Há cada vez mais pessoas sofrendo de algum tipo de lesão por esforço repetitivo. Casos de tendinites, bursites, epicondilites, tenossinovites, síndromes do túnel do carpo, e transtornos vertebrais (como Mudanças Modic) têm se espalhado tal qual uma nuvem de gafanhotos. Qual o motivo desta endemia? Sedentarismo? Hábitos alimentares? Genética? Uso excessivo de celular e computador? Maior cobertura na mídia?

E se houvesse uma origem infecciosa? O saudoso pai deste que vos escreve, médico, vez em quando aventava esta possibilidade. Ele achava que explicaria o aumento quase epidêmico de casos.

Não obstante, é uma hipótese que soa completamente absurda, não acham? Como poderia um problema de natureza mecânica ser causado por um vírus ou uma bactéria? Não há estudo que comprove isso, mas, mesmo assim, será que não mereceria uma investigação mais detalhada? Olhem só o que segue neste artigo.

Pesquisas têm constatado que certas doenças com causas relacionadas à genética ou ao estilo de vida podem ter também uma origem infecciosa. E o número delas é crescente — com causas virais, protozoárias e bacterianas. Esta última preocupa, porque parece haver um aumento universal da resistência delas aos antibióticos.

Entra em cena a revista semanal NewScientist. Esta publicação noticia os mais recentes desenvolvimentos das áreas científicas e tecnológicas desde 1956. Suas matérias são amplamente lidas tanto por leigos quanto por profissionais de diferentes áreas. E a revista ÉPOCA, de 11/01/2010, publicou um punhado de artigos que mostram a origem infecciosa de várias doenças antes tidas como de causa genética ou de estilo de vida. Vírus, bactérias e até protozoários podem estar por trás de várias afecções e ninguém dava nada por isso. Pelo menos, até agora.

  • Considere obesidade, por exemplo. Nikhil Dhurandhar trabalhava como pesquisador da empresa de biotecnologia Obetech, com sede em Richmond, Virgínia nos Estados Unidos. Ele realizou um trabalho que começou no fim dos anos 80 quando era apenas um médico em Bombaim, na Índia. Na época, notou a existência de um adenovírus que “engordava” as galinhas. A partir daí, à medida que se aprofundava nas suas pesquisas, foi percebendo que somente 4% dos magros tinham anticorpos para a versão humana do “adenovírus da obesidade”, o Ad-36 – contra 30% dos obesos. Quando noticiou seu trabalho, Dhurandhar foi recebido com escárnio pela comunidade científica. “As pessoas achavam que ela (a teoria viral da obesidade) era um absurdo”, relembra. Mas, pouco a pouco, outros colegas começaram a chegar às mesmas conclusões. Aparentemente, o Ad-36 torna o metabolismo mais lento e pode inibir um hormônio supressor do apetite (leptina). Ao infectarem células-tronco humanas com o adenovírus, descobriram também que “tendem a se desenvolver como células adiposas”.

  • Foi comprovado que o “vírus do tumor mamário do camundongo” (MMTV na sigla em inglês e uma espécie de retrovírus) ser largamente responsável por desenvolver a doença nesses animais. Em 1995, Beatriz Pogo, especialista em câncer da Escola de Medicina Monte Sinai, Nova York, revelou “parte de um gene do MMTV em 38% dos tumores de mama humanos”. Isto causou na época um grande impacto na comunidade científica.

  • A equipe do bioquímico Joseph DeRisi, do Instituto Médico Howard Hughes, em São Francisco, descobriu em 2006 que algumas “amostras de tumores de próstata continham um novo vírus estreitamente relacionado ao vírus de leucemia murina xenotrópica (XMRV na sigla em inglês)”. Isto não significa que câncer de próstata seja de natureza infecciosa. E, claro, esta pesquisa não gozou exatamente de unanimidade nos meios científicos. Não obstante, outros estudos encontraram resultados semelhantes. “A equipe de Ila Singh, patologista da Universidade de Utah, em Salt Lake City, nos Estados Unidos, publicou em 2010 um estudo em que encontrou XMRV nas próprias células de câncer de próstata em 29% das amostras estudadas” – 6% nas células saudáveis.

    Já um estudo de 2012 meio que refutou esta hipótese. A conclusão é que o “XMRV não circula nos humanos, mas está presente somente em laboratório. Portanto, não há razão para crer que tenha qualquer papel na etiologia de câncer de próstata e outras doenças”. A equipe do estudo original teve que fazer uma retratação.

