O doutor Oliver Sacks (1933-2015) foi um renomado neurologista americano que tinha um pendor para a escrita. Professor de neurologia e psiquiatria na Universidade de Columbia, seus livros se tornaram “best-sellers, incluindo várias coleções de estudos de casos de pessoas com distúrbios neurológicos”:

  • No livro O homem que confundiu sua mulher com um chapéu (The man who mistook his wife for a hat, 1985), ele discorre, em 24 ensaios, “sobre casos de alguns de seus pacientes que vivem imersos em sonhos, aberrações intelectuais e perceptuais fantásticas em consequência de danos cerebrais”. Uma das histórias — a que faz jus ao título — é a de um senhor “com agnosia visual (prosopagnosia) que tenta pegar seu chapéu mas pega a cabeça de sua esposa e tenta colocá-la na cabeça, sem conseguir perceber o que estava fazendo de errado”.

  • A sua obra mais famosa, porém é Tempo de Despertar (Awakenings, 1973). O livro conta sua experiência administrando L-DOPA nos sobreviventes de uma epidemia de encefalite letárgica (doença do sono) e de ter testemunhado o despertar de alguns deles depois de 40 anos catatônicos.

    Esta incrível história foi transformada num filme em 1990 com Robin Williams (interpretando Sacks) e Robert de Niro (indicado ao Oscar® por este papel) como Leonard, um dos (por ora) ex-catatônicos.

Não sou neurologista, passo longe da genialidade do saudoso dr. Sacks, mas, tendo uma experiência clínica de quase 3 décadas, já vi alguns casos comoventes, curiosos — extraordinários até.

  • Conheci dona Mundinha* nos meus 27 anos. Figura muito conhecida da sociedade na sua cidade, foi também uma professora de renome. Inteligentíssima. Uma enciclopédia de conhecimento. Seu filho, Arthur* era um psiquiatra também de renome, colega de formatura de meus pais. Tratei de dona Mundinha por muitos anos. Mas ultimamente ela andava meio sumida. Dr. Arthur me disse que estava sofrendo de doença de Alzheimer. Um belo dia, ele marcou um horário comigo para dona Mundinha. E ela apareceu, elegante e impávida como sempre. Tivemos uma boa conversa e cheguei até a questionar se, de fato, estivesse doente. Dona Mundinha entendia minhas perguntas, era concisa e incisiva nas suas respostas, enfim… Estava, na minha opinião, em pleno gozo de suas faculdades mentais. Até que, na saída, ela casualmente comentou que precisava pegar Arthur na escola. Eu perguntei se era o nome do seu neto. Ela me respondeu que Arthur era seu filho. Foi aí que me dei conta que aquela simpática senhora não tinha sequer ideia de quem eu era.

    Resumindo: dona Mundinha podia conversar tranquilamente, mas sua memória a eludia de uma maneira para mim sutil.

    Dito e certo: a doença foi piorando, e, algum tempo depois, ela já não se lembrava de nada. Perdeu o que mais lhe prezava: sua mente. Sim, Arthur estava correto. Dona Mundinha morreu depois de alguns poucos anos — uma sombra do que foi.

    Li em algum lugar que a memória é que nem uma cebola: com doenças tipo Alzheimer, tal qual suas camadas externas, as lembranças mais recentes se vão primeiro. Ficam as memórias mais antigas (as camadas mais profundas) antes de finalmente desaparecerem. Triste.

    Uma das minhas pacientes mais antigas começou a se tratar quando era mais nova que eu hoje. E atualmente ela está na casa dos 80 anos, mas bem lúcida — só um pouco surda. Na época que sua mãe era viva, ela me relatava que a velhinha se recusava a fazer as necessidades no banheiro. Preferia ir no mato — exatamente igual como fazia quando era menina. O único problema é que, diabética, teve uma de suas pernas amputadas. Imaginem o trabalho de se agachar no quintal da casa — tarefa praticamente impossível! Era um suplício para a família convencê-la a usar o sanitário.

