Por fazer parte do seu dia-a-dia clínico, todo Quiropraxista bem sabe quão devastante pode ser uma crise de dor de coluna. Não é a tão-somente dor. São as ramificações. A crise põe em cheque relacionamentos pessoais e profissionais, e a própria capacidade de produzir. Como, afinal de contas, alguém pode pensar claramente sofrendo de uma baita lombalgia?

E quanto ao processo criativo de um artista? Já imaginaram Leonardo da Vinci pintando a Mona Lisa com uma bursite subacromial? Ou Michelangelo pincelando a Capela Sistina com dores ciáticas? Ou Niemeyer projetando Brasília com cefaleia tensional? Ou John Lennon compondo “Imagine” com uma baita cervicalgia? Teriam tido resultados diferentes?

A bem dizer da verdade, alguns dos maiores gênios da arte eram almas torturadas. Van Gogh decepou a própria orelha num surto psicótico. Beethoven compôs belíssimamente mesmo quando completamente surdo. Mas dores neuromusculoesqueléticas quem sofria mesmo era Frida Kahlo por sequelas de um feio acidente — e mesmo assim se tornou um ícone pelo seu próprio direito.

Voltando nossos olhos para a Sétima Arte, até que ponto dores de coluna poderiam interferir na realização de um filme? Temos cá alguns exemplos:

  • Robert Crumb simbolizou os anos 60. Expoente do movimento underground dos quadrinhos americanos, contestador, sujo e com uma pitada de depravação, o ilustrador ganhou fama por desenhar Fritz the Cat, um gato boa vida e meio que chegado a orgias. Antes, idealizou a revista artesanal Zap Comics, a qual vendia nas ruas de San Francisco num carrinho de bebê. O sucesso de Fritz the Cat assustou Crumb. Após autorizar um filme baseado no personagem, odiou o resultado, encheu o saco e “matou” o tal gato em 1972.

    O legendário cartunista esteve no Brasil em 2010. Foi um dos convidados da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Naquele ano seu público encostou na casa dos 30.000 mil. O evento foi um tremendo sucesso — fruto do árduo trabalho da Associação Casa Azul, mentora do projeto, que criou o evento em 2003. A cidade teve até dificuldades de abrigar tanta gente.

    A editora Conrad, responsável pela publicação dos trabalhos de Crumb, aproveitou sua visita para lançar Meus Problemas com as Mulheres (estas sempre retratadas como voluptuosas, de pernas grossas e bem maiores do que o autor), e relançar Kafka de Crumb, bem como assinar a obra Gênesis (baseada no primeiro livro do Velho Testamento).

    Os ingressos para sua mesa na FLIP se esgotaram no primeiro dia de vendas. Mas quem foi se decepcionou. O cartunista estava taciturno e macambúzio a maior parte do tempo. Respondia evasivamente e com monossílabos. Juntamente com o consagrado cartunista Gilbert Sheldon, autor dos “Freak Brothers”, não deram muita bola para o público, que, por sinal, começou a sair antes da hora.

    Quando o jornalista Sérgio D´Ávila, mediador do encontro, o informou do encerramento, Crumb pulou da cadeira e caiu fora. Foi um anticlímax para quem esperava uma explosão de histórias do underground americano dos anos 60. Uma pena.

    Crumb foi alvo de um documentário homônimo em 1994. A obra retratava sua família pra lá de disfuncional. Mas o foco era nele e nos seus dois irmãos. Um era completamente agorafóbico e não saía de seu quarto há anos. Exímio desenhista, suicidou-se logo após o término das filmagens. Foi a inspiração de Crumb, fato admitido por ele no filme. O outro irmão, natureba de carteirinha, engolia um barbante para poder segurá-lo simultaneamente perto da boca e do ânus. Justificava como um processo de limpeza. O pai, extremamente severo (já falecido) e a mãe, superprotetora completavam o quadro. As irmãs se recusavam a gravar entrevistas.

    Não obstante, a película ganhou o Grand Jury Prize no festival de Sundance, e tornou-se, na época, o terceiro documentário de maior sucesso comercial nos Estados Unidos. Mas não foi nominado ao Oscar. Apesar da premissa depressiva, o filme é realmente muito bom.

    Foi dirigido por Terry Zwigoff, que conhecia Crumb por mais de vinte anos. Na época, o diretor sofria de uma forte ciática que quase o enlouqueceu. É um mistério como uma pessoa tão atormentada pudesse fazer um documentário tão singelo. Há um boato, inadvertidamente espalhado pelo crítico de cinema Roger Ebert, que Zwigoff só conseguiu a autorização de Crumb após ameaçar matar-se com um tiro na cuca. Um homem com dor é capaz de tudo. O que uma radiculite violenta não faz…

    Terry Zwigoff divide com Robert Crumb a paixão pelos blues. Chegaram até a gravar um disco juntos. O diretor realizou depois dois ótimos filmes: o curioso Ghost World (2001) e o anárquico Papai Noel Ás Avessas (Bad Santa, 2003). Não é lá muito prolífico, mas seus filmes são bons. É um diretor competente.

