Se a fé remove montanhas, poderia então influir na melhora de uma doença ou até de um tratamento de coluna — indo além de um simples placebo? A priori, dores de coluna são imparciais, democráticas e não escolhem religião. Podem ocorrer tanto em católicos, protestantes, muçulmanos, hinduístas, budistas ou ateístas — pelo menos na experiência clínica deste agnóstico escriba. Mas será que existe de fato alguma relação entre religiosidade e saúde?
Convém primeiro uma breve discussão sobre neurobiologia. A capacidade de raciocínio lógico e cognitivo nos separam de outros animais. Contudo, um interessantíssimo artigo publicado na revista ÉPOCA de 23/03/2009 incutiu sobre a importância da religião no desenvolvimento da raça humana. Jordan Grafman, chefe do departamento de neurociência cognitiva do Instituto Nacional de Distúrbios Neurológicos e Derrame, em pesquisa publicada naquele ano na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences, descobriu que as partes do cérebro ativadas durante a leitura de frases relacionadas à fé eram quase as mesmas usadas para entender as emoções e as intenções de outras pessoas.
Trocando em miúdos, isso significa que a capacidade de crer em uma entidade superior, seja ela qual for, talvez tenha surgido ao mesmo tempo que a habilidade de prever o comportamento do próximo. Vejam as extraordinárias repercussões que isto pôde ter tido na sobrevivência da raça humana e na formação da sociedade. A religião parece ser, portanto, peça fundamental neste quebra-cabeça.
Charles Darwin já falava disso mais de 150 anos atrás no seu livro A descendência do homem de 1871. O criador da teoria da evolução especulava que “uma crença em agentes espirituais onipresentes parece ser universal”. Certo parecia estar Darwin, que dizia que tínhamos predisposição biológica “a ter crenças, entre elas a religiosa”.
Mas tudo isso efetivamente faz melhorar alguma afecção? Quando uma pessoa reza, de acordo com Andrew Newberg, neurocientista da Universidade da Pensilvânia, ocorre “alterações no lobo frontal (relacionado à memória e às regulações das emoções) e no sistema límbico (ligado às emoções)”. O ato de rezar acalma e reduz a ansiedade. Dr. Newberg especula que pode alterar até “a química cerebral, como os níveis de serotonina e dopamina, que regulam nosso humor, nossa memória e o funcionamento geral de nosso corpo”. Mas ressalva que ainda não há conclusões definitivas a respeito. Prece é uma espécie de meditação. Mesmo com estudos sendo continuamente realizados para compreender melhor a meditação e a prece, a sacada parece ser mesmo por aí.
Pensem um pouco a respeito disso… Dopamina? Se o ato de rezar altera níveis de dopamina, poderia, em tese, a religiosidade exercer algum grau de benefício para pacientes de Parkinson (cuja diminuição de dopamina chega a 80%)?
E quanto à serotonina? Considerada a principal substância associada com a produção de sono, é um poderoso neurotransmissor. Sua deficiência diminui o apetite e o desejo sexual. Causa insônia e depressão. Controla o temperamento. Estimula a produção de encefalina, que, juntas, inibem os estímulos da dor. O correlacionamento entre a religiosidade e serotonina foi reforçado após ter sido descoberto um gene ligado à fé. O vmat2 seria responsável por gerar pensamentos religiosos e também estaria relacionado com o transporte de neurotransmissores, entre eles a serotonina. Dean Hamer, o cientista americano autor deste estudo, publicou os resultados no controverso livro O gene de Deus .
Portanto, em teoria, o ato de rezar seria um fator importante no controle da dor e da depressão. Agora, mesmo que dores de coluna ocorram tanto nos religiosos quanto nos não-religiosos, a recuperação de quem consegue se concentrar, seja pela prece, seja pela meditação, talvez seja potencialmente mais rápida. Isto, sim, pode-se observar clinicamente. É controle da dor na acepção mais simples da palavra.
Os mesmos estudos conduzidos pelo Dr. Newberg mostram que o lobo parietal fica menos ativo durante preces e meditações. Como esta região do cérebro é responsável por noções de tempo e espaço, explicaria a sensação de imersão no mundo e a ausência de passado e futuro muitas vezes relatadas por religiosos.
A religiosidade, contudo, não parece influenciar somente no controle da dor. “As doenças relacionadas ao estresse, especialmente as cardiovasculares, como a hipertensão, o infarto do miocárdio e o derrame, parecem ser as que mais se beneficiam dos efeitos de uma espiritualidade bem desenvolvida”, afirma Marcelo Saad, doutor em reabilitação, especialista em acupuntura e membro integrante do programa de medicina integrativa e complementar do Hospital Albert Einstein.
Mas será que religiosidade poderia trazer certos benefícios à saúde, especialmente no que concerne doenças cardiovasculares, como ataques cardíacos, hipertensão, e até derrame? Um estudo que acompanhou um grupo de pessoas desde 1992, conduzido por Robert Hummer (sociólogo e professor da Universidade do Texas), chega ao extremo de afirmar que quem nunca praticou uma religião tem um risco duas vezes maior de morrer nos próximos oito anos do que alguém que a pratica uma vez por semana.
A verdade é que sempre haverá necessidade de mais estudos para confirmar este correlacionamento. “As evidências da influência da fé na saúde são promissoras e mais que justificam o investimento em outros estudos”, afirma o neurologista brasileiro Jorge Moll, diretor do Centro de Neurociência da Rede Labs-D’Or, rede de laboratórios particular do Rio de Janeiro.
O Hospital Albert Einstein acredita nesta hipótese. Um centro de medicina integrativa e complementar foi implantado naquela instituição. O homem responsável por isso, o médico Paulo de Tarso Lima, chega a afirmar que “não existe sentido negar a influência da religião na vida das pessoas, especialmente no Brasil, onde 99% da população acredita em Deus”. E controlar a dor podem bem servir aos 80% que sofrem da coluna.
Vale ressaltar, como mencionado no primeiro parágrafo, que o religioso não é necessariamente mais saudável do que o ateu. Estes estudos apenas sugerem que a religiosidade teve um papel fundamental no desenvolvimento humano; que as pessoas que oram ou meditam aparentam ter menos ansiedade e controlam melhor a dor; que também pode haver um benefício no combate das doenças relacionadas ao estresse.
Dito isso, este artigo, em momento algum, advoga a conversão dos diletos leitores para quaisquer tipos de religião. Apenas cita o resultado de algumas pesquisas que correlacionam a capacidade de concentração da prece e da meditação, seja no controle da dor, ansiedade e depressão (pela serotonina), como no controle do estresse e da consequente e possível prevenção de doenças cardiovasculares. Tais pesquisas não são conclusivas, mas ajudam a entender a difícil tarefa de estabelecer como nós chegamos à esta maravilhosa (e por vezes terrível) raça humana.
E ademais, nós, profissionais de saúde, não somos exatamente treinados para discutir esse assunto. Perguntas simples na anamnese sobre a importância da fé na vida do paciente ou apenas abrir um pouco de espaço para discutir aspectos religiosos podem fazer uma diferença enorme no decorrer do tratamento. Afinal de contas, além da capacidade de raciocínio lógico e cognitivo, outra coisa que nos separa dos animais irracionais é nossa capacidade inata de procurar a explicação para um fenômeno, seja ele qual for.
Aí, então, se a fé remove montanhas, quem sabe prece e meditação não poderiam ajudar no controle da dor?