Estamos vivendo atualmente num período meio caótico, de polarizações e contradições — em parte por conta do coronavírus e em parte por conta da politização em torno do mesmo. Ainda assim, a nível pessoal, até o momento que escrevi estas linhas, não tive conhecimento de um único parente ou amigo que tenha contraído o COVID-19. Suponho que tenha tido sorte. Por ora, pelo menos.

Claro, observo o distanciamento. Uso máscara quando saio de casa. Sanitizo a sala de atendimento com zelo. Mas também sou consciente que tudo isso não me faz protegido 100%. Apesar de que é melhor ter um certo controle do que controle nenhum.

Alguns pacientes meus tiveram covid. Todos de forma relativamente branda. Quase todos quando nem estavam ainda em tratamento. Alguns pacientes perderam seus entes queridos para o coronavírus. Mas até então não havia experimentado o dissabor de ter tido algum paciente que tivesse perdido a vida pelo coronavírus.

Conheci seu Nilton* em 2016. Na época, contava com 67 anos. Era um sujeito agreste. Daquele tipo de pessoa que tinha palavra e que um aperto de mão bastava para selar um negócio. De pouca instrução, fez questão de formar seus filhos e filhas. Não era rico, mas relativamente remediado. Tinha uma rocinha de cacau no interior do estado. Esta rocinha ficava próxima de uma pequena cidade que ele ajudou a fundar e construir. De fato, uma de suas filhas ocupava um cargo de confiança na prefeitura local. Era muito conhecido, amado e respeitado por lá.

Seu Nilton chegou ao consultório com queixa de dores na região lombopélvica irradiando para os MMII. Daquelas que, após andar mais de 200 metros, era forçado a se sentar e esperar aliviar a dor das pernas. Na medida em que me relatava essas informações, a hipótese diagnóstica já ia sendo formada na minha cabeça: estenose lombar — confirmada pelas ressonâncias da época: discopatia degenerativa difusa com abaulamentos discais em L3/L4 e L4/L5 e espessamento do ligamento amarelo nestes segmentos. Tudo isso causa estreitamento do canal medular.

Mas havia algo mais: o paciente exibia marcha mielopática — sinal de algo errado no sistema nervoso central ou talvez na coluna cervical. Dito e certo: a ressonância da região acusava hérnias discais extrusas em C4/C5, C5/C6 e C6/C7 (todas paramedianas esquerdas). Mas também havia hipertrofia no ligamento longitudinal posterior que, somado às hérnias, causavam um estreitamento no canal medular e caracterizavam um quadro de estenose cervical. Complemente-se a isso o resultado da eletroneuromiografia que acusava lesão discogênica bilateral de C5.

Caracteriza-se a marcha mielopática por certa alterações e dificuldade ao andar; desequilíbrio; lentidão nos movimentos; enrijecimento dos membros inferiores; dor e cansaço.

Seu Nilton labutou muito na vida. Capinou, podou pés de cacau, montou em burro bravo, deu um duro danado. Sua coluna foi um reflexo da vida que viveu — sem mais nem menos. Com uma particularidade: homens do campo como ele, não obstante o aspecto degenerativo da coluna, tendem a possuir poderosos músculos eretores, particularmente os paravertebrais. Isto, num tratamento de Quiropraxia, pode significar um diferencial de melhora muito grande. E, de fato, seu Nilton respondeu muitíssimo bem aos ajustes. Já conseguia andar quase um quilômetro antes de precisar se sentar – e não tão somente 200 metros. A “descoordenação” nas pernas já estava quase imperceptível. Em suma: ele estava em plena rota de melhora. Mas aí achou que o problema estava resolvido e sumiu.

Uns dois anos depois aparece seu Nilton de novo. Os sintomas voltaram. O desequilíbrio da marcha também — só que ligeiramente pior. Estava usando cinta lombar há quatro meses.

Um parêntese: apesar de estabilizar bem a coluna lombar, o uso crônico e contínuo da cinta pode atrofiar a musculatura paravertebral — que era justamento o trunfo de seu Nilton para responder bem a um tratamento de Quiropraxia.

As novas ressonâncias acusavam uma hipertrofia ainda maior do ligamento amarelo na coluna lombar e já havia indícios de mielopatia na medula cervical.

Claro, recebeu um sermão daqueles. Que Quiropraxia é um tratamento preventivo. Que, por conta da natureza da estenose lombar e cervical, havia a necessidade de fazer manutenção por tempo indeterminado — e bem após do tratamento em si. E que também havia a necessidade de reabilitação para recuperar a musculatura. Seu Nilton desta vez captou a mensagem.

Ele não se arrefeceu. Vinha de caminhonete da sua rocinha que ficava quase 150 quilômetros de distância para fazer as sessões de Quiropraxia e eventualmente Pilates. Fez isso religiosamente uma vez por semana — mais pelo Pilates, uma vez que as sessões de Quiropraxia ficaram mais espaçadas. Às vezes até trazia umas bananas de sua roça — muito apreciadas por aqui, por sinal.

Sua melhora foi nada menos que fantástica.

Aí veio março de 2020. E com os idos de março, a pandemia. E com ela, o distanciamento social. Foi neste período que seu Nilton deixou de vir. Sem explicações. Encaramos sua ausência como consequência natural do período. Afinal, ele estava no grupo de risco. Com certeza preferiu ficar isolado na sua rocinha a se arriscar numa cidade em que o covid caminhava a passos largos. Normal. E assim ficamos sem notícias dele por todos esses meses.

Até que um paciente da mesma cidade começou a se tratar e deu notícias de seu Nilton. Foi de fato o covid a razão dele não ter vindo todos esses meses. Literalmente. Dramaticamente. Seu Nilton foi o primeiro da sua cidade a contrair covid. Ele, tão forte e tão bravo, morreu dois dias depois. Acabou sendo também a primeira vítima fatal do coronavírus na sua cidade.

Sua morte gerou uma comoção generalizada. Imaginem o trauma que foi o enterro. Não foi permitido velar o corpo. O cortejo fúnebre seguiu vazio. A ninguém foi permitido ver o sepultamento de perto. Seu Nilton foi enterrado completamente só. Os habitantes da cidadezinha ficaram muito chocados pela maneira como tudo se desenrolou. Mas aprenderam com aquilo. A cidade foi fechada por alguns meses. Lockdown total. Vidas foram salvas. Resta este consolo, pelo menos.

Seu Nilton era um sujeito correto. Um dos bons. Um homem que possuía o paradoxo de ser comum e excepcional ao mesmo tempo. Que fez uma diferença na sua comunidade e, com certeza, entre as pessoas que o cercavam. O mundo ficou mais vazio sem ele. Como já dizia o Rei do Baião Luiz Gonzaga, “Deus te ilumine neste novo itinerário”, seu Nilton.

(*Nilton, claro, é um nome fictício. Mesmo com a permissão verbal da família, foi a melhor forma que encontrei para discutir um pouco o caso sem infringir tanto assim a ética da nossa profissão. E para também assim, do meu modo, tentar manter viva a memória de cada homem, mulher e criança que sucumbiram vítimas da sanha deste vírus insano.)