Mesmo com eventuais esforços das autoridades, infelizmente no nosso Brasil assassinatos e chacinas ocorrem com muita frequência — particularmente no Rio de Janeiro, onde somente em 2023 houve “3.388 mortes violentas (…) — ante 2.977 de São Paulo, que tem quase o triplo da população — e foi um dos únicos 5 estados a ter alta em comparação com 2022.” Só na zona oeste, foram registradas 12 chacinas apenas em 2023, de acordo com um levantamento do Instituto Fogo Cruzado. “A zona oeste responde por um terço das chacinas registradas ao longo do ano no Rio de Janeiro: ao todo foram 37 casos, que tiraram a vida de 141 pessoas”.
Com números elevados assim, a gente fica meio entorpecido ao ouvir este tipo de notícia — até no momento em que a violência invade uma área nobre da Cidade Maravilhosa e executa quatro médicos ortopedistas.
Participar de um congresso é sempre muito edificante. E o 6º Congresso Internacional de Cirurgia Minimamente Invasiva do Pé e Tornozelo prometia. O evento, que ocorreu entre os dias 5 e 7 de outubro de 2023 no Hotel Windsor na Avenida Lúcio Costa, na Barra da Tijuca, foi o 1º “realizado na América do Sul.”
“Nas outras 5 edições, foi sediado em Arcachon (França), Múrcia (Espanha), Bruges (Bélgica), Barcelona (Espanha) e Marrakech (Marrocos)”.
Era realmente imperdível. Oportunidade única de se atualizar, estabelecer contatos, conhecer alguns dos maiores nomes nacionais e mundiais da profissão — e, claro, rever amigos. Dr. Perseu Ribeiro Almeida, 33 anos recém-completos, ortopedista, “membro Titular da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia e especialista em cirurgia do pé e tornozelo pelo Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (IOT-HCFMUSP),” mal podia esperar. Segundo familiares, além da importante natureza do evento, seria também a primeira vez que este médico de Ipiaú-BA iria pisar no Rio de Janeiro. Sim, o congresso prometia.
Dr. Perseu era muito querido na sua cidade. Havia se formado pelo Instituto Mantenedor de Ensino Superior da Bahia (UniFTC), em 2017; fez residência médica em Ortopedia e Traumatologia pelo COT/Martagão; e se especializou. Trabalhava muito e, tal qual seu já falecido pai, gostava imensamente do que fazia. “Era uma pessoa muito alegre, todo mundo gostava muito dele. Não saía da clínica sem atender ninguém. Atendia até quem não podia pagar”, dizia um dos amigos. “Apesar de morar em Jequié (a 55 km de distância), Perseu Almeida atendia na clínica Cliorti, em Ipiaú. A unidade de saúde era da família dele.”
Nosso ortopedista não tardou a reencontrar antigos colegas de formatura, residência e especialização. E com dois deles, mais um antigo professor, resolveram comemorar o reencontro e beber uma cervejinha num quiosque ali mesmo, pertinho do hotel. Dr. Perseu estava à vontade. Usava uma camisa do Bahia, seu time do coração.
Ocorreu que naquele momento passavam alguns elementos na frente do tal quiosque. Viram o médico e acharam que finalmente haviam localizado “um homem suspeito de chefiar a milícia” local. Tailon de Alcântara Pereira, “filho de um ex-policial militar citado na CPI das Milícias em 2008, expulso da polícia em 2008 e que está preso”. Seguindo os passos do pai, este indivíduo também tinha sido preso em 2020 e, de acordo com o Ministério Público do Rio (MPRJ), a organização criminosa da qual ele fazia parte “seria responsável pela exploração do transporte alternativo de vans e mototáxi, dos serviços básicos como água, gás e TV a cabo, cobrança extorsiva de ‘taxas de segurança’ a comerciantes e moradores, invasão e grilagem de terras, construção imobiliária clandestina, além de agressões, ameaças e homicídios na região” da zona oeste. Solto, andava meio sumido — escondido, talvez. Milícias rivais procuravam por ele.
Tailon, como o Dr. Perseu, era calvo, tinha sobrepeso, usava óculos, cultivava uma barba e estava numa faixa etária próxima. Ambos torciam para um time com camisas semelhantes (à distância). Eram realmente muito parecidos e fáceis de serem confundidos um com o outro. O único problema é que o ortopedista se parecia com um miliciano jurado de morte. Os caras que o viram telefonaram para o chefão, que bateu o martelo.
