Guimarães Rosa (1908–1967), médico, diplomata e um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, ao escrever uma carta a um amigo que sofria de dores de coluna, disse:

“Tu me dizes ultimamente que estás a amar ardentemente, até o mais profundo do teu ser. Ora, há algo mais profundo no ser humano do que a medula, esse réptil escorregadio que conduz nossos prazeres- Pois então, apaixonado, dou-te um conselho: cuida bem da tua coluna! Pois senão há de evaporar-se o teu amor!”

O sujeito tinha mesmo um dom com as palavras. Metaforizar a medula espinhal como “um réptil escorregadio que conduz nossos prazeres” é de uma poesia sublime.

O poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999) também já andou usando figuras de linguagem para descrever a aversão à luz (fotofobia) causada por uma crônica enxaqueca: o sol “(…) bate nas pálpebras como se bate numa porta a socos”.

Alguns célebres personagens literários sofrem com deformidades nas costas. Em alguns, os desvios na coluna são um espelho da sua corrupta alma, como Ricardo III, personagem-título da famosa peça de William Shakespeare (1564-1616). Em outros, as anomalias vertebrais do protagonista Quasímodo fazem com que ele seja execrado pela população no clássico O Corcunda de Notre-Dame, do francês Victor Hugo (1802-1885). A cigana Esmeralda passa por cima da feiura e aprende a amar o pobre-coitado.

A coluna também se adentra na mitologia. Atlas, tal qual seu irmão Prometeu, é um deus da segunda geração de titãs gregos. Zeus andou se chateando com os dois. Prometeu roubou o fogo de Zeus para dar aos mortais. Foi condenado a permanecer amarrado a uma rocha durante toda a eternidade enquanto tinha seu fígado comido por águias. À noite, o órgão regenerava-se para ser comido de novo no outro dia. Atlas, por sua vez, falhou numa tentativa de golpe no Olimpo. Zeus condenou-o a sustentar os céus para sempre. Mas o titã é frequentemente retratado segurando o globo terrestre nos ombros — da mesma maneira que a primeira vértebra cervical suporta o peso da cabeça. Por isso e poeticamente, Atlas é também o nome da primeira vértebra do pescoço. Incidentalmente, o deus Atlas foi petrificado pela cabeça da Medusa e se tornou um monte africano.

O gênio renascentista Leonardo da Vinci (1452-1519), além de ser exercer com maestria as profissões de pintor, escultor, inventor, matemático, cientista, botânico, poeta, músico, arquiteto e engenheiro, também era um anatomista de mão cheia e um desenhista melhor ainda. No início de carreira, estudava anatomia topográfica. Ou seja, desenhava o que era visível. Mas, já um artista de sucesso, elaborou junto com um médico um trabalho teórico sobre anatomia com mais de 200 desenhos. E até recebeu permissão para dissecar cadáveres.

“Leonardo desenhou muitos estudos sobre o esqueleto humano e suas partes, (…) os músculos e nervos, o coração e o sistema vascular, os órgãos sexuais, e outros órgãos internos. Ele fez um dos primeiros desenhos científicos de um feto no útero” (este não muito anatomicamente correto). Retratou também “os efeitos da idade” e “figuras importantes que tinham deformidades faciais ou sinais de doença”, bem como “vacas, aves, macacos, ursos, (cavalos) e rãs. (…) comparava (estes) desenhos em sua estrutura anatômica com o dos seres humanos” (Wikipédia).

Leonardo da Vinci foi “um dos primeiros estudiosos e artistas a desenhar com perfeição a coluna vertebral humana (…).” Este grande gênio foi também “o primeiro a mostrar a coluna com sua totalidade de vértebras: 33.” São tão perfeitos seus desenhos que já “detalhavam todos os acidentes anatômicos de vértebras complexas como o atlas e o axis”, bem como o sacro. Tudo isso em pleno começo do século XVI — quando o Brasil nascia. (As Belas-Artes da Medicina de Armando Bezerra, Editora CRM, 2003)

Da Vinci é a quintessência do Renascimento — um homem com uma curiosidade insaciável igualada somente pela sua inacreditável criatividade. Era canhoto, escrevia de trás para frente e dizem que procrastinava até não poder mais. Mesmo assim deixou sua marca indelével no mundo.

Pois é. Desde que o mundo é mundo a coluna vertebral se infiltra de alguma forma na cultura e nas artes.