Como bem dizia o escritor Euclides da Cunha no seu livro clássico Os Sertões, “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”.

A pouco mais 200 km de Canudos (onde ocorreu a trágica epopeia das crônicas deste também grande jornalista) está Itiúba, uma cidadezinha de pouco mais de 30 000 habitantes encalacrada no sertão da Bahia — conhecida naquelas paragens por ser a única cidade que impediu a invasão do bandoleiro Lampião e seus cangaceiros na década de 30.

Reza a lenda que, na verdade, Lampião nem sequer se aventurou a entrar por lá. É que Itiúba só tinha uma entrada e uma saída. Sem dúvida deve ter ficado com medo de uma emboscada…

Pois é. Foi nesta bucólica, bonita e hoje mais sossegada cidadezinha onde nasceu Margarete Maria de Almeida. Foi a 5ª de uma prole de 9 (na verdade 11, mas 2 não sobreviveram). Moravam na roça, sem muitos recursos. Aos 5 anos de idade mudaram para Itiúba. Os pais queriam que os filhos tivessem acesso aos estudos.

Naquela época, o então vilarejo não contava com água encanada. Tinham que pegar água “num poço no centro, uma espécie de chafariz que abria às 5:00 da manhã,” recorda nossa heroína. A pequena Margarete tinha que carregar baldes e mais baldes de água diariamente, cuidar dos irmãos mais novos e pegar na enxada. Itiúba está no semiárido baiano, numa região de caatinga propensas a estiagens e secas. Sim, sua infância não foi das mais fáceis.

Uma das suas irmãs que vivia com uma tia em Feira de Santana (cerca de 270 km de lá) havia migrado para São Paulo. E, numa das férias que passou em Itiúba, levou consigo a já adolescente Margarete. Contava então com 16 anos.

Na capital paulista Margarete fazia de tudo. Trabalhou como faxineira. Trabalhou como diarista. Passou 15 anos trabalhando como camareira no setor hoteleiro. Puxava um carrinho pesado. “Ninguém imagina o que pesa ali, 30 kg. Uma vez eu cheguei a fazer 51 camas e as camas de hotel são de 5 a 6, entre lençóis e colchas. Trabalhava de domingo a domingo”. Como havia muitos hóspedes estrangeiros acabou ficando mesmo conhecida como Meggiee — nome este que até hoje prefere ser chamada. Seu nome de batismo remete a muitas lembranças ruins da infância sofrida.

O hotel tinha uma política que permitia aos funcionários na hora do almoço fazer 10 minutos de massagem. Começou a se interessar pelo ofício estimulada por uma das massoterapeutas mais veteranas. Fez um curso livre de drenagem linfática e entre trancos e barrancos se formou técnica em massoterapia e em estética. Seu sonho era viver disso, mas precisava da carteira assinada. Então nos primeiros anos atendia pacientes depois do expediente como complemento salarial.

Meggiee se casou duas vezes. Teve um filho em cada casamento. As subsequentes separações foram amigáveis. Mas os ex-maridos pouco ou nada contribuíam com a pensão dos filhos. Tinha que sustentar a família sozinha. Algum tempo depois juntou os trapinhos com uma pessoa. Este terceiro relacionamento foi traumático. Sofreu violência doméstica. Jurou que, se já então não dependia deles, agora é que nunca mais ia ser governada por homem nenhum.

Aí a vida lhe passou uma rasteira. Perdeu o emprego do hotel. Passou 3 anos desempregada, fazendo bicos aqui e ali, como massoterapeuta e esteticista. Dava para pagar as contas, mas o aperto era grande. Cada vez mais via a necessidade de se aprimorar. Sentia que aquela área era seu futuro. Mas precisava de um salário fixo. Algum tempo depois conseguiu um outro emprego — desta vez como cobradora de ônibus.

Era um trabalho difícil. As horas eram terríveis. Trabalhava da meia-noite às 6 da manhã. E Meggiee queria algo mais. Por duas vezes tentou fazer fisioterapia. Por duas vezes trancou a matrícula. Por algumas vezes travou a coluna. E, num desses episódios, ouviu falar pela primeira vez da Quiropraxia ao assistir acamada um programa de televisão  com o australiano Jason Gilbert, DC. Quando melhorou, resolveu investigar. Viu na internet um vídeo do George Montenegro do QueroQuiro explicando que se tratava de uma graduação. Foi aí que o bichinho da Quiropraxia a mordeu.