    Minha avó aprendeu a dirigir depois dos 40. Fazia umas barbeiragens aqui e ali, mas nunca se meteu em um acidente. A primeira vez que notei algo cognitivamente errado com ela, foi quando entrou na contramão fazendo um caminho rotineiro. Quando lhe chamei desesperadamente a atenção, me disse que as outras pessoas buzinando é que estavam erradas. Ao cabo de alguns anos, sua memória foi se declinando. Começou a chamar toda empregada de “Lena” (não sei quem era, mas deve ter sido uma empreguete memorável); depois, todo neto de “Lula” (nome do meu primo); nos últimos meses, tinha que fazer um esforço para reconhecer os filhos. Dos bisnetos, nem tomava conhecimento (a memória é realmente uma cebola…). Mas tocava violão tão bem quanto na sua juventude. Alguns meses antes da sua morte, fui visitá-la em Salvador. Quando me viu, me chamou pelo nome. Estranhei. Pois naquela noite, as sinapses no seu cérebro deviam estar em polvorosa, funcionando com alguma normalidade. Conversava comigo claramente. Aquele brilho nos olhos quando me escutava atentamente querendo saber tudo de minha vida havia voltado. Me emocionei muito porque sabia que não ia durar. Mas fiquei agradecido por este tiquinho de prosa. No outro dia, a demência havia voltado e o brilho nos olhos desaparecido. Sinto muito a falta dela.

  • Seu Augusto* era um comerciante nato. Quando descobriu a nossa clínica, se tratou, se deu bem e se encantou com a Quiropraxia. Não tardou a arranjar um jeito de aproveitar a longa viagem para ganhar uma graninha. É que nosso amigo morava numa cidade a quase 800 km de Ilhéus, no estado do Espírito Santo. E descobriu que, se percorresse mais 100 km ao norte, poderia comprar cravo e revender na sua cidadezinha por um bom lucro. E assim o fez, por um bom punhado de anos. Até que outras pessoas descobriram o caminho das pedras e o mercado do cravo acabou ficando meio saturado.

    Naquela época não existia Quiropraxista formado no Espírito Santo. E seu Augusto era um daqueles “pacientes-alfa” — entusiasta da Quiropraxia, indicava uma infinidade de gente. Muitas vezes trazia pessoas consigo para se tratar também. Quando finalmente tive notícia de um profissional formado em Vila Velha, avisei a ele. Afinal de contas, ficava muito mais próxima da cidadezinha dele do que Ilhéus. Seu Augusto até que tentou, mas disse não ter gostado. Quer queira ou não, a gente estabelece um parâmetro, desenvolve um relacionamento de afetividade, e, uma pessoa meio cabeça-dura como seu Augusto, por incrível que pareça, prefere enfrentar horas e horas de estrada para passar um mísero final-de-semana em tratamento. Mas pensando bem, no fundo seu Augusto sempre gostou mesmo da viagem, de passar um período na Costa do Cacau, às vezes em lua-de-mel com a dileta esposa (ela também eventualmente uma paciente) — mesmo sem os cravos.

    Quando o tratamento entrou na fase de manutenção, o grupinho aparecia 2-3 vezes por ano. Mas houve um bom período que não tive notícias do casal. Depois marcou, apareceu para se tratar, e aí, ele e a esposa, me contaram uma história pra lá de interessante do porquê que pararam de vir por um tempo.

    Seu Augusto era um homem acostumado a estrada. Viajava muito. Numa dessas viagens para comprar gado, sofreu um grave acidente automobilístico. O carro capotou e foi praticamente destruído. Seu Augusto sofreu traumatismo craniano, ruptura de baço e fígado, quebrou um monte de costelas, teve hemorragia interna, três paradas cardíacas na ambulância a caminho do hospital, enfim… Quase morreu.

    Os médicos conseguiram estabilizá-lo. Mas ficou em coma por 3 semanas. Sua esposa não saía do seu lado e conversava com ele o tempo todo. Falava da fazenda, da família, do comércio, das chuvas que se avolumavam, da enchente que a cidade sofreu…

    Curiosamente, na mente de seu Augusto o coma nunca aconteceu. Nem a internação hospitalar. Ele saiu do acidente ileso e tocou sua vida por 3 semanas de uma maneira completamente realista, mas somente na cabeça dele. Porque seu Augusto, durante o coma, construiu uma realidade paralela onde as coisas iam se desenvolvendo e a vida ia seguindo seu curso. Ele comprava e vendia cabeças de gado, tocava seu comércio, fazia churrascada no final-de-semana, se relacionava com as pessoas normalmente. Sim, a enchente aconteceu também nos devaneios do coma — decerto resultante das conversas da esposa no leito do hospital. Seu Augusto ouvia e simplesmente incorporava os ocorridos à sua narrativa interna.

