É bastante provável que Magdalena Carmen Frieda Kahlo y Calderón (1907-1954) tenha sido a pintora mexicana mais influente e a mais expoente surrealista de seu país. Seu relacionamento conturbado com o muralista Diego Rivera marcou sua vida e seu trabalho com traições de ambos os lados. Dizem que um de seus rabichos mais famosos foi com o intelectual marxista e revolucionário bolchevique Leon Trótski, que acabara de refugiar-se no México fugindo da ira de Stalin. Comunista de carteirinha, Frida encantou-se. Aí foi só juntar a fome com a vontade de comer — nesse caso seu ídolo, uma lenda viva da causa marxista (sem querer pecar pelos trocadilhos).

A morte de Trótski havia abalado muito a pintora, 14 anos antes dela morrer. Após sobreviver a alguns atentados a mando de Stalin, o bolchevique sucumbiu um dia depois que o agente Ramón Mercader enterrou uma picareta no seu crânio. Além de não perder a consciência, ainda teve a presença de espírito para pedir que não matasse seu algoz, pois ele tinha “uma história para contar”.

A vida amorosa de Frida Kahlo só perde para sua extensa ficha médica. Contraiu poliomielite já “aos seis anos de idade (…). A doença deixou como marcas o membro inferior direito mais curto e a musculatura atrofiada”. Para ficar menos constrangida, Kahlo usava “saias longas como as das indígenas mexicanas. Já famosa, as intelectuais de sua época e as mulheres de um modo geral acharam que ela estava lançando moda e” imitaram seu estilo.

Aos 18 anos de idade, lá pelos idos de 1925, Frida Kahlo sofreu um acidente terrível. O parachoque (do ônibus que chocou-se com o bonde no qual viajava) entrou nas suas costas, atravessou sua pélve e saiu pela vagina. “Ela sofreu fraturas em três vértebras, fratura cominutiva (fragmentação) da tíbia e fíbula direitas, além de três fraturas de pelve (bacia)”. Teve que passar por várias cirurgias reconstrutivas e precisou usar coletes ortopédicos. Este calvário serviu de inspiração para algumas telas, entre elas A Coluna Partida. O acidente comprometeu sua capacidade de ser mãe. Sofreu dois abortos subsequentes, o que complicou ainda mais seu relacionamento com Rivera.

Em 1946, após submeter-se “a mais uma operação de coluna (…) em Nova York, Frida” busca inspiração no sofrimento pós-cirúrgico para pintar Árvore da Esperança. A noite simboliza sua agonia; “o sol brilhando no início de um novo dia” é seu desejo de recuperar-se. Os detalhes da pintura revelam muita coisa. “O chão sob o qual Frida repousa encontra-se todo fendido, rachado, simbolizando as fraturas nos seus ossos. Sobre a maca, ela deixa à mostra as regiões lombar e pélvica, nas quais pode-se ver a incisão sangrante feita para a osteossíntese vertebral, e outra incisão oblíqua na projeção da crista ilíaca direita, de onde foi retirado o osso para enxertia. A Árida sentada ao lado da maca com vestimenta tehuana segura na mão esquerda o colete ortopédico que ela sonhava abandonar quando estivesse curada. Na mão direita, ela agita uma bandeirola que dá nome ao quadro”.

Como consequência de “ferimentos no membro inferior esquerdo (…) que nunca cicatrizaram”, Kahlo desenvolveu osteomielite, o que ocasionou em amputação. Dois anos depois, profundamente “deprimida, a pintora veio a falecer”.

O atestado de óbito registra embolia pulmonar como a causa mortis. E de fato, Frida vinha lutando contra uma violenta pneumonia. No entanto, “a última anotação em seu diário (‘Espero que minha partida seja feliz, e (…) nunca mais regressar’) permite aventar-se a hipótese de suicídio” — talvez por overdose de medicamentos.

Em tempo: Este artigo foi inspirado pelo belíssimo livro As Belas Artes da Medicina — obra escrita por alguém que só pode ser absolutamente apaixonado por pintura. De fato, o doutor Armando Bezerra, ortopedista e professor de anatomia da UnB, consegue a façanha de unir medicina à arte. E o faz de forma magistral. “Eu adoro obras de arte, em especial pinturas sobre temas médicos. Descobri que o bom é, guiado por uma curiosidade clínica e um perfeccionismo cirúrgico, procurar desvendar as histórias secretamente contidas em cada tela exibida em um museu”, diz. O livro é uma pérola. Foi impresso em 2003 pelo Conselho Federal de Medicina e não se encontra à venda. Mas é possível ainda assim adquirí-lo no estante virtual, site de busca que conta com “milhares de sebos e livrarias” cadastrados. Vale a pena ter esta pequena maravilha na estante.