Pergunte a qualquer ortopedista, fisioterapeuta ou Quiropraxista: usar tênis apropriado para correr minimiza possíveis lesões. Todos sabem disso. Os fabricantes de tênis trabalham incansavelmente para aprimorar os modelos a fim de minimizar o impacto e maximizar a performance do corredor.
Isto porque correr é uma atividade que envolve alto impacto nos calcanhares — os primeiros a bater no chão. O meio e a frente do pé chegam depois. O dedão dá impulso para o pé decolar no final. E, antes de aterrissar, os dedos apontam para cima. O início da pisada está nos calcanhares. Ponto. Por isso, a importância de um tênis adequado.
Faltou combinar com os Tarahumaras. Estes indígenas do norte do México correm grandes e distantes maratonas em tempo recorde usando apenas sandálias de solas de pneu. E os quenianos? Há séculos correm de um lugar para outro, às vezes vencendo distâncias de 100 quilômetros, como se isso não fosse nada. Ganham incontáveis maratonas, corridas e medalhas pