Aconteceu em Estolcomo, Suécia, em 2002. “(…) em meio a uma onda de calor sem precedentes (…), uma tempestade elétrica faz com que aparelhos de todo tipo (…) se mantenham ligados”. O barulho que as televisões e rádios emitem é ensurdecedor. As pessoas simplesmente não conseguem desliga-los. E, ao mesmo tempo, “são acometidas por dores de cabeça devastadoras”. Mas, de repente, cessam-se os fenômenos. Tudo então volta ao normal, exceto por umas lagartinhas brancas que parecem cair do céu e se infiltram no solo. Ou melhor, nas covas recentes, com menos de dois meses.

David Zetterberg é um comediante, marido de Eva e pai do pequeno Magnus. Sua esposa sofre um terrível acidente: ao atropelar um alce, é parcialmente esmagada pelos seus chifres. Morre na hora. Ao lado do leito hospitalar onde jaz o corpo da sua amada, David chora. E não percebe que ela começa a se levantar…

Elvy é avó de Flora. A neta herdou sua mediunidade. O marido de Elvy, Tore, acabou de morrer. O corpo ainda está sendo velado na igreja. Á noite, enquanto Flora dorme, Elvy é despertada por um barulho na porta. É Tore, ainda vestindo as roupas com as quais seria enterrado. O defunto entra, vai para sua biblioteca, senta na sua mesa, chafurda incoerentemente os seus papéis, como se estivesse fingindo viver.

Gustav Mahler foi o primeiro jornalista que cobriu o fenômeno. Depressivo, e em luto profundo desde a morte de seu netinho, Mahler não teve dúvidas: entrou no carro e disparou para o cemitério a fim de desenterrar o garoto. O personagem é obeso, sedentário e fumante. O esforço de cavar o buraco machucou suas costas. Somos então premiados com uma avalanche de metáforas, prosopopeias e outras figuras de linguagem — com até um certo lirismo e poesia (onde permite um livro sobre zumbis):

  • “suas costas gritaram enquanto tomava fôlego”;

  • “tentou levantar, mas sua coluna disse não”;

  • “ele ignorou o uivo de suas costas”;

  • “ele subiu, uma vértebra de cada vez”;

  • e “sua coluna foi substituída por um ferro quente”.

A dor de coluna que o velho Mahler sentiu passou com analgésicos. O horror de ver a coisa que seu neto se tornara não.

Mortos Entre Vivos (Editora Tordesilhas, 360 páginas) é o segundo livro do celebrado autor sueco John Ajvide Lindqvist, publicado em 2005. Antes desse, estourou com Deixa Ela Entrar, fenômeno de vendagens — livro este que gerou dois bons filmes. As duas obras são supostamente de terror, mas Lindqvist não cai na armadilha de sustos fáceis. Seus livros são psicologicamente densos, enfatizando as relações interpessoais. Deixa Ela Entrar foca no relacionamento entre um garoto vítima de bullying e uma vampira-criança. Mortos Entre Vivos aborda o que aconteceria se os “entes queridos que, em tese, todo mundo gostaria que jamais se fossem”, de repente retornassem — podres, desfigurados e vazios (VEJA, 04/04/2012). Lindqvist aborda discussões éticas, filosóficas e até metafísicas para tentar lidar com uma situação inusitada e indescritível.

O filme de zumbi já há muito deixou de ser o patinho feio dos filmes de terror. De alguns anos para cá se tornou mainstream. O pioneiro desses filmes foi o então jovem (e hoje saudoso) diretor George A. Romero. Em 1968, com pouquíssimo dinheiro, ele realizou o clássico A Noite dos Mortos-Vivos. E ditou regras de comportamento para os zumbis: vagar por aí devagar e sem rumo; ter fome incessante de comer a carne dos vivos; e de só morrer com um tiro ou golpe na cabeça. Romero fez mais uns cinco filmes sobre o assunto e gerou um sem-número de admiradores, seguidores e imitadores. Zack Snyder realizou uma refilmagem de Madrugada dos Mortos (Dawn of de Dead) em 2004, o segundo dos filmes de Romero. Só que neste, os zumbis não andavam, corriam com fúria. Semelhante estratégia havia sido adotada pelo (depois) oscarizado Danny Boyle no ótimo Extermínio (28 Days Later) de 2002.  Há muita crítica social nestes filmes. Com o sucesso do seriado The Walking Dead, já entrando na 11ª (e aparentemente última) temporada, os mortos-vivos finalmente chegaram à sala de jantar da família americana — e no horário nobre.

Mas Mortos Entre Vivos subverte essas regras. Seus zumbis não perseguem os vivos. Eles não se alimentam. Até se comunicam (como no caso de Eva, a defunta mais fresca do grupo). Não passam de conchas vazias. São nada mais do que um espelho da gente. Respondem de acordo com estímulos que recebem — quanto pior o estímulo, pior a reação. Daí o horror da história. O pior de todos. Não o horror escrachado, escatológico, sangrento, mas o horror sugerido. O das entrelinhas.