Perdi minha prima querida esta semana. Visitando os pais na fazenda, havia passado o dia andando a cavalo com uma amiga. Na boca da noite um dos cavalos se soltou e quis voltar a sede. Ela foi atrás com o outro. Conseguiu pegar o fujão. Enrolou a corda na mão e seguiu de volta. O que aconteceu depois foi meio nebuloso. O cavalo deve ter virado bruscamente na direção oposta. Ela foi arremessada violentamente da sela e caiu na estrada de barro batido — cabeça primeiro.

Pela fraturas expostas, quebrou o pescoço. E sofreu traumatismo craniano massivo. Encontraram-na ainda viva, com pupila midriática e respirando com dificuldade. Morreu numa ambulância a caminho do hospital. 39 aninhos — completados menos de 2 meses antes. A caçulinha de 10 netos. Irrepreensível. Filha maravilhosa, bueníssima amiga, excelente irmã, a prima que eu tinha mais afinidade.

Com meu celular no mudo, recebi a notícia na manhã seguinte, enquanto colocava um paciente no gelo. Tive uma reação visceral. Não parava de soluçar. Não conseguia respirar. Falava com dificuldade. Mas consegui meio que disfarçar até que o paciente fosse embora. Desabei depois. Me recordei então de um sonho recorrente que tive durante a pandemia. Dois filhos meus morriam num acidente de avião. O sonho era sobre minha tristeza e realização de ter que viver sem eles. Acordava soluçando e não conseguia respirar.

E com isso, pensei nos meus tios. Numa escala evolutiva, somos mais preparados para perder os pais do que perder os filhos. É antinatural perder filhos. Simplesmente antinatural. Não deveria acontecer com ninguém. A ferida nunca cicatriza e volta e meia aflora. Se eu tive essa reação ao sonhar que perdi os meus, é inconcebível imaginar o que os pais de minha prima estão passando neste momento e vão ter que passar depois.

Exatamente mesmo dia do funeral da minha prima, um ônibus escolar foi atingido em cheio por um trem no norte do Paraná. Duas estudantes pré-adolescentes morreram. O pai de uma das meninas viu o ônibus atingido enquanto passava de carro. Não se deu conta que era justamente o ônibus que transportava a própria filha. Algo semelhante ocorreu com meu tio. Quando ele viu os cavalos chegarem na sede, foi de carro buscar minha prima e a amiga. Acabou sendo parte ativa do resgate. E assistiu ela morrer.

Tragédias assim ocorrem todos os dia. E são imensuráveis — sobretudo quando ocorrem com a gente. Como dizia Rick Blaine (Humphrey Bogart) no filme Casablanca (1942), “não chegam a um monte de feijão neste mundo louco”. Sim, a gente sofre, a gente se despedaça. Mas a gente não está só.

Misery loves company, reza um ditado americano.

Me pus então a pensar nas tragédias que alguns pacientes vivenciaram nestas décadas de consultório. Pacientes que perderam seus filhos crescidos. Pacientes que têm exata dimensão da dor e do sofrimento que meus tios estão passando.

  • Como uma senhorinha de 65 anos à época do atendimento que perdeu seu filho num acidente na primeira curva da saída de Ilhéus a Itabuna. “Foi uma burrice. Como ele pôde ser tão estúpido, andando assim em alta velocidade? E pra quê?”, desabafava. 10 anos havia se passado, mas a sensação de dor e revolta era como se tivesse sido ontem.

  • Ou uma cabeleleira de minha idade que perdeu seu único filho também num acidente de carro. Sempre me chamou atenção o desespero latente do seu olhar — e as suas dores — não só as neuromusculoesqueléticas transientes, mas as dores da sua alma, sempre presentes.

  • Ou um agrônomo de 60 anos que tinha um filho viciado em drogas e que havia cometido seu primeiro assalto. O pai descobriu e ordenou que o filho devolvesse o dinheiro. Mal o menino pôs os pés no bairro, foi morto pela milícia. O pai dizia desconsolado: “eu quis fazer o que era certo, e acabei assinando a sentença de morte dele”. Como responder a isso?

  • Ou o casal de pacientes que perdeu o filho único para um acidente na década de 80 e a filha única (também paciente) que suicidou-se aos 45 anos — 30 anos depois da morte do primogênito. Agora, sem filhos, estão entrando eles mesmos na casa dos 80 anos.

  • Ou uma costureira idosa que perdeu os dois filhos para o COVID nesta pandemia. Durante as sessões comigo, relembrava seu menino que costumava brincar com ela, fazendo troça, criando uma corruptela com seu nome para parecer com o nome de uma conhecida mãe-de-santo. Ela, evangélica, virava uma onça. Ele adorava pirraçá-la. “Daria tudo pra ter ele tirando sarro com minha cara de novo”, dizia — ora rindo, ora chorando.

O que fica, no final das contas, é o amor. Da vida nada se leva. Mas fica a dor também. Todos os pacientes acima têm dores crônicas, difíceis de tratar. Isso porque, se as dores da alma estiverem envolvidas, dá trabalho mesmo. Cabe a nós, Quiropraxistas, tentar, pelo menos, amenizar as dores físicas. Porque as da alma, ah, essas não cicatrizam. Meus tios que o digam.

Oh, pedaço de mimOh, metade afastada de mimLeva o teu olharQue a saudade é o pior tormentoÉ pior do que o esquecimentoÉ pior do que se entrevar

(…)

Oh, pedaço de mimOh, metade arrancada de mimLeva o vulto teuQue a saudade é o revés de um partoA saudade é arrumar o quartoDo filho que já morreu

                                                                                                                          Chico Buarque de Hollanda