Desde que o ancestral do homem criou coragem (ou necessidade) para descer das árvores e passar a andar ereto pelas savanas africanas, a coluna vertebral começou sofrer as chamadas “falhas evolutivas”. Instaurava-se ali uma espécie de “pecado original” biológico. A lordose lombar se formou (um diferencial) e com elas as instabilidades (o preço a pagar). A primeira lombalgia provavelmente aconteceu após algum dos nossos ancestrais tentar mover um mamute abatido. Ou talvez ao pegar uma pesada pedra para se defender de um tigre dentes-de-sabre. Mas típico de nossa natureza inquisitiva, eventualmente descobriram que a ação de pisar em cima da coluna do infeliz, ou de exercer algum tipo de tração, provocava uma espécie de “estalido” seguido de sensação de alívio. Nasceu então, juntamente com as dores de coluna, uma maneira de tratá-las.
Esta prática de manipulação dos segmentos vertebrais vem sendo feita há aproximadamente 3 mil anos, passando por diversas culturas e se misturando à história da humanidade. Mas a manipulação era feita de maneira tosca, aleatória e sem especificidade. Basicamente era um tiro no escuro.
Na medida que o século XIX chegava ao fim, a medicina tradicional passava por uma crise de identidade, em que afloravam outros tratamentos menos convencionais, por assim dizer. A população dos Estados Unidos estava extremamente receptiva a tratamentos alternativos devido às limitações da alopatia da época. As pessoas buscavam outras maneiras menos invasivas do que a tradicional sangria por sanguessugas ou a boa e velha amputação. Foi justamente no século XIX que surgiu a homeopatia — bem antes da invenção da penicilina, vacinação em massa, e técnicas cirúrgicas mais apuradas. Tratamentos com fitoterapia, naturopatia, ou até com magnetoterapia eram bastante procurados.
John W. Kellogg (o inventor do famoso cereal) faturou horrores naquela época. Entusiasta da saúde, fundou um famoso spa na virada do século, oferecendo banhos medicinais, lavagens intestinais e outras modalidades.
E magnetoterapia era justamente o que um sujeito chamado Daniel David Palmer praticava num dos poucos prédios de tijolos da então pequena e poeirenta cidade de Davenport, Iowa — em pleno meio-oeste americano. D.D., como era mais conhecido, nasceu no Canadá. Este homem, de barba espessa e olhar profundo, era também dotado de uma curiosidade insaciável e de diversos interesses: exerceu a profissão de apicultor, fazendeiro, dono de mercearia, mestre-escola, entre outras atividades, até se especializar em sua então presente profissão. Seu consultório era tido como bastante movimentado. Palmer era extremamente requisitado, mantendo seus horários sempre cheios.
Por um capricho do destino, apareceu um paciente com uma queixa que fez D.D. Palmer contemplar a possibilidade de existir algum tipo de correlação entre o pinçamento de uma vértebra e a afecção daquele paciente. Corria o ano de 1895. E no prédio do seu consultório trabalhava um faxineiro chamado Harvey Lilard. Este homem relatava uma surdez repentina que teria ocorrido logo após “ouvir um estalo na coluna enquanto trabalhava”. Isto chamou a atenção de D.D. Palmer, que raciocinou haver algum tipo de ligação entre o “estalo” e a surdez. Após muita insistência, um Lilard relutante (e meio cético até) aceitou ser tratado. D.D., ao examiná-lo, constatou que a primeira vértebra torácica estava “meio presa”, e após manipulá-la na direção aposta à fixação, Harvey Lilard levantou atarantado: sua audição havia miraculosamente retornado ao normal.
Este evento é considerado o marco zero da nossa profissão — o primeiro ajustamento (uma manipulação vertebral específica com um objetivo definido) que se tem notícia. O nascimento da Quiropraxia tal qual a conhecemos. E é exatamente o ajuste de um segmento vertebral específico para atingir um objetivo definido o que diferencia a nossa profissão dos outros tratamentos à base de manipulação da coluna (que já vinham sido exercidos há muitos séculos — ressalte-se).
Este acontecimento, porém, é até hoje meio envolto em alguma controvérsia. Quão severa foi de fato a “surdez” de Harvey Lilard? Houve realmente uma resposta tão dramática ao ajustamento feito por D.D. Palmer? Provavelmente nunca iremos separar apropriadamente o fato da ficção. Esta foi a história oficial, mas sabemos que a história às vezes cria mitos. Teria o tempo se encarregado de exagerar a situação? Quem conta um conto não aumenta um ponto?
Parte da controvérsia é que não há um relacionamento neurológico DIRETO entre a primeira vértebra torácica e a audição, que por sinal é responsabilidade do Nervo Cranial VIII, também chamado de Vestíbulo-Coclear. Mas existe, sim, um correlacionamento neurológico entre as ARTÉRIAS que levam o sangue para o ouvido e a primeira vértebra torácica através do sistema autonômico simpático (que vai de T1 a L2). Os neurônios simpáticos de 1º ordem de T1 e T2 fazem sinapse com neurônios de 2º ordem no gânglio cervical superior. Estas fibras simpáticas seguem pelo nervo carótido interno e se subdividem em três partes: a primeira pelo plexo cavernoso do Nervo Cranial VIII enervando os vasos sanguíneos do ouvido interno; a segunda pelo nervo timpânico (ou nervo de Jacobson) do Nervo Cranial IX (Glossofaringeal) enervando os vasos sanguíneos e as membranas mucosas do ouvido médio; e a terceira pelo nervo auricular (ou nervo de Arnold) do Nervo Cranial X (Vago) enervando os vasos sanguíneos, glândulas sebáceas, sudoríferas e seminíferas, e erector pili. Com isso, as fibras simpáticas, quando irritadas por algum pinçamento de um nervo causado por alguma disfunção vertebral, poderiam, em tese, causar contração das artérias, diminuindo a irrigação sanguínea para o ouvido e possivelmente causando diminuição de audição, exacerbado pelo aumento de secreção das glândulas anteriormente mencionadas.
Seria, portanto, mais plausível uma espécie de versão light, em que Harvey Lilard tivesse sofrido ALGUM tipo de surdez parcial após sentir o tal “estalo”, e que o ajustamento feito por D.D. Palmer talvez tivesse ajudado GRADUALMENTE a normalizar sua audição. Mas fiquemos com a versão oficial — que, de qualquer maneira, foi a história do primeiro ajustamento específico que se tem notícia.
D.D. Palmer começou então a notar problemas similares em outros pacientes. E que, manipulando um segmento vertebral específico, aliviava o problema em questão. Um desses pacientes, um pastor presbiteriano chamado Samuel Weed deu a sugestão de chamar este tratamento de “QUIROPRAXIA”, ou “CHIROPRACTIC” em inglês. A palavra é proveniente do grego keir (χείρ) = mãos e praktos (πράκτος) = feito com.
Com o decorrer dos anos, ocorreu um pecadilho gramatical — um certo barbarismo semântico no emprego da palavra. CHIROPRACTIC nasceu como CHIROPRACTIC MEDICINE. A palavra é, portanto, um adjetivo que vem sendo usada como substantivo — pelo menos em inglês. Em português, corrigiu-se esta anomalia.
Em 1897, D.D. Palmer deu início a um curso de Quiropraxia. Seu filho, Bartlett Joshua (B.J.) Palmer foi um dos primeiros formandos. Mas D.D. Palmer era um homem que pecava pela inconstância. Alguns anos após desenvolver o Palmer School of Chiropractic, uma série de eventos o levou a perseguir outros objetivos. Após a sua saída, o filho soube administrar com muita competência uma escola que crescia exponencialmente.
Apesar de ter sido seu pai quem “criou” a Quiropraxia, foi B.J. Palmer quem de fato desenvolveu a profissão tal qual a conhecemos hoje, e tornou-se uma figura-chave nas difíceis primeiras décadas. Coube a ele continuar o legado do pai. B.J. Palmer era um homem ambicioso e idealista, mas muito radical e de opiniões fortes. Visionário (investia maciçamente em tecnologia de ponta da época), marqueteiro (comprou uma estação de rádio, assim ajudando a disseminar a profissão — Ronald Reagan foi um dos seus radialistas), e extremamente controverso (acreditava piamente que Quiropraxia curava tudo), B.J. Palmer não era homem de meias medidas. Com isso, fez muitos inimigos na sua época. Certo ou errado, o homem foi quem praticamente sustentou a profissão no ombro e foi sua âncora por mais da metade do século XX.
Não esquecendo, claro, de Langworthy, Logan, Gonstead, Thompson, Williams e tantos outros heróis e pioneiros que também foram cruciais em erguer e definir a Quiropraxia.
A partir de 1915 até 1930, houve uma espécie de “revolução silenciosa” na medicina tradicional dos Estados Unidos. Para moralizar e regulamentar a profissão, foram limitados os números de universidades no país. Dezenas foram fechadas. E com isto começou uma espécie de “caça as bruxas” contra os tratamentos alternativos neste período. E com a Quiropraxia não foi exceção. Houve perseguição, movida largamente pela chamada reserva de mercado. Mas a Quiropraxia, liderada (por bem ou por mal) por B.J. Palmer perseverou e se estabeleceu.
Sua esposa, Mabel, se tornou uma das primeiras radiologistas mulheres do período. Infelizmente, sem cuidados apropriados com a irradiação causada pelos raios-x, acabou sucumbindo ao câncer em 1949. Após uma vida de realizações e controvérsias, B.J. Palmer morreu em 1961.