    Imaginem qual não foi a sua surpresa ao acordar e descobrir que tudo que havia vivido nas últimas 3 semanas foi simplesmente fruto das incríveis sinapses do seu cérebro, das atividades dos neurotransmissores, da sua memória. Dizem que este tipo de atividade cerebral faz parte do processo de recuperação após um trauma tão significante…

  • Seu Miguel* recebeu o chamado ainda no final da sua adolescência. Resolveu virar protestante. E queria ser pastor. Criado no agreste baiano, sua família não aceitou muito bem esta conversão. O pai de seu Miguel, trabalhador rural de sol a sol, mãos calejadas de pegar na enxada, analfabeto, homem rude e rústico, de poucas palavras, devoto de Padre Cícero, não teve dúvidas: expulsou o filho de casa.

    O menino ganhou o mundo e foi fazer sua vida. Não guardou ressentimentos contra o pai nem contra a família. Muito pelo contrário. Tal qual pregava o Homem de Nazaré, seu Miguel acreditava em oferecer a outra face. Apenas esperava vê-los de novo e se reconciliar — o que acabou eventualmente acontecendo. Neste ínterim, casou e teve filhos. Ah, e se tornou pastor. Era um homem sério, íntegro, humilde. Pregava bem. Os fiéis o adoravam. Era muito querido na sua comunidade.

    As dores lombares, que o acompanhavam na juventude, começaram a se agravar na meia-idade. E a irradiar para as pernas. Foi nesta época que me procurou, há mais de 10 anos. Fez o tratamento como manda o figurino. Melhorou até onde a avançada estenose lombar permitia que melhorasse. Mas, já na fase de manutenção, acabou bobeando e passou um período sem vir. As dores pioraram. Foi para um ortopedista, que lhe recomendou cirurgia. Contra minhas recomendações, acabou fazendo o procedimento. Não melhorou. Mas agora a sua resposta a Quiropraxia ficou mais limitada por causa das fibroses pós-cirúrgicas. Por outro lado, seu Miguel, mais paciente, tratou de procurar tratamentos concomitantes, como Pilates e fisioterapia. E foi levando — até eclodir a pandemia.

    Seu Miguel foi uma daquelas pessoas que contraíram covid “com gosto de gás” — vírus este que quase o matou. Ficou 2 meses hospitalizado, entubado, e boa parte do tempo em coma (induzido ou não). Eventualmente, acordou deste coma e foi se recuperando devagar. Sua musculatura havia atrofiado muito e tinha dificuldade de se locomover. Quando começou a andar, constatou que estava de Pé Caído.

    Síndrome do Pé Caído, como todo Quiropraxista sabe, é uma condição neuromuscular caracterizada pela perda da capacidade de levantar a parte frontal do pé. Isso ocorre devido à fraqueza ou paralisia dos músculos responsáveis por esta ação. Como resultado, ao caminhar, a ponta do pé tende a arrastar-se pelo chão, exigindo um esforço maior para que o pé seja levantado. As causas são variadas por exemplo: lesão do nervo fibular; hérnia de disco; algum tipo de lesão medular, doença inflamatória ou imunológica; ou AVC.

    Nunca soubemos direito o que causou o Pé Caído do seu Miguel. Mas à custa de Quiropraxia, muita fisioterapia e perseverança, foi melhorando, melhorando, e, ao cabo de alguns meses, se recuperou por completo. O mesmo não se podia dizer do seu fígado. Quando seu Miguel retornou ao tratamento, estava completamente ictérico — quase brilhando no escuro. A icterícia jamais foi embora, mas às vezes melhorava. Sempre suspeitei que foi pela quantidade cavalar de medicação enquanto internado com covid. Os médicos negam, mas o motivo era óbvio demais.

