O legado literário do consagrado escritor baiano Jorge Amado (1912-2001) pode ser dividido em duas partes:

“Um dos romances mais populares de Jorge Amado”, rapidamente a obra tornou-se um clássico. “(…) levado com êxito ao cinema, ao teatro e à televisão, Dona Flor e Seus Dois Maridos conta a história de Florípedes Paiva, que conhece em seus dois casamentos a dupla face do amor”.

Saindo da adolescência, Flor apaixona-se perdidamente por Vadinho, e casa-se com ele contra a vontade da mãe. O sujeito é quase um estereotipo da malandragem típica dos anos 40. Bebe, joga, vive e trepa com igual ferocidade. Flor sofre os diabos na sua mão. Mas Vadinho, um amante de mão cheia, a faz “gemer sem sentir dor” com a mesma frequência que a explora e a agride. Sua vida de casada é uma montanha-russa emocional. Ora no sétimo céu, ora descendo o nono círculo do inferno.

Mas um dia, em pleno carnaval, Vadinho morre (cai duro na rua vestido de baiana). Viúva, Flor sente falta do marido, cada vez mais no sentido bíblico. E acaba se casando com um farmacêutico do bairro que alimentava uma paixão secreta por ela. Com Teodoro, nossa heroína “encontra a paz doméstica, a segurança material, o amor metódico” — mas sem “a paixão avassaladora, o erotismo febril, o ciúme que corrói” que vivia com o boêmio Vadinho.

Sim, e metódico é o que Teodoro é. “Um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar”, é o seu lema. Carinhoso, organizado financeiramente, inteligente, culto, enfim, é tudo que o falecido não foi. Flor respira aliviada. Tem agora um bom e dedicado marido que a protegerá para sempre. Se não fosse um empecilho: Teodoro é um terrível amante. Desajeitado, ele não tem ideia de como o “rala-e-rola” funciona. Mete duas vezes, goza e vai dormir. E ainda acha que está tudo bem. Flor resignou-se. Mas sentia, no seu fogo interno, muita falta do falecido.

Até que um dia, Vadinho aparece para ela, nu em pelo, querendo seduzi-la a qualquer custo. “(…) retorna sob a forma de um fantasma capaz de proporcionar de novo à protagonista o êxtase dos embates eróticos”. Resistirá Flor às investidas do tal fantasma sensual? “Por obra da fantasia literária de Jorge Amado e da intervenção das entidades do candomblé, (conseguirá) Flor conciliar no amor o fogo e a calmaria, a aventura e a segurança, a paixão e a gentileza”? Aproveitará ela o melhor dos dois mundos?

Sobre a peça de teatro, tive oportunidade de assistí-la com meus dois filhos na época em que foi encenada pela segunda vez aqui em Ilhéus mais de uma década atrás. E vi algo interessante — a ponto de merecer uma resenha n’A Coluna da Coluna à época que foi publicada no jornal O Diário de Ilhéus:

Dona Flor e Seus Dois Maridos foi encenada de novo aqui em Ilhéus entre os dias 15 e 17 de junho. Abafou. A peça já ganhou ‘três Prêmios Qualidade Brasil (Melhor Ator – Marcelo Faria, Melhor Diretor – Pedro Vasconcelos e Melhor Espetáculo) e foi indicado ao Prêmio Shell de Teatro/2008 nas categorias de Melhor Ator – Marcelo Faria, e Melhor Diretor – Pedro Vasconcelos, e ao Prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante para Ana Paula Bouzas pela APTR/2009’.

Marcelo Faria interpreta Vadinho com uma energia e alegria contagiantes. Após cinco anos de cartaz, o ator se familiarizou bastante com o personagem. E está em casa.

Duda Ribeiro rouba todas as cenas com o seu Teodoro. O personagem é meio apagado, mas o ator brilha quando enfoca com sutileza o lado obsessivo-compulsivo do farmacêutico. Ribeiro usa o silêncio a seu favor, arrancando com ele as maiores risadas do espetáculo. Uma piscada de olhos, uma discreta mudança de expressão facial e leves gestos e nuances são tudo o que precisa para ganhar a plateia. Todo mundo morre de rir.

Fernanda Paes Leme representou Flor por um ano. O espetáculo foi encenado em Ilhéus pela primeira vez em agosto de 2011 com Carol Castro, que, na época, vivia a personagem — bem no início das comemorações do Centenário de Jorge amado, no Teatro Municipal de Ilhéus. Desta vez, Dona Flor foi agraciada pela bela interpretação de Fernanda Vasconcellos. Apesar de ser uma tarefa ingrata se destacar no meio de duas magníficas atuações masculinas, a atriz saiu-se muito bem.

Além destas três potências, o espetáculo conta também com mais 11 atores em cena, dois deles baianos para dar mais autenticidade, já que o sotaque adotado pelos cariocas, mineiros e paulistas é meio sofrível. Uma grande sacada foi incorporar Dorival Caymmi no enredo. A voz do ator Marco Bravo quando canta é assombrosamente semelhante à do saudoso artista. Dá um saborzinho especial.

Uma das atrizes coadjuvantes, Lis Maia (que fez em 2011 a irreverente Leiloca do grupo dos anos 70 As Frenéticas no programa Por Toda a Minha Vida), interpreta vários papéis, entre eles a fofoqueira Celeste. Para dar vida ao personagem, entortou-se toda e passa boa parte da peça andando arqueada. Apesar de ter sido uma ferramenta interessante para destacar e ressaltar a aberrante moralidade do papel, algum tipo de dor lombar deve ter aparecido como resultado. Este humilde escriba, preparando este artigo, mandou uma mensagem no site da peça, mas até agora não obteve resposta.”

Pois é. Sabe-se lá se Lis Maia teve que ir a um Quiropraxista como resultado das suas peripécias cênicas.