“Tentação é o sentimento que temos quando nos deparamos com uma oportunidade de fazer o que sabemos inatamente que não deveríamos.”

— Steve Maraboli

Às vezes a gente fica tentado mesmo. Até o melhor de nós.

Nos idos de 1996 e começo de 1997 — logo no primeiro ano da minha jornada como Quiropraxista — tive a oportunidade de acompanhar uma colega-mentora mais experiente em 2 cursos de Trigger Points: um em Salvador e o outro em Recife. Os participantes eram fisioterapeutas. Isso parece tão absurdo hoje, mas naquela época Quiropraxia era uma novidade. Nem sonhávamos então que a nossa recém-nascida profissão no Brasil iria sofrer repetidas tentativas de ser absorvida dentro de outra especialidade com limitada competência em áreas específicas à Quiropraxia — e que tão pouco de fato a compreende.

E nessas quase 3 décadas seguintes eu recebi alguns convites para lecionar a grupos de fisioterapeutas. Primeiro, uma conhecida universidade aqui no Nordeste entrou em contato para ministrar uma matéria — acreditem ou não — em Quiropraxia! Decerto acharam que 120 horas-aula seria mais do que suficiente para capacitar fisioterapeutas. Recusei.

Alguns anos depois eu recebi uma proposta polpuda para ensinar imagenologia a um grupo de fisioterapeutas de uma cidade aqui perto. Afinal de contas, o conteúdo programático deles só cobria aproximadamente 60 horas de imagem, enquanto que no Palmer College of Chiropractic as horas-aula sobem para quase mil — e eu iria ajudar a preencher esta lacuna. Confesso que desta vez fiquei tentado. Mas, após alguma reflexão, decidi que não. Àquela altura do campeonato, já existia este movimento de “fagocitar” a Quiropraxia. Pra que eu ia dar de bandeja pros fisios justamente um dos pontos fortes da nossa profissão?

Mas, confessando um pecadilho, eu acabei, sim, certa vez, cedendo à tentação. Uma das melhores massoterapeutas com quem eu tive o prazer de conhecer estava montando um curso de formação e me chamou para ensinar anatomia. Ela atendia na minha clínica e eu respeitava muito sua competência. Aceitei. O curso era de anatomia básica, 3 horinhas apenas. Obviamente focada na parte muscular, a intenção era reconhecer nomes e funções de músculos mais comuns encontrados numa sessão de massagem terapêutica. Me arrependi depois. Não pelo que aconteceu, mas pelo que poderia ter acontecido. Tive receio que um dos participantes pudesse capitalizar em cima disso e dissesse que “aprendeu Quiropraxia comigo”. Graças a Deus nunca ocorreu.

Mas, anos depois, soube através de uma rede social que a tal massoterapeuta (que já estava atuando em outro estado), fazia “quiropraxia indiana” usando umas marretas e dando porradas em pacientes. Apesar dela nunca ter mencionado meu nome nem que aprendeu nada comigo, podem imaginar a minha desilusão e a queda de conceito que tive por aquela profissional.

Decidi a partir daí que nunca mais iria ministrar nenhum tipo de curso a pessoas que não sejam Quiropraxistas ou estudantes de Quiropraxia. Porque estamos vivendo em tempos estranhos, em que as nulidades prevalecem e o bom-senso é jogado ao escanteio. E diante das absurdas tentativas do Brasil ter a dúbia “honra” de se tornar o primeiro país a permitir que uma profissão independente no resto do mundo faça parte de outra menos capacitada em algumas áreas cruciais, precisamos estar cautelosos.

