Oskar é um menino solitário e atormentado. Solitário porque é filho de pais separados e ainda por cima sem nenhum amigo. Atormentado porque sofre bullying infligido por Jonny e sua turma de valentões. É torturado com requintes de crueldade. A humilhação é diária e sistemática. Mas Oskar fantasia matar Jonny com uma faca.

No começo dos anos 80, num subúrbio de Stockholm, na Suécia, em meio de um emaranhado de apartamentos e neve, Oskar vai tocando sua vidinha deprimente. Até no dia em que conhece outra criança chamada Eli. Havia acabado de se mudar. Eli vive com Håkan, supostamente seu pai. Mas tudo não é o que aparenta ser. Eli não é menina ou menino. Eli é uma vampira (ou vampiro) de mais de duzentos anos de idade. Håkan, obcecado com a “criança”, comete assassinatos para coletar galões de sangue e assim poder alimentá-la.

Este é basicamente o enredo de Låt den rätte komma in, primeiro livro do escritor sueco John Ajvide Lindqvist, lançado em 2004. A obra foi um sucesso de vendas, primeiro na Suécia, depois no mundo. O título foi traduzido para o português como Deixa Ela Entrar.

Melhor teria sido usar a tradução literal (Deixe a Pessoa Certa Entrar), verso emprestado de uma canção do começo da década de 90 do cantor e compositor inglês Morrissey, ex-vocalista da banda de rock britânica The Smiths.

Lindqvist tem se especializado em escrever histórias de terror com alma. Seus personagens têm conflitos éticos e crises existenciais. Seu segundo livro, Mortos Entre Vivos (Editora Tordesilhas, 360 páginas), de 2005, enfoca o que aconteceria se os entes queridos mortos voltassem à vida. O foco não é nos zumbis, mas na reação de surpresa, perplexidade e sofrimento dos vivos. O vampirismo de Deixa Ela Entrar é só o ponto de partida. O livro de 504 páginas, recentemente lançado pela Globo Livros, tem mais a ver com o isolamento urbano, as relações vazias, solidão, bullying escolar e pedofilia. O elemento fantástico é somente incidental.

Um filme sueco baseado no livro foi realizado em 2008 sob a batuta de Tomas Alfredson. Aclamado como um dos melhores filmes de terror da década, destina-se a se tornar um cult clássico. Hollywood ficou de olho e já em 2010 fez sua própria versão. Alfredson recusou-se a filmar o longa americano. Então chamaram Matt Reeves, diretor do ótimo Cloverfield – Monstro (2008). A versão ianque, também competente, faz uso de bons atores infantis que rendem belíssimas interpretações: Chloë Moretz (Kick-Ass: Quebrando Tudo, 2010) é a vampirinha, agora rebatizada de Abby; Kodi Smit-McPhee de A Estrada (The Road, 2009) faz o papel de Owen, o menino vítima de bullying; Richard Jenkins, nominado ao Oscar® pelos filmes O Visitante (The Visitor, 2007) e A Forma da Água (The Shape of Water, 2017) interpreta Thomas, o “guardião” de Abby; e a fria Stockholm virou Los Alamos, no estado americano do Novo México.

A mudança dos nomes do sueco para o inglês ocasionou um problema: no livro, existe uma história por trás do nome “Eli”, que se perde quando trocamos para “Abby”. Incidentalmente, a obra de Lindqvist é bem mais violentamente explícita, visceral e drástica do que as duas versões dos filmes. Ainda assim, ambos nos proporcionam uma grata experiência cinemática. Valem a pena serem assistidos.

John Ajvide Lindqvist deve ter sofrido algum tipo de problema de coluna. Há algumas menções sobre isto em ambos os livros:

  • Na página 163 de Deixa Ela Entrar, o policial que investigava os estranhos assassinatos cometidos por Håkan “colocou uma almofada a mais na sua cadeira para aliviar a dor na lombar”.

  • E quando levantou de repente, “a dor partiu como uma flecha até as raízes de seus cabelos”.

  • O namorado de uma das vítimas de Eli, ao sentar na banheira, “suas vértebras (pareciam) uma série de bolas de pingue-pongue sob a pele” (p.179).

  • O mesmo sujeito, mais tarde, “saltou de sua cadeira e algo estalou em seu pescoço” (p.419) e “não sabia se foi o jeito que dera no pescoço ou alguma coisa que mandou um arrepio por sua coluna” (p.423).

  • Ou quando Eli, enquanto travava uma luta, sentia “que sua coluna estava esticada (com tamanha força) que estava para se partir” (p.433).

É. Filmes. séries e livros de vampiros estão mesmo com tudo hoje em dia. Dor de coluna é que não tá com nada. Mas, quer queira, quer não, sempre acaba aparecendo de alguma formas nas nossas vidas — até na ficção.