Para os leitores que apreciam a sétima arte, este cinéfilo de carteirinha recomenda assistir qualquer filme iraniano ou argentino. Estes dois países só andam fazendo filmes sensacionais.
O cinema iraniano, talvez até para burlar a censura vigente do país dos aiatolás, tem feito filmes simples, singelos e poéticos — premiados internacionalmente. Gosto de Cereja de Abbas Kiarostami ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1997. Filhos do Paraíso (1997) de Majid Majidi é uma fábula tocante sobre duas crianças pobres. O irmão compartilha seu único par de sapatos com sua irmãzinha que perdeu o seu. E participa de uma corrida, cujo prêmio de terceiro lugar é justamente um novo par. É impossível não chorar. Foi indicado para o Oscar™️ de Melhor Filme Estrangeiro, mas perdeu para o insosso A Vida É Bela (1997). A consagração veio 14 anos depois, quando A Separação (2011) de Asghar Farhadi ganhou o Oscar™️ de Melhor Filme Estrangeiro, aparentemente o primeiro do Irã. O filme, que levou também o Urso de Prata e o Globo de Ouro, trata da burocracia dantesca que um casal tem que passar para separar-se. Isto acaba levando o surgimento de outros problemas que regurgitam num espiral sem fim. É tenso e angustiante, mas delicioso de assistir.
Já a nova leva dos filmes argentinos se compara a um bom vinho. Há inúmeros deles: Nove Rainhas (2000) conta a estória de dois trapaceiros cheia de reviravoltas impressionantes. O Filho da Noiva (2001) é sobre a perplexidade de um filho quarentão que não compreende a insistência de seu pai para levar sua mãe, sofredora de Alzheimer, para o altar. Foi candidato a um Oscar™️. O Segredo dos Seus Olhos (2009) traz à tona um homicídio ocorrido há décadas e a obsessão de um homem para resolvê-lo. Ganhador do Oscar™️ de Melhor Filme Estrangeiro, a obra contém uma cena num estádio lotado feita de maneira tão complexa e sofisticada que até hoje os cinéfilos se debruçam sobre como o diretor realizou tal proeza. Não à toa, o ator Ricardo Darín está nestes três filmes. Aliás, tudo que este cara filma na Argentina vira ouro — como Selton Melo aqui no Brasil. Darín também estrelou os ótimos Nieve Negra (2017) e o também candidato ao Oscar™️ Argentina, 1985 (2022)
O Homem ao Lado (2009) não conta com Ricardo Darín do elenco, mas é também um grande filme. Lida com um conflito de vizinhos — quando um deles resolve abrir uma janela e invadir a privacidade do outro. Mas a vítima não é quem parece ser.
Essa coisa de abrir janelas na marra parece ser uma coisa que ocorre com certa frequência por lá. Medianeras, lançado em 2011, é basicamente um filme sobre a solidão na era virtual. O título remete às paredes cegas em que um edifício encosta no outro. Não se pode haver janelas, mas, de vez em quando, alguém abre um buraquinho para obter um pouco de luz. O filme é narrado por Martín, um sujeito alienado e com fobia de tudo. Ele vive de fazer sites de internet na sua kitchenette, no meio de uma Buenos Aires de arquitetura caótica e desencontrada. “Estou convencido de que as separações, os divórcios, a violência familiar, o excesso de canais a cabo, a falta de comunicação, a falta de desejo, a apatia, a depressão, o suicídio, as neuroses, os ataques de pânico, a obesidade, as contraturas, a inseguridade, a hipocondria, o estresse e o sedentarismo são responsabilidade dos arquitetos e da construção civil. Destes males, salvo o suicídio, padeço de todos”, filosofa o protagonista.
Ok, ok, ok, mas o que é que isso tudo tem a ver com questões neuromusculoesqueléticas — que são, afinal de contas, o mote deste artigo? Bem, nosso hipocondríaco protagonista impressiona-se com uma fusão congênita de duas de suas vértebras cervicais e duvida do médico que lhe assegura tratar-se de uma coisa normal. O engraçado é ver o médico abrindo a janela para fumar no meio da consulta e mostrar a radiografia de cabeça para baixo no negatoscópio. Pronto. Taí o pretexto.
“A internet me aproximou do mundo, mas me distanciou da vida. Faço coisas de banco e leio revistas pela internet; baixo música, ouço rádio pela internet; compro comida pela internet, alugo e vejo filmes; converso pela internet, estudo pela internet, jogo pela internet, faço sexo pela internet (…)”, reconhece Martín. Paralelamente, o filme mostra a vida de Mariana, não menos complicada do que nosso herói. A moça tem fobia de elevadores e prefere a companhia de manequins.
Medianeras força a gente a refletir sobre até que ponto o caminho trilhado pela humanidade nos dias de hoje com o uso excessivo do computador (e celular) afetará as relações interpessoais. Martín e Mariana são símbolos disso. E por conta disso, mais fácil duas vértebras se fundirem do que esses dois se encontrarem.