Um carro branco parou do lado da mesa onde bebiam os ortopedistas. “Três homens de preto e armado com pistolas desceram do veículo, abriram fogo à queima-roupa” e fugiram. “Segundo informações iniciais da Polícia Militar, foram mais de 20 disparos.” “Testemunhas contaram ainda que os bandidos não disseram nada” e “já chegaram atirando“. Dr. Perseu e seu ex-professor morreram na hora. Os outros dois colegas foram levados ao hospital ainda com vida. Um não resistiu. O que sobreviveu ainda convive com as sequelas dos 14 tiros que levou. “O crime durou menos de um minuto.”
A notícia se alastrou pelo país tal qual fogo de palha. Pensou-se inicialmente se tratar de crime político, visto que um dos ortopedistas era irmão de uma deputada do PSOL — mas a questão da semelhança física falou mais alto. Foi mesmo uma horrível coincidência, dessas que a gente só costuma ver em filmes.
Os atiradores não viveram sequer o suficiente para serem presos e irem a julgamento. “A Polícia Civil encontrou os corpos de traficantes suspeitos de executar três médicos no Rio de Janeiro. Os corpos estavam dentro de dois carros, localizados na noite desta quinta-feira (5) na Zona Oeste do Rio” — no exato mesmo dia, portanto, que os ortopedistas foram assassinados.
“Os ortopedistas foram homenageados no primeiro dia (do Congresso), que fez um minuto de silêncio pelas vítimas.” A prefeitura de Ipiaú declarou luto e emitiu uma nota de pesar: “O Dr. Perseu dedicou os últimos 5 meses de sua vida ao Hospital Geral de Ipiaú, onde atendia com dedicação e comprometimento os cidadãos de Ipiaú e da região. Neste momento de luto, expressamos nossas mais sinceras condolências à sua família, amigos e colegas”. Seu funeral parou a cidade.
Dr. Perseu era filho do saudoso ortopedista Luiz Andrade. Apesar de não ter conhecido pessoalmente nenhum dois dois, seu pai mantinha uma estreita relação profissional comigo. Era um tremendo clínico, entusiasta da Quiropraxia. Referia muitos pacientes — visto que Ipiaú fica somente a 140 km de Ilhéus.
Uma das histórias mais bonitas da sua dedicação a profissão envolveu uma pessoa internada havia semanas com crise de lombalgia e ciática no hospital onde atendia. Os métodos tidos como tradicionais não estavam surtindo efeito. Sendo assim, Dr. Luiz não pestanejou: mandou uma ambulância com a paciente diretamente para minha clínica em Ilhéus. Ele não havia ainda dado alta a ela. O plano era ser atendida e retornar para o hospital como se nada tivesse acontecido. Confesso que, na época, fiquei um pouco desconfortável ao ver aquela ambulância todos os dias na frente do meu local de trabalho. Mas a paciente melhorava nitidamente a cada visita. Após 5 dias, ele pôde, enfim, lhe dar alta. Nunca vi médico nenhum fazer isso e acredito que não verei tão cedo. Mesmo pouco ortodoxa, deu certo sua estratégia. Me senti muito honrado pelo voto de confiança. E nunca tive a oportunidade de lhe agradecer.
Foi uma comoção na cidade de Ipiaú, uns 10 anos antes do filho ser assassinado no Rio, quando este tão querido, estimado e respeitado Dr. Luiz Andrade morreu num acidente de carro “quando o (rapaz) ainda era estudante de Medicina (…). Ele não chegou a ver Perseu formado como médico.” Sua mãe manteve a clínica aberta enquanto esperava o filho se formar. Trágico. A família perdeu dois amados e importantes membros. A cidade perdeu dois grandes profissionais. O país perdeu dois exemplares cidadãos.
Dr. Perseu era casado e tinha dois filhos. Eu e ele atendíamos alguns pacientes em comum — como também havia atendido pacientes em comum com Dr. Luiz (e todos, claro, ficaram desconsolados). O jovem ortopedista estava cheio de planos. “(…) havia retomado às atividades em Ipiaú há dois anos e assumiria a Cliort na mesma cidade, onde pretendia ampliá-la, como oferta de mais serviços”. Parafraseando o personagem de Clint Eastwood no filme Os Imperdoáveis, o horror e a tragédia maior de ceifar a vida de uma pessoa é tirar tudo que ela tem e tudo o que ela virá a ter.
Em tempo: Reconhecendo de antemão a gravidade e o peso do assunto, o Artigo 115 lida também com um caso muito famoso (e macabro) na década de 80 envolvendo um de nossos colegas na cidade-berço da Quiropraxia.