hoje de cirurgia metabólica. Ao longo dos anos, foram observadas “transformações endócrinas importantes” nos pacientes que se submetiam a cirurgia bariátrica — “uma melhora muito rápida nos níveis de açúcar na maioria das pessoas com diabetes, a ponto de muitas vezes não ser mais preciso usar antidiabéticos após a cirurgia”. Mapeado e definido o exato procedimento cirúrgico, apesar de muito controverso no início, foi finalmente regulamentado pelo CRM em 2017.
Nos últimos 20 anos, o número de diabéticos na América do Norte vem aumentando consideravelmente. O aumento de sedentarismo somada à má alimentação contribuem para estas estatísticas. Por isso, apesar de ocorrer em todo o mundo, o diabetes mellitus (especialmente a do tipo 2) é mais comum nos países desenvolvidos. Não obstante, o maior aumento é esperado na África e na Ásia, onde abrigarão a maioria dos diabéticos em 2030. Isto reflete a tendência de urbanização e mudanças de estilos de vida.
Felizmente, a busca por uma vida saudável faz as pessoas mais atentas às alterações no próprio corpo. A divulgação expressiva nos meios de comunicação ajuda a diagnosticar a doença no início.
E você? Já mediu sua glicose hoje?