    Numa das nossas sessões, perguntei se durante o coma conseguia sonhar. E lhe falei do caso do seu Augusto. Seu Miguel começou então a me contar uma espécie de sonho vívido, extremamente longo e detalhista que teve durante o período que passou desacordado:

    Seu Miguel despertou no hospital. Levantou-se. Sentia-se bem. Saiu do quarto e andou pelos corredores. O hospital estava vazio. Quando saiu do prédio, notou um grande rebuliço na praça principal da cidade (que, em seu sonho, estava ao lado do hospital). Foi andando em direção ao barulho e viu uma grande aglomeração de gente. Muitos carros estacionados, muitos ônibus de excursão e até um avião. Via rostos familiares na multidão. Rostos de seus amigos e de seus parentes — alguns já falecidos. Todos estavam escutando atentamente alguém falar de um palanque. Começou a notar que era de trechos da sua vida que falava. Da sua pessoa, do seu altruísmo, da sua humildade, da sua bondade e infinita capacidade de ajudar o próximo. O discurso foi longo e detalhado.

    Quando chegou no final, alguém lhe mostrou um caixão vazio. “Agora só falta você entrar aí para concluirmos a cerimônia,” falou. “Eu?”, perguntou seu Miguel. “Sim, o senhor mesmo,” respondeu. Seu Miguel balançou a cabeça: “Eu não!”. A pessoa tentou racionalizar. “Miguel, a gente preparou esta grande festa em sua homenagem. Planejamos muito. Os preparativos foram imensos. Veio gente de todo lugar. Até o governador chegou com o jatinho dele. Agora cabe ao senhor concluir os festejos. Como é que acha que todo mundo vai ficar se fizer este papelão e não entrar neste caixão?” Seu Miguel retrucou na lata: “neste caso, entre você neste caixão e damos o caso por encerrado.”

    Foi neste momento, depois de todo este tempo em coma, que seu Miguel acordou.

    “Mas o senhor falou isso mesmo, seu Miguel?”. “Falei, meu filho.” Perguntei a ele o que achava deste sonho. Que análise faria dele como homem de religião e como pastor. Me disse que, sinceramente não sabia o que achar. Ponderou que interpretações não faltariam. Os espíritas tinham uma; os católicos tinham outra; alguns poderiam achar que era o tinhoso tentando o pastor com fanfarras e festejos. Mas ele preferia não ter opinião formada. Lhe falei sobre atividade cerebral, neurotransmissores, sinapses. Ele respondeu que não achava ser possível resumir esta experiência em meras reações químicas. Mas aventou a possibilidade.

    Seu Miguel viveu ainda uns 3 anos depois desta conversa. Seu fígado nunca se recuperou. Começou a sofrer de severas varizes esofageais — com ocasionais severas hemorragias. So entanto, se tratava, se exercitava, e jamais perdeu a alegria de viver. Achava que não morreu de covid porque o homem lá de cima decidiu que não era hora dele, que ainda tinha uma missão a cumprir. Inspirou muita gente neste meio-tempo. Mesmo tendo se aposentado, se reinventou fazendo cultos online durante a pandemia. Estava adorando a experiência. Mas a falência hepática falou mais alto e veio a falecer uns 3 meses antes deste artigo ser escrito. Era uma formiguinha para trabalhar, sempre atentos aos detalhes na sua pequena comunidade. E assim se fazia grandioso — um Pequeno Grande Homem, por assim dizer. Vai deixar muitas saudades. Na sua família, no seu rebanho e comigo.

    Este artigo é dedicado a ele.

Como Quiropraxista tradicional, problemas de cunho neuromusculoesqueléticos fazem parte da vastíssima maioria do meu dia-a-dia. Tratar de pessoas como dona Mundinha, seu Augusto e seu Miguel — e poder fazer parte em aliviar algumas agruras durante o processo de envelhecimento deles é (e, no caso de seu Augusto, tem sido) uma absoluta honra. E eu, chegando na meia-idade e contemplando a minha própria mortalidade, ter tido a oportunidade de compartilhar suas experiências traz pra mim uma interessante e atípica reflexão acerca do funcionamento cerebral humano.

Oliver Sacks eu não sou, mas dei meus pulinhos.

*Como sempre, os nomes foram mudados para proteger a anonimidade dos envolvidos.