Tivemos o dissabor de nos deparar no início de julho com um Projeto de Lei apresentado “pelo Deputado Reimont (PT/RJ -Fdr PT-PCdoB-PV)” que “regulamenta o exercício da profissão de Quiropraxista”. O PL n. 3246/2025 diz o seguinte:

  • QUE, “no Brasil, a Fisioterapia é a única profissão regulamentada apta a tratar pacientes de forma segura utilizando-se da Quiropraxia como recurso terapêutico. Esta prática é embasada em raciocínio clínico e abordagens específicas para o manejo de condições neuro-músculo-esqueléticas”;
  • QUE, “com a entrada desta prática no Brasil, já existem relatos documentados de complicações graves após sessão de quiropraxia executada por profissional não fisioterapeuta”;

  • Que, “nos Estados Unidos, ocorre que a Quiropraxia é formação independente da Fisioterapia, ocasionando inúmeras críticas devido a práticas e técnicas sem embasamento científico. Quiropraxistas americanos, por exemplo, têm afirmado que manipulações podem melhorar a imunologia e prevenir doenças como a COVID-19, sem qualquer base científica, resultando em uma ameaça significativa para a população, comprovada na ocorrência de casos de óbitos advindos de tal prática”;

    Apesar da relativa distorção dos fatos para melhor adequar a narrativa, a verdade é que esta nossa conhecida e famigerada “divisão profissional” (ressalte-se à nível mundial) tem sido seguramente um empecilho e pode muito bem ajudar a enterrar de vez a Quiropraxia no Brasil.

  • E QUE “a criação de novos cursos de graduação pelo Ministério da Educação (MEC) não implica, automaticamente, no reconhecimento de uma nova profissão. A formação acadêmica oferecida por estes cursos destina-se à qualificação técnica e científica em áreas específicas, mas o estabelecimento de uma nova profissão depende principalmente da real necessidade do Sistema de Saúde e da sociedade (…).”

    Esta última declaração é um soco no estômago porque a afirmação sobre a “qualificação técnica e científica em áreas específicas” é de uma desinformação gritante e só evidencia o desprezo e desserviço com as instituições educacionais que vem formando bons profissionais há mais de ¼ de século…

Mas olha, antes do distinto leitor ficar muito ouriçado, lembre-se que trata-se apenas de um Projeto de Lei. Temos outros que estão tentando passar em comissões e que mais efetivamente regulamentam a profissão de Quiropraxia como uma independente. O único problema é, tal qual uma semente tem a possibilidade de se tornar potencialmente uma árvore, todo Projeto de Lei tem também o potencial de se tornar lei. Esse risco é real — para “nós” e para “eles”.

Só que “nós” somos David e “eles” são Golias: possuem um número exponencialmente maior de profissionais formados; contam com bem mais recursos — e com uma certa parlamentar que, não se sabe porque cargas d’água, resolveu ir na contramão das evidências mundiais e incondicionalmente vestir a camisa desta luta insana.

Seja lá como for, o momento político desaconselha Quiropraxistas a ministrar cursos para não-quiropraxistas. Não que esta prática seja antiética. Mas é definitivamente inadequada nesta atual conjuntura.

Antiético mesmo é Quiropraxistas darem cursos de técnicas de ajustes de Quiropraxia para não-quiropraxistas. Já ocorreu um sem-número de tais cursos aqui no Brasil — ministrados, ressalte-se, por Quiropraxistas oriundos de outros países (alguns deles com regulamentação específica). Claro que alguns destes palestrantes professam ignorância. Mas basta uma rápida pesquisa na internet e algumas indagações para elucidar dúvidas.

Se ignorância não é desculpa, resta-nos a constante suspeita que o vil metal foi parte integrante desta decisão. A tentação bate na porta o tempo todo…

Recentemente, um desses cursos (que acaba enfraquecendo ainda mais a nossa causa) fez com que a Associação Brasileira de Quiropraxia publicasse uma declaração se posicionando sobre o assunto:

“Nós, da Associação Brasileira de Quiropraxia (ABQ), repudiamos qualquer Quiropraxista — seja bacharel ou D.C. — que ministre cursos de formação em técnicas ou disciplinas exclusivas da formação do Quiropraxista para pessoas que não possuem a devida formação superior em Quiropraxia.

Em relação (a um) evento recente, a ABQ entrou em contato direto com o palestrante (…). Em um primeiro momento, ele demonstrou preocupação com a história política da profissão no Brasil e afirmou que cancelaria sua participação. Infelizmente, por motivos que consideramos inaceitáveis, o palestrante decidiu seguir com a realização do evento, lecionando para pessoas que não são bacharéis em Quiropraxia, em parceria com uma associação que não está em conformidade com as Diretrizes de Educação em Quiropraxia definidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Federação Mundial de Quiropraxia (WFC), e que defende que a Quiropraxia deve ser uma especialidade da fisioterapia.