No mesmo ano em que D.D. Palmer ajustava seu primeiro paciente, um homem chamado Wilheim Roetgen no outro lado do atlântico desenvolvia o roetnograma (que viria depois a ser chamado de raio-X). B.J. Palmer vislumbrou uma oportunidade de provar a existência da subluxação e foi um dos primeiros a importar um aparelho de raio-X em 1909, o que causou muito frisson na época. Como resultado, Quiropraxia se tornou intimamente interligada a Radiologia a tal ponto, que, nos Estados Unidos, praticamente toda clínica de Quiropraxia possui um aparelho de Raio-X.
A escola passou então a ser administrada pelo filho de B.J., Daniel David Palmer. Este homem sisudo, equilibrado e ponderado, era um educador por excelência. E foi este o primeiro divisor de águas na história da Quiropraxia. Foi na sua gestão que a Palmer School of Chiropractic obteve reconhecimento, transformando-se mais tarde na Palmer College of Chiropractic, e ganhando status de universidade. Quando Daniel David Palmer morreu em 1978, o curso de Quiropraxia tinha duração de 05 anos com 4,800 horas / aula. A Quiropraxia já havia sido reconhecida nos Estados Unidos, e até em países como a Nova Zelândia, onde foi incorporada ao SUS de lá.
A maioria dos planos de saúde americanos, entretanto, não aceitavam a Quiropraxia. Havia também uma espécie de boicote velado da Associação Médica Americana (AMA). Em 1976, um grupo de 05 quiropraxistas liderado por Chester Wilk abriu um processo contra a AMA. De instância em instância, o caso Wilk vs. AMA acabou chegando na Suprema Corte americana que deu ganho de causa aos quiropraxistas. Este foi o segundo divisor de águas na história da Quiropraxia. A partir daí, os planos de saúde foram gradualmente reconhecendo e aceitando a Quiropraxia, não só pelo parecer da Suprema Corte, mas também pelo eficiente custo-benefício do tratamento.
Hoje em dia atuam nos Estados Unidos mais de 70,000 profissionais, mais de 6,000 no Canadá, e mais de 90,000 no resto do mundo (mais de 1,200 no Brasil — que é considerado um dos países com mais crescimento exponencial da nossa profissão).
Em 1988 foi criada a Federação Mundial de Quiropraxia (World Chiropractic Federation – ou WFC). Desde 1997, a WFC é parte integrante da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Houve duas tentativas de formar um curso de Quiropraxia no Brasil, primeiro na década de 20 e depois na década de 60, ambas sem sucesso. O primeiro Quiropraxista formado que se tem notícia no Brasil se chama Marino Schüller, formado nos E.U.A., e atuou em Porto Alegre desde 1980 até sua aposentadoria. Mas foi com Sira Borges que a profissão se difundiu a partir de 1991. Médica por profissão, Dra. Sira partiu para os Estados Unidos em 1988 para estudar Quiropraxia. Após regressar ao Brasil, se instalou em Ilhéus, no sul da Bahia. Fundou a Associação Brasileira de Quiropraxia (ABQ) em 1992, e foi graças à seus esforços iniciais dela e de outras pessoas igualmente motivadas que na virada do milênio duas universidades acabaram por incorporar Quiropraxia nos seus currículos: a FEEVALE em Novo Hamburgo–RS, e a Anhembi-Morumbi, em São Paulo–SP, ambas reconhecidas pelo MEC. Recentemente a UCEFF Palmital começou uma turma de Quiropraxia em Chapecó-RS. E há conversas e negociações sobre cursos em Brasília-DF e Salvador-BA.
EM TEMPO: Pouco mais de 600 quilômetros de Davenport, em St. Louis, Missouri, em 1874 (21 anos antes de D.D. “descobrir” a Quiropraxia), um homem chamado Andrew Taylor Still desenvolveu uma técnica de manipulação articular, e a chamou de Osteopatia. Quando D.D. Palmer começou a divulgar a Quiropraxia, houve, naturalmente, um certo atrito entre Palmer e Still. Mas para o que as duas profissões se propõem, existia uma diferença. Na Quiropraxia é feito um ajustamento específico em uma vértebra subluxada para “despinçar” (por assim dizer) uma raiz nervosa e restaurar a função daquele segmento. O ajuste exige alta velocidade e curta amplitude. Na Osteopatia (ou pelo menos na época em que foi desenvolvida) a manipulação é feita “para re-estabelecer o fluxo sanguíneo normal e a drenagem linfática apropriada”, de maneira mais lenta e com mais amplitude. Ou seja as duas profissões exercem manipulações articulares com filosofias diferentes, mas com os mesmos objetivos: ajudar o paciente.