Resolveu que não iria medir esforços até que entrasse numa faculdade e viu que a Universidade Anhembi-Morumbi (UAM) oferecia o curso. Pleiteou uma bolsa e conseguiu entrar. Na época haviam disponibilizado aulas à noite, das 18:30 às 22:30. Calculou então que, se organizasse bem seu tempo, poderia fazer milagres com as 24 horas que o dia dispunha. Mais tarde, quando conseguiu um estágio remunerado de massoterapeuta, sua rotina ficou assim:

  • Estágio das 7:00 às 12:00;

  • Atividades domésticas e alguma dormida das 14:00 às 17:00;

  • Faculdade de Quiropraxia na UAM das 18:35 às 22:30;

  • Emprego como cobradora de ônibus da meia-noite às 6:00. “Eu saía do trabalho direto para faculdade para economizar passagem”, ressalta.

Até hoje eu só havia conhecido uma pessoa que realizou este feito: meu ex-padrasto. Ele trabalhava numa fábrica das 22:00 às 6:00; frequentava as classes do Palmer College de Quiropractic que iam das 7:30 às 19:30 (o programa condensava 5 anos em 3 anos e 8 meses); e procurava descansar das 20:00 às 23:00. E se formou com honras!

Ressalte-se que, contrário do meu padrasto (mas não o desmerecendo), Meggiee vive numa cidade onde tudo é longe; onde o trânsito é caótico; onde se ganha bem menos…

Os anos de faculdade não lhe foram fáceis. Havia a parte psicológica. Não foi moleza uma mulher de meia-idade, nordestina e de um nível social mais baixo ingressar num universo de classe média alta. O complexo de inferioridade bateu. “Tive muita dificuldade na minha faculdade”, conta. “Sempre me senti muito inferior às pessoas. Era frustrada porque, em 2009, quando tentei a faculdade de fisioterapia, fiz um ano e tranquei. Em 2015 (de novo), tranquei. Mas hoje claro que entendo que Deus não me queria como uma fisio mas como Quiropraxista”. Houve muita gente que a estimulou. “Meu professor favorito no primeiro ano foi Fernando Azevedo porque me fez amar mais ainda a Quiropraxia, mas depois ele saiu. Depois, para mim, o Daniel Ometto foi maravilhoso. Me corrigia sempre que eu pedia, principalmente preencher os relatórios do CIS”. Houve também alguma torcida contra. “Muitas pessoas diziam que eu era metida, principalmente (certos membros da) família , que eu queria ser rica, que eu não ia chegar em lugar nenhum, e eu só ia servir para lavar banheiro”. Ainda assim Meggiee não arrefeceu. Continuou obstinada em sua missão.

Entretanto, depois de anos e anos pegando peso e sobrecarregando seu corpo, a fatura chegou. Ainda aos 35 anos descobriu que “tinha espondilodiscoartrose, abaulamento, protrusão”. E uma vez, no trabalho, um ônibus apresentou um problema de suspensão. O veículo quicava feito uma bola. “A gente veio do Terminal Parque Dom Pedro até o Terminal A. E. Carvalho, esse ônibus pulando e isso acabou com minha coluna”. O trajeto durou 1 hora, mas os problemas resultantes duraram anos. “(Aquela) trepidação do ônibus acabou (me causando uma) bursite trocantérica na cabeça do fêmur (…)”. A recuperação foi lenta e sofrida. Como se isso não bastasse, o ligamento cruzado anterior do joelho sofreu uma ruptura parcial. Necessitava usar uma bengala para se apoiar ao subir escada ou os degraus do ônibus. “Na época eu ia operar. Mas o convênio foi trocado da empresa, acabou mudando a equipe médica e a nova equipe achou que não cabia” cirurgia. “Hoje eu entendo, mas antes não tinha essas orientações”. Entrementes, sem ter condições físicas para trabalhar, Meggiee recorreu ao INSS. “Eu estava afastada, (mas) o INSS não pagava. Eu tinha que esperar 30 dias para dar uma nova entrada pra poder fazer nova perícia. (…) Ficou nesta brincadeira, (…) nesta enrolação, (…) e (eventualmente) eles me mandaram embora (alegando) que eu tinha abandonado o serviço. Foi uma loucura”, relembra.