Somos uma instituição que preza pela valorização e reconhecimento da profissão em nível nacional e internacional e não medimos esforços para fazer com que avancemos. Por isso, repudiamos essa atitude do palestrante e lamentamos que colegas bacharéis e estudantes apoiem eventos e pessoas que não estão alinhados com a defesa da Quiropraxia enquanto uma profissão independente e com formação de nível superior.

Reforçamos que estamos em constante aperfeiçoamento de nossos processos e eventos, sempre de acordo com os interesses dos nossos associados e com o objetivo de fortalecer a Quiropraxia brasileira de forma coletiva.”

Esta prática de trazer gente de fora para dar cursos promovidos por entidades não reconhecidas pela ABQ e WFC já foi palco de acaloradas discussões ainda nos idos de 2011. Naquela época, após assembléia no Congresso do Rio de Janeiro, a Federação Internacional de Quiropraxia (WFC) redigiu uma resolução que diz:

“FICA RESOLVIDO pela Federação Mundial de Quiropraxia que é apropriado que os (Quiropraxistas) ofereçam educação de pós-graduação e outras áreas em habilidades clínicas, exceto ajuste articular, a pessoas que não sejam (Quiropraxistas) ou estudantes de Quiropraxia devidamente qualificados, desde que tais pessoas sejam profissionais de saúde licenciados ou reconhecidos, autorizados a utilizar as habilidades clínicas em questão em suas práticas, e desde que não haja nada na promoção e na oferta da educação e/ou em quaisquer créditos ou certificados concedidos que indique ou implique que a educação proporciona habilidades, competências ou qualificação em quiropraxia.”

MAS, em países em que “a profissão de Quiropraxia não só não é reconhecida como ainda tem um futuro incerto devido à forte oposição constante de outras profissões da saúde. A WFC e suas associações nacionais membros solicitam a todos os Quiropraxistas de outros países que respeitem seus colegas nesses países, não oferecendo seminários ou outras formas de educação clínica a não quiropráticos, a menos que haja discussão prévia e aprovação da associação nacional relevante”.

Depois desta última afirmação, voltamos ao argumento inicial do nosso artigo. Os cursos de Trigger Points que ajudei a ministrar e os de Anatomia Básica que ministrei, apesar de terem sido realizados bem antes de 2011, seriam totalmente inadequados à realidade que estamos vivendo hoje. O momento político simplesmente não é propício.

“Bom. Se pra vender um curso de um conteúdo que um Quiropraxista criou, você precisa de fisio como público alvo, é pq a (sic) algo que deveria ser repensado,” refletiu sabiamente o Dr. Paulo Gomes, Coordenador do curso de Quiropraxia da UNIGAMA, e um dos grandes expoentes da nossa profissão no Brasil.

Sim, tem que ser repensado. Porque é grande a possibilidade de qualquer curso ministrado por nós ser usado como argumento para “legitimar a falta de necessidade da profissão de Quiropraxia aqui no Brasil. (…) Cada ato é um fator cumulativo para decisões futuras”, afirma Kenneth Bryan, DC, CCWP, CPT — ex-professor da UAM e Quiropraxista americano representante da ICA no Brasil que clinica por aqui há quase 20 anos. “Pessoalmente, não desejo contribuir conscientemente de forma alguma para a possibilidade de a Quiropraxia não se tornar uma profissão no Brasil.” É um risco que não podemos correr.

E com isso, voltemos à frase do palestrante motivacional Steve Maraboli que abriu este artigo: “Tentação é o sentimento que temos quando nos deparamos com uma oportunidade de fazer o que sabemos inatamente que não deveríamos.” O advérbio em negrito “inatamente” não foi fruto de uma tradução criativa. Foi literal:

“Temptation is the feeling we get when encountered by an opportunity to do what we innately know we shouldn’t.”

Interessante a escolha da derivação da palavra “inata”. Interessante a importância que esta palavra tem para nós, Quiropraxistas. Interessante como esta frase deveria nos fazer pensar e repensar o que cada ato feito hoje pode cumulativamente influir em decisões futuras.