    (Não nos passou despercebido a ironia deste estudo em particular ter sido justamente realizado por uma uma instituição que leva o nome de um milionário que era um notório e patológico germófobo. Mas apesar da óbvia comicidade da situação, seria realmente injusto e um tremendo golpe baixo trazer esta informação inútil à tona…)

  • Houve até alguns trabalhos correlacionando o diabetes com uma espécie de enterovirus, o coxsackievirus B (CVB). Amostras de tecido do pâncreas de crianças diabéticas foram utilizadas, e descobriu-se que “60% tinham uma proteína do CVB em suas células beta”. Aparentemente, ocorre um ataque autoimune por esta proteína se parecer com uma enzima encontrada nestas células beta, a descarboxilase do ácido glutâmico (DAG). A infecção pelo CVB provavelmente causa tamanha alteração das células beta que o corpo passa então a vê-las como estranhas. Especificamente neste estudo, “o grupo mostrou que o pâncreas de 40% das pessoas com diabetes tipo II continha a proteína CVB, comparado a 13% do pâncreas de pessoas sem a doença”. O desenvolvimento de uma vacina contra o tal enterovírus foi até publicado noutro estudo de 2018.

  • Mas daí a correlacionar Transtorno Obsessivo Compulsivo com uma bactéria, já é um passo bem largo. Isto aconteceu na década de 90, quando a Dra. Susan Swedo, neurocientista do Instituto Nacional de Saúde, em Bethesda, Maryland, nos Estados Unidos, “notou que umas poucas crianças recém-diagnosticadas com TOC tinham sido contaminadas recentemente por bactérias do gênero streptococcus”. Este microorganismo é responsável por um sem-número de infecções na garganta. Swedo conclui que a razão aparentemente reside no fato das “moléculas envolvidas no ataque contra o micróbio” reagirem com “moléculas do hospedeiro humano envolvidas nos gânglios basais ou em outros circuitos do cérebro envolvidos no TOC”. E houve respaldo científico!

  • Outra curiosidade foi correlacionar o protozoário Toxoplasma gondii com esquizofrenia. Estima-se que cerca de 30% da população esteja infectada. E pesquisadores notaram que “algumas pessoas infectadas têm sintomas sinistros como alucinações e uma forte tendência a correr riscos”. Pelo menos nos animais, isto ocorre porque o parasita entra no cérebro e torna-os menos medrosos. No caso dos ratos, eles se aventuram mais. Por correrem mais riscos, muitas vezes acabam sendo capturados e comidos pelos gatos. O ciclo de vida do protozoário, então, se completa. Pois é: nos seus 42 estudos publicados em 2007, o psiquiatra Fuller Torrey, do Instituto de Pesquisa Médica Stanley, em Chevy Chase, nos Estados Unidos, descobriu que “pessoas com esquizofrenia tinham uma probabilidade quase três vezes mais elevada de ter anticorpos para toxoplasma do que as que não tinham a doença”. Este parasita afeta o cérebro, e eleva os níveis de dopamina. Não se sabe o exato mecanismo, mas o excesso de dopamina tem sido associado ao aumento do comportamento de risco e à esquizofrenia.

A história está cheia de idéias tidas no início como estapafúrdias, para depois serem aceitas por todo mundo. Desinfetar as mãos antes de operar um paciente, por exemplo, causou um escândalo na comunidade médica da época. Era uma verdadeira afronta achar que a falta de assepsia poderia disseminar doenças. Afinal de conta, cirurgião que era cirurgião tinha que ter o avental sujo de sangue. Mas o tempo, muito sábio, provou o contrário.

Mais recentemente, na década de 80, comprovou-se sem sombra de dúvida que muitos casos de úlceras no estômago são, na verdade, provocados por uma bactéria chamada Helicobacter pylori. Até então, o estresse e a alimentação eram os únicos culpados. Com esta descoberta, bastou uma pequena dose de antibióticos para debelar a doença. Graças a isso, há sistemática diminuição dos índices de úlceras no Ocidente. Se alguém levantasse esta hipótese 20 ou 30 anos antes seria taxado de louco. Ou não seria?

Mas o que tudo isso significa? Que um percentual significante dos casos de câncer de mama, de obesidade, de esquizofrenia, de TOC e de diabetes  pode ter uma causa viral, bacteriana ou protozoária? Na humilde opinião deste que vos escreve, tudo isso ainda carece de muitos estudos — os de câncer de próstata que o digam!

O fato é que, provavelmente, não veremos tão cedo vacinas contra obesidade, câncer de mama, diabetes, TOC e esquizofrenia — e muito menos contra tumores na próstata. Há sempre outros fatores a considerar. Convém, porém, não refutar veementemente uma idéia que pareça insana de antemão. São justamente estas mudanças de paradigmas que guinam a ciência em uma nova direção. Idéias absurdas de ontem podem tornar-se consenso amanhã. E paradigmas mudam.

Indo neste raciocínio, poderia o falecido pai deste escriba estar correto? Poderiam problemas neuromusculoesqueléticos ter algum tipo de origem infecciosa, como algum tipo de micobactéria? Bem provável que não. Uma origem viral, bacteriana ou protozoária não impede que o problema seja por esforço repetitivo ou por vícios posturais. Mas mudaria de certa forma a visão da afecção, mesmo que seja apenas parte da equação. Quem sabe o velho não tava certo?