Depois do acidente, por causa da tal bengala “ia com muita vergonha para a faculdade”. Bateu a depressão. E as crises de pânico. “Até hoje eu não gosto de passar de frente às garagens de ônibus. (…) Tenho pavor só de pensar que eu tenho que voltar lá em algum momento”.

“Hoje falo que a depressão é igual ao alcoolismo, igual ao drogado. A gente nunca vai poder ficar sem tratamento. Porque pode sempre haver recaída. Porque a tristeza às vezes vem. Mas faço minha terapia, tenho psicólogo, tenho manutenção, passo 1x por mês, 1x a cada 15 dias. Mas hoje me entendo melhor. Mas sempre fico em alerta. Não preciso tomar remédio. Só posso agradecer a Deus.”

E, claro, na faculdade, tantas afecções fizeram com que Meggiee virasse objeto de curiosidade antropológica. “Às vezes, o pessoal da sala riam (sic) de mim porque a maioria das patologias que a gente estudava eu tinha. Como, por exemplo, espondilodiscoartrose, a extrusão, abaulamento, bursite (trocantérica, o) problema no joelho…” Houve uma “professora (que) pediu pra me tirar a bengala porque estava forçando o ombro e me causou uma bursite (…)”. Pronto. O palco estava armado.

Meggiee se arrefeceu? Que nada! “O sertanejo é, antes de tudo, um forte” — lembram?

Engatou um estágio remunerado na Quirovida como massoterapeuta. Além das horas, “eu fazia uns bicos de massagem. A Júlia (Miyajima) e o Luiz (Heihati) (então donos desta rede de clínicas) me deram o sábado para eu atender lá na Quirovida em Higienópolis — (que, ressalte-se,) não era aberta aos sábados. Atendia pacientes com drenagem, modeladora, relaxante, e era o dinheirinho que entrava, pagava uma conta de água, uma conta de luz… (…) Mas mesmo assim eu tinha que economizar de todas as formas. Porque, depois que me mandaram embora da garagem, eu fiquei só com o salário de estagiária” que mal dava para pagar a faculdade. Recebeu uma mãozinha da família. “Era ajuda de um, ajuda de outro, minha mãe me ajudava de um jeito, meu filho ajudava de outro”, relembra.

Na faculdade, apesar das demonstrações de apoio e carinho, as coisas continuaram difíceis:

“Eu me sentia muito diminuída, às vezes a mais burra da sala. Esse negócio de redes sociais, eu não sei fazer esses vídeos que o pessoal faz, e tudo hoje a gente precisa fazer no computador. Quando ia para sala de imagens, que envolvia computador era muito ruim porque eu dependia dos outros. Isso me deixava deprimida, mas eu fui lutando. Mas sempre tive muito apoio dos meus professores, que, não posso negar, foram assim uma bênção na minha vida. Era uma turma unida. No começo era 24. Formaram-se 12.”

Aí chegou a época dos estágios. Meggiee não se sentia capaz. “(…) no 7º semestre, eu passei por tanto nervoso… (…) Quando (…) ia atender o paciente, o coração disparava. (…) Fiquei tão constrangida que fui parar no hospital 2 vezes. A pressão foi a 16 por 10”. Duas de suas colegas começaram a trabalhar em clínicas de Quiropraxia e nossa heroína notou que isso fez uma diferença muito grande no quesito confiança. “Elas me ajudaram muito. Mas não me sentia segura de começar a trabalhar no 7º ou no 8º semestre.  Hoje quando me vejo atender eu penso: ‘caraca, meu, eu não conseguia explicar ao paciente o que era a Quiropraxia, o que a Quiropraxia fazia'”. O estágio na Quirovida ajudou.

“Trabalhei 3,5 anos como massoterapeuta no Quirovida com o Heihati e a Júlia. (Eles) foram assim pessoas maravilhosas que me ajudaram muito. E eu sei que a culpa é minha por não ter me desenvolvido muito mais. Porque eu tinha vergonha, às vezes, da Júlia estar atendendo e eu, no momento que não tinha um paciente, eu não ir lá acompanhar o atendimento. Depois quando me dei conta comecei a acompanhar o Luiz um pouco à tarde.”

