Mais do que um esporte, o surfe é uma filosofia de vida. Porém, pode causar dores de coluna quando praticado indevidamente. Não parece, mas há alto impacto. Manobras radicais nas ondas que envolvem uma série de rotações, compressões e movimentos repetitivos podem ocasionar em lesões neuromusculoesqueléticas.

Não obstante, o surfe tradicional ainda é mais seguro quando comparado à outras modalidades esportivas. Alguns esportes, assimétricos por natureza, favorecem o desequilíbrio muscular e os problemas musculoesqueléticos. O surfe não. Ao propiciar o desenvolvimento simétrico e global do corpo da criança, este esporte estimula também a produção das endorfinas. E há ocorrências de relativamente poucas lesões, quando comparadas ao skateboard, squash e futebol americano. Mas exatamente inofensivo não é.

É o que afirma Dr. Joel Steinman, médico e pediatra formado pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Pós-graduado em Medicina Esportiva na Austrália e especialista em Acupuntura na China, é também membro da Associação dos Médicos Surfistas (Surfer’s Medical Association) e diretor do Instituto de Medicina do Esporte, Acupuntura e Meditação (TAO) em Florianópolis. O homem é o que pode se chamar de entusiasta. Surfa por quase meio século. E seu instituto publicou por conta própria em 2003 um calhamasso de 528 páginas chamado Surf & Saúde. Esta obra, cara, difícil de ser encontrada hoje em dia, e disputada a tapa nos sebos deste Brasil afora, engloba quase tudo sobre o surfe. Deveria ser o livro de cabeceira de todos os surfistas.

Quando este que vos escreve estava concluindo a faculdade de Quiropraxia na Palmer e planejando sua volta ao Brasil, pensava que iria atender lesões relacionadas ao futebol. Ledo engano. Na cidade praiana de Ilhéus, era justamente o surf que trazia mais lesionados ao consultório. Portanto, o livro Surf & Saúde tornou-se item essencial na biblioteca da clínica.

De acordo com Steinman, a maior parte das manobras do surfe envolvem rotação e compressão da coluna lombar e dos discos intervertebrais. As estruturas da região lombar (ossos, nervos, músculos, ligamentos, discos intervertebrais, articulações e cápsulas articulares) são sobrecarregadas pela  hiperextensão por horas a fio durante a remada; pelo impacto dos joelhinhos; pelos movimentos repetidos de rotação durante manobras como o bottom turn, as batidas, os cut backs, os lay backs, os tubos; e pelo impacto subseqüente aos floaters e aos aéreos.

Não necessariamente nessa ordem, os problemas mais comuns dos surfistas são: contratura e distensão muscular, estiramento ligamentar, síndrome das facetas, hérnia de disco e pequenas fraturas no pars interarticularis, podendo causar espondilólise ou até espondilolistese. Em surfistas mais velhos, observa-se artrose e estenose.

Há, claro, inevitáveis mudanças posturais, como, por exemplo, durante a remada — que, diga-se de passagem, toma boa parte do tempo do surfista. Por isso, é comum haver incidências de hiperlordose cervical e lombar, bem como encurtamento e enfraquecimento dos músculos posteriores da coxa e da região lombar. A musculatura abdominal inferior pode ficar fraca e demasiadamente alongada. Isto aumenta a sobrecarga nos discos vertebrais e pode causar diminuição da altura destes amortecedores, degeneração e artrose nas articulações. É lugar-comum encontrar hipertonicidade e encurtamento da cadeia muscular inferior, elevação e bloqueio do alto do tórax (respiração torácica alta), geno varo (joelhos afastados) e pés cavos.

Estes vícios posturais ficam mais evidentes em adolescentes que tiveram crescimento ósseo rápido, cujos músculos e tendões não acompanharam o crescimento. Mas também ocorre nos atletas que não se alongam direito. Portanto, é de suma importância corrigir estes desequilíbrios musculares para prevenir o aparecimento das dores lombares.

O surfista pode também sofrer da chamada Síndrome do Chicote. A aceleração e desaceleração abrupta do pescoço durante vacas em ondas grandes e potentes podem resultar numa hérnia discal aguda. O impacto pode ser eqüivalente a um pequeno acidente automobilístico. O pescoço é mantido numa constante posição de hiperextensão durante a remada e os joelhinhos. Isto acarreta em contração constante dos músculos da nuca e da parte superior, média e inferior da coluna cervical, como o trapézio e os escalenos. As manobras habituais como o round house, o cut back, o 360º, as batidas radicais, as rabetadas, os tail slashes, e os floaters provocam repetidas e intensas rotações nas áreas mais móveis do pescoço (entre a 1º e 2º vértebra, e entre a 5º, a 6º e a 7º vértebras cervicais). A reação de defesa mais óbvia é a contração muscular. Seguida sempre pela dor.

