Foi-se o nosso 0001.
“Cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre.”
Ariano Suassuna, O Auto da Compadecida
Um parêntese: fazendo uma busca rápida pela internet, ao que tudo indica (e tal qual ocorreu com minha própria alma mater), a Anderson School Princeton sem dúvida virou a premiada Anderson University que ainda conta com um prestigiado e programa de fisioterapia.
“A partir de 1982 portanto, retorna ao Brasil o Dr. Marino Schuler, que vivia na América do Norte com a família onde trabalhava como Doctor of Chiropractic após formar-se no Cleveland University – Chiropractic and Health Sciences. Ao voltar ao seu país de origem, estabeleceu seu consultório em Porto Alegre – Rio Grande do Sul, tornando-se assim o primeiro brasileiro oficialmente formado em Quiropraxia atuando no Brasil”.
“Toda oportunidade que havia para falar sobre a profissão em uma universidade, nós topávamos. Estava numa universidade em Joinville, SC fazendo isto, quando o Marino ligou para lá (não existia celular nesta época ) e veio me buscar para ter um encontro na Feevale, já que ele tinha sido contactado pela Ângela Kolberg diretora do programa de fisioterapia, que queria que ele desse um curso de técnica lá. (…) Veio de carro, 617 km para me pegar em Joinville e me levar para um encontro na Feevale. Lá nos reunimos e foi aí que tudo começou”, relata a Dra. Sira Borges, D.C..
Geralmente numa eulogia, discorre-se um pouco sobre a biografia do falecido, seus feitos pessoais e profissionais e alguns causos pessoais dependendo de quem esteja falando. De minha parte, eu posso contar nos dedos das minhas mãos quantas vezes encontrei Marino pessoalmente (doravante vou dispensar o “Dr”). Mas toda santa vez foi durante algum evento importante da história da nossa profissão no Brasil. Parecia, a cada vez que nos víamos, que éramos velhos amigos. Para mim, esta afinidade era algo quase espiritual. Nosso senso de humor era muito parecido e Marino era muito brincalhão. A energia da gente batia direitinho. Todo reencontro era uma diversão.
A primeira vez que o vi foi nos meus 26 anos num sábado, no dia 14 de setembro de 1996 em São Paulo. Nos reunimos eu, ele, Mitsuyoshi Nagaya, Eduardo Bracher e Sira Borges para fazer uma ata da ABQ, na tentativa de protegê-la assim da ação de um grupo de “práticos” (ou pelo menos foi o meu entendimento na época). Marino era mais baixo que eu, mas sua presença impunha respeito. O cabelo já andava rareando, mas usava um bigode e cavanhaque sensacionais que lhe conferiam um aspecto de “vilão de James Bond”. Naquele dia, fizemos mais reuniões, fomos a uma churrascaria, mas pessoalmente não nos falamos muito. Acabei adotando o tal bigode-e-cavanhaque em 1999 até a pandemia.
Foi durante a implantação do curso de Quiropraxia da Feevale em 1998 que acabamos nos aproximando mais. A ideia era fazer uma parceria entre esta instituição e o Palmer College of Chiropractic para abrir a 1ª graduação em Quiropraxia do Brasil. Sendo o único Quiropraxista graduado atuando na Região Sul, o Dr. Marino Schuler seria a opção mais viável e natural para coordenar o programa. Mas ele não quis saber. Por mais que tentassem convencê-lo, não arredou o pé. Voltaram então as atenções ao Dr. Eduardo Bracher, que também recusou. A terceira escolha decaiu sobre mim, relativamente recém-formado, 28 anos, casado, sem filhos, e que ainda não tinha estabelecido raízes. Relutantemente topei.
Minha esposa descobriu que estava grávida no dia 26 de fevereiro de 1998. No dia seguinte, partíamos para Novo Hamburgo. Este pequeno detalhe iria acabar encurtando minha breve odisseia como coordenador — mas isso já é outra história. No dia 02 de março de 1998 ocorria a Cerimônia de Abertura da Parceria Palmer-Feevale com a presença do então presidente da Palmer, o dr. Virgil Strang, D.C. e outras importantes figuras. Imagino que Marino deve ter comparecido a este evento, mas não tenho memória nenhuma disso. O que eu me lembro foi de ter lhe perguntado o porquê de não ter aceito ser o coordenador do curso. E me lembro nitidamente da sua então enigmática resposta: “Guri, eu não gostaria de jeito nenhum de estar no seu lugar”. Entendi depois.
Desde aquele dia, Marino começou a me chamar de guri. Eu até que gostava. Me dava conselhos e dicas sobre a coordenação. Ele, um tipo bonachão, charmoso, bonito como quê, com aquele bigode-e-cavanhaque à la vilão de James Bond, era, para mim, uma figura meio assim que quase paternal. Nos encontramos de novo para uma reunião, no dia 24 de março de 1998, às 17:45, eu, ele e Ângela Kolberg. Logo depois regressei para Ilhéus. Em abril, voltei de novo a Novo Hamburgo, mas 15 dias depois já não era mais o coordenador.
A ideia do programa de Quiropraxia era formar a 1ª turma como um curso de pós-graduação de 2 anos para que assim pudessem compor o corpo docente. Isso só ocorreria uma única vez e assim foi feito. Em 08 de abril de 2000, houve a colação de grau e me toquei de novo para o Rio Grande do Sul. Foi um evento importante. Várias personalidades internacionais foram para esta graduação. Durante uma apresentação em um dos eventos, eu divaguei algo sobre o Efeito Borboleta de como uma mera visita ao Brasil da mãe (Quiropraxista) de um voluntário do Corpos da Paz na década de 70 teve uma influência na sua subsequente decisão de se tornar ele mesmo um Quiropraxista — e como isto acabou levando a minha mãe a estudar no Palmer, abraçar esta profissão e começar um movimento que culminaria com esta importante formatura. Ângela Kolberg então chamou a atenção do papel que Dr. Marino Schuler havia desempenhado em todo este processo — e isto quase me matou de vergonha. Na minha diatribe verborrágica, havia esquecido de mencionar Marino!
Na primeira oportunidade, mais que depressa fui na plateia pedir desculpas a ele, que disse: “Que nada, guri. Fizeste um bom argumento. Não me incomodou absolutamente em nada. Bom trabalho”. Respirei aliviado.
No dia 09 de abril de 2011, num sábado, aconteceu o evento de encerramento do 11º Congresso da Federação Mundial de Quiropraxia no Rio de Janeiro. Houve um banquete e eu me sentei na mesma mesa de Marino, com nossas respectivas esposas. Comemos juntos, rimos e gargalhamos à beça, fazendo piadas e brincadeiras, tirando sarro da cara um do outro. “Tu não tem jeito, guri” dizia entre risos. Depois, quando a dança começou, não me lembro de vê-lo. Decerto deve ter saído à francesa.
Até onde vai minha memória, acho que talvez tenha sido a última vez que o vi.
Fiquei triste quando soube de sua morte. Tínhamos alguns pacientes em comum. E havia ouvido deles que Marino já não estava atendendo tanto. Que estava gradualmente deixando o filho trabalhar no seu lugar. Que estava tendo problemas de saúde.
Dele, quiropraticamente falando, levo uma técnica de “bombeamento sacral” que me havia ensinado certa feita — ótima para facilitar o ajuste depois. Tentei, gostei e adotei na clínica. Isto me põe um sorriso triste nos lábios porque haverei sempre de me lembrar dele durante este ajustamento.
Que nosso eterno 0001, colega e amigo, descanse em paz. Um fraterno abraço, Marino Schuler. Que continues iluminado e iluminando neste seu novo itinerário.