John D. Voelker (1903-1991) passou a maior parte da sua vida no bucólico estado americano de Michigan. Formou-se em direito no ano de 1928, trabalhou como advogado, promotor e, finalmente, como juiz da Corte Suprema Estadual Americana. É mais ou menos aqui no Brasil como um desembargador no Tribunal Regional Federal.
Dizem que ele era um homem muito simpático, de hábitos espartanos. Vivia numa casa simples, andava para o trabalho, dizia bom-dia para as pessoas, coisas assim. Era louco por uma pescaria. E se metia a escrever nas horas vagas.
Talvez um dos maiores julgamentos de sua carreira como advogado de defesa foi num caso de homicídio ocorrido no comecinho da década de 50. Um tenente do exército americano matou um sujeito que supostamente estuprou sua esposa. Foi absolvido por razão de insanidade temporária.
Este caso inspirou Voelker (sob o pseudônimo de Robert Traver) a escrever Anatomia de um Crime. O livro, lançado em 1958, foi um sucesso. Chamou a atenção do famoso diretor Otto Preminger, que não perdeu tempo e produziu logo um filme no ano seguinte, a toque de caixa. Hollywood, apesar da velocidade, realizou uma obra-prima.
O enredo baseia-se largamente no julgamento de 1952 que Voelker defendeu. Só mudaram os nomes e algumas circunstâncias.
Paul Biegler é um advogado interiorano meio desencantado pela profissão, que passa mais tempo pescando do que nos tribunais. É uma espécie de alterego do autor.
Mantém um escritório empoeirado numa galeria qualquer do centro da cidade, ao lado (o livro diz) de um consultório de Quiropraxia (ahá!). Biegler é assistido por sua (mal ou nunca remunerada) secretária e tem como amigo um colega pinguço (Arthur O´Connel) que não consegue, ou que não pode mais atuar na profissão. O personagem principal é magistralmente interpretado pelo saudoso e sempre ótimo James Stewart.
Um belo dia, nosso advogado recebe um telefonema. Um tenente do exército, Frederick “Manny” Manion (Ben Gazzara, em início de carreira) entregou-se após atirar em Barney Quill, o proprietário de uma pousada e restaurante de sucesso numa região turística de Michigan. E gostaria que ele o defendesse.
Assim ocorreu o crime: Manion é casado com Laura (Lee Remick, no auge de sua beleza). Eles moram num trailer, onde a esposa passa o dia todo sem nada para fazer. Uma noite, o tenente chega cansado e vai tirar um cochilo. Laura decide ir para o restaurante de Quill. Lá, ela se diverte na máquina de pinball. O proprietário pede se pode jogar com ela. Mais tarde, oferece-a uma carona para casa. No caminho, ele a estupra e a espanca brutalmente. O tenente, após tomar conhecimento da situação, pega sua arma, vai até o estabelecimento de Quill e o enche de balas, matando-o na hora.
Parece um caso preto no branco. Manion admite sua culpa e entregou-se. Mas aí vem o papel do advogado, que tem a brilhante (e, diga-se, amoral) ideia de alegar insanidade temporária (ou impulso irresistível, como classifica o psicólogo do exército).
A partir daí, o livro (e o filme) se encarrega de mostrar os processos envolvidos na preparação do caso, a arregimentação de testemunhas, a seleção dos jurados, e o jogo de gato-e-rato entre a defesa e a promotoria — uma autêntica “dança das mentes” num tabuleiro de xadrez.
Há até espaço no livro para descrever o problema de coluna — uma lombalgia (ahá de novo!) de Sulo, assistente do xerife. Biegler estimula-o falar sobre suas dores como tática para convencê-lo a permitir que se encontre com Manion na sala do Xerife.
Anatomia de um Crime recebeu sete nominações ao Oscar: Melhor Ator para Stewart; Melhor Ator Coadjuvante para O’Connel; Melhor Ator Coadjuvante para um jovem George C. Scott (que interpreta um dos promotores); Melhor Fotografia em Preto e Branco, Edição e Roteiro Adaptado; e Melhor Filme. Não ganhou nenhum.
No filme, foi incorporada uma paixão do advogado pelo jazz como desculpa para o famoso músico Duke Ellington produzir uma bela e magnífica trilha sonora.
O filme, realizado no final da conservadora década de 50, chocou pela sua linguagem direta e sem firulas sobre um assunto que era definitivamente tabu — empregando palavras como espermatogênese, sémen e estupro. Claro, controverteu, escandalizou e causou. Hoje em dia seria até considerado um filme ameno. No entanto, nos últimos anos, ganhou uma certa relevância por causa do movimento #metoo.
No final das contas, virou um clássico pela bela atuação de seus atores, pelo enredo bem escrito e sem ter medo de ser ousado.