Lesões traumáticas na coluna cervical são graves, embora raras no surfe. Por outro lado, 30% dos surfistas relatam dores crônicas cervicais ou algum tipo de dor lombar. De acordo com Dr. Steinman, “90% dos surfistas terão algum tipo de problema de coluna”.

Claro que os problemas músculo-esqueléticos não se restringem somente na coluna. Ombros, joelhos e tornozelos também são afetados pela arte de surfar:

  • Existe um número expressivo de braçadas durante as sessões de surfe. Estima-se que ultrapasse de 2.000, especialmente se o atleta estiver pegando uma onda atrás da outra, e se o swell for pesado e a corrente contra. As braçadas geram desequilíbrio muscular entre os músculos da frente (rotadores internos) e os músculos de trás (rotadores externos) e podem causar microtraumas nos tendões, síndrome do impacto e tendinite do manguito rotador.

  • Os joelhos dos surfistas sofrem constante sobrecarga e há relato de dores em 15% deles. A título de comparação, 20% dos jogadores de futebol têm problemas nos joelhos. As lesões mais comuns nos joelhos dos surfistas são no ligamento colateral medial, cruzado anterior, meniscos e na articulação patelo-femoral.  Isto acontece quando há rotação ou torção durante um veloz top turn ou um off the lip, compressão durante finalizações dos floaters, e rotação e compressão durante lay backs, tubos de back side, round house, cut back e (de novo) floater.

    Repetidos choques com a prancha durante os incontáveis joelhinhos pode desenvolver uma saliência óssea na face anterior da tíbia. Esta região afetada, dolorida ao toque, é referida pelo próprio Steinman como “Joelho de Surfista”.

  • Manobras como o floater e o aéreo têm o potencial de causar lesões nos tornozelos. As mais comuns são entorses que variam de 1º, 2º, e até de 3º grau.

    Isso nos remete ao acidente que sofreu a renomada surfista Maya Gabeira (filha do político e escritor Fernando Gabeira) quando pegava uma onda gigante em Nazaré, Portugal em 2013. A trepidação da prancha era tão intensa que causou fratura de estresse no calcanhar. “Depois de cair da prancha, a surfista foi engolida por uma sequência de fortes ondas, que a deixaram desacordada. Foi resgatada, reanimada na praia, e chegou ao hospital de Nazaré com uma fratura no tornozelo. Exames mais apurados constataram lesões na coluna. Teve de passar por três cirurgias e um longo período de reabilitação física. Quando foi liberada para voltar a surfar, experimentou os traumas psicológicos da queda. Tinha pesadelos à noite e começou a sofrer com crises de pânico”. Depois, já recuperada, quebrou recordes e continua a ser um dos grandes nomes do surfe mundial.

Um surfista dedicado surfa algo como 50 ondas por dia e realiza de 5 a 8 manobras em cada uma delas. Se formos contar 6 dias por semana, este atleta realiza algo entre 6.000 e 9.200 manobras por mês. A remada representa 50% de uma sessão de 90 minutos de surfe. O surfista passa então 35% do tempo restante esperando a onda e somente 5% surfando. Imagina se passasse mais do que isso…

Surfe, como qualquer outro esporte, pode, sim, danificar a coluna por causa dos movimentos rotacionais e repetitivos sem o devido condicionamento muscular. Relativamente fáceis de solucionar — principalmente quando tratados em caráter preventivo — tais problemas, se persistirem, podem comprometer a performance do surfista. O veterano australiano tetracampeão mundial Mark Richards viveu este drama nas décadas de 70 e 80. Sofria de dores lombares a ponto de limitar seu surfe.

Tratamentos existem para essas lesões — e consistem inicialmente de repouso, crioterapia, compressas quentes, e talvez antiinflamatórios (até colar cervical em casos mais extremos). Reabilita-se com Quiropraxia e exercícios de mobilização, alongamento e fortalecimento muscular. Ao conquistar uma movimentação completa e livre de dor, aplica-se biofeedback, RPG, técnicas de Alexander, tuina, e shiatsu. O uso do snorkel na natação mantém a coluna em posição neutra. Uma prancha de maior flutuação reduz o ângulo de inclinação do pescoço durante a remada. A maioria dos surfistas estarão aptos a retomarem seu esporte depois de 4 a 12 semanas.

É necessário sempre lembrar que a principal causa de uma lesão esportiva é uma lesão mal curada. Obviamente, o objetivo deste artigo não é assustar os surfistas, mas sim reconhecer as áreas que são potencialmente nocivas ao atleta. Como qualquer modalidade esportiva, o surfe também apresenta certos riscos, que, quando controlados, são estatisticamente negligíveis. Prevenir possíveis lesões é a chave para continuar a praticar um esporte tão nobre e zen.

Afinal de contas, estamos falando de uma modalidade milenar que nasceu na Polinésia, fincou suas raízes no Havaí, e apaixona multidões em todo o mundo. E, como todos os surfistas bem sabem, nada substitui a sensação de conquistar aquela onda perfeita.