  • Soul Kitchen (2009), na opinião deste cinéfilo, foi o filme que reproduziu mais cuidadosamente os percalços de alguém com dores lombares. Seu diretor alemão de ascendência turca, Fatih Akin, mais conhecido por dramas como Contra a Parede (Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2004) e Do Outro Lado (prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes de 2007), enveredou-se pela primeira vez no gênero comédia com este filme — ganhador do Grande Prêmio do Júri do Festival de Veneza. Além de ser um diretor premiado, Akin é também um sofredor crônico de lombalgia causada por hérnia de disco.

    Soul Kitchen conta a história de Zinos (Adam Bousdoukos), um imigrante grego dono de um restaurante de quinta categoria numa região decadente de Hamburgo, Alemanha. O sujeito é péssimo cozinheiro — só sabe fritar congelados. Sua clientela é pequena, mas fiel. Só que Zinos não tem tido muita sorte ultimamente: sua namorada está de mudança para Xangai; seu irmão presidiário pede um emprego de fachada; a receita federal e a vigilância sanitária ameaçam fechar seu estabelecimento; e seu amigo-da-onça corretor tenta sabotar o restaurante para comprá-lo por um preço baixo.

    Como se tudo isso não bastasse, o protagonista dá um jeito na coluna ao arrastar uma pesada máquina. E passa o restante do filme travado e mancando — e tentando resolver outros problemas bem mais urgentes.

    Justamente por padecer deste mal, o diretor treinou pessoalmente seu ator principal, Adam Bousdoukos, a desenvolver uma linguagem corporal típica dos que sofrem de coluna. De fato, Bousdoukos confirmou numa coletiva que Akin usou sua própria experiência para orientá-lo sobre sua postura corporal no filme: “ele (o personagem) carrega todo um peso, não só psicológico, como físico decorrente de todo o estresse que ele está vivendo”: a maneira à la “tartaruga de barriga pra cima” de se levantar da cama; o andar incerto e mancando; a postura antálgica (torto para um lado); e as reincidências ao longo do filme — todos compõem um retrato fiel do quadro clínico evolutivo de um “lombalgista”.

    Zinos, no entanto, não desiste. Tenta resolver seus problemas, um de cada vez. Sua urucubaca muda quando contrata um chef temperamental (Binol Ürel) que cozinha divinamente. Seu restaurante começa a emplacar, mas os problemas crescem também em proporção geométrica. E a coluna continua doendo até resolver cobrar a fatura de vez e o protagonista ser acometido por uma violentíssima dor ciática no final.

    Em tempo: o protagonista só melhorou após ser “manipulado” com tração por um turco “fisioprata” (seja lá o que isto for). É mole?

    Difícil de acreditar que se trata de uma comédia. Mas, por incrível que pareça, é. E das boas. Para o diretor Ang Lee, ganhador de dois Oscars e presidente do júri do Festival de Veneza daquele ano, Soul Kitchen “foi brilhantemente realizado, um sopro de ar fresco neste festival” (REVISTA PREVIEW 07, março/2010).

  • Terry Gilliam (consagrado diretor dos belíssimos filmes Brazil, O Pescador de Ilusões e os Doze Macacos, e ex-integrante do grupo de comédia inglês Monty Python) enfrentou tremendas dificuldades para realizar O Homem que Matou Dom Quixote. Além de uma enchente que arrasou os cenários, Gilliam teve um sério problema com seu ator principal. O francês Jean Rochefort simplesmente não conseguia cavalgar por causa das dores “causadas por duas hérnias de disco”. Levado às pressas para Paris, não conseguiu retornar em tempo. O orçamento estourou e as filmagens tiveram que ser canceladas. Resultado do fracasso da produção de 1998, o filme ficou mais de 25 anos sem ver a luz do dia.

    E parecia mesmo que enterraram uma cabeça de burro ali. “Os direitos do filme ficaram nas mãos da seguradora”. Gilliam correu atrás para reaver esses direitos (“algo só concluído em 2008, embora o artista viesse trabalhando nisso desde 2003, inclusive entrando em contato com atores, atrizes e equipe técnica para a ‘nova-nova produção de Quixote'”). A terceira tentativa de levantar o filme em 2010 não foi pra frente. Em 2014, quando estavam se preparando para filmar, outro ator principal adoeceu (desta vez não foi da coluna). Na quinta tentativa em 2016, houve divergências irreconciliáveis entre Terry Gilliam e o produtor português Paulo Branco — “num processo que rendeu acusação à equipe de produção do filme por ter danificado um Convento considerado patrimônio histórico pela UNESCO. A investigação acabou dando em ‘danos insignificantes’, mas as filmagens foram interrompidas ali“.

    Só em 2017, 27 anos anos depois da primeira tentativa, nosso persistente diretor conseguiu finalmente produzir e filmar O Homem Que Matou Dom Quixote, agora com novo elenco.  O filme foi elogiado pela crítica e a atuação dos seus atores principais “dignas de se aplaudir de pé”. Pode se dizer, sem medo de trocadilhos, que a fagulha que iniciou esta via-crúcis quixotesca de Terry Gilliam foi um simples transtorno discal.

Pois é. Três exemplos interessantes: um que filmou uma pequena obra-prima com dores intensas; outro que teve dores incapacitantes de coluna e soube passar esta experiência para que seu ator principal pudesse construir um personagem; e outro que fez das tripas coração para realizar um filme cancelado, dentre outros motivos, por uma baita duma lombalgia — adversidades estas que foram eventualmente contornadas.

A arte imitando a lombalgia ou a lombalgia imitando a arte?