“E eles começaram a dar uma ajuda aos alunos na forma de 5 encontros 1 vez por mês”. E nesses encontros “fazem um trabalho de respiração e meditação. O 3º encontro foi um divisor de águas na minha vida. Foi um momento assim lá de transição, e aí teve umas 3 ou 4 pessoas que entrou (sic) em transe e a gente começou a chorar e uma delas foi eu. Havia algumas pessoas lá que aplicaram Reiki e ali eu levantei uma outra pessoa. Meu atendimento no 8º semestre já melhorou bastante. Já me sentia segura.”

Uma coisa que marcou muito foi quando Luiz Heihati “colocou minha história no feed do Instagram (…) sobre minha história e falou que tem muito orgulho de mim, sobre todos esses problemas, e quando ouvi eles falando isso, me ajudou muito”.

Meggiee se formou aos 50 anos de idade. “Terminei os estudos em dezembro e em janeiro já estava começando a trabalhar na New Life. (…) Andressa (Morelli) me deu uma oportunidade maravilhosa. Ela tem uma unidade em Tucurivi e outra em Guarulhos. Eu trabalhei (na de) Guarulhos. Hoje sou bastante requisitada. Pacientes querem se tratar comigo. E isso é bastante gratificante. Cada um que entra ali eu abençoo. Digo que seja o Senhor tocando através das minhas mãos e eu consiga ajudar essas pessoas”.

Quanto ao joelho, segue melhorando. Vinícius Martinez, “(…) o dono da clínica Quiro-Físico onde (trabalhei) que é educador físico, (me disse): ‘Meggiee, ainda bem que você não operou porque tem como recuperar trabalhando a parte de fortalecimento’. Às vezes ele me ajusta no quadril e no joelho fico sem dor. Foi feito uma avaliação pelo meu primo que é personal e eu tinha zero de fortalecimento muscular. Isso eu sabia. Eu precisava fortalecer mesmo. Porque antes da pandemia eu fazia atividades físicas. Faço Pilates 2 vezes por semana (ver Artigo 90) e tem me ajudado bastante a sentir forte e segura (…). Hoje eu só uso a bengala para subir e descer do ônibus porque não tenho força nos joelhos e subir e descer escadas porque moro no 5º andar, eu moro numa comunidade e não tem elevador. Eu sinto bastante dor para subir sem um apoio. Então uso a bengala. Até hoje me ajuda. Mas hoje me sinto mais forte. No começo tinha muita claudicação, (mas) depois não tive mais problemas no quadril e nem no ombro”. No entanto, “(…) ainda tenho dificuldade de subir e descer do ônibus”.

Mesmo depois de formada, “demorou 3 meses para a ficha cair e conseguir acreditar que agora era Quiropraxista. Foi assim uma vitória”. Mas  ainda assim sentia a constante necessidade de se aperfeiçoar. E por isso, sempre que pode, faz cursos de Educação Continuada. Virou figura tarimbada nos eventos do IDQUIRO.

Pois é. Uma nordestina, sertaneja, ex-cobradora de ônibus que criou (e formou) 2 filhos sozinha na selva de pedra que é São Paulo, é hoje uma Quiropraxista de mão cheia — primeira e única dos 9 irmãos a obter diploma de curso superior, ressalte-se.

Há um ditado estadunidense que diz que o que não te mata, te faz mais forte. E esta força e segurança se passa para os que ela trata. “Tudo que escuto dos meus pacientes, eu já passei por aquilo, então eu consigo saber o que eles tão. E é mais fácil pra eu conseguir passar essa segurança para eles e mostrar o que a Quiropraxia pode fazer. (…) só tenho gratidão no meu coração”.

“Quando eu penso nos obstáculos que venci para me formar aos 50 anos, foi assim uma coisa de Deus, sabe?” Hoje se sustenta trabalhando no que gosta. Abriu também um consultório na própria casa. Toda esta experiência de vida a fez, com certeza, uma excelente clínica.

Sim, Meggiee é, antes de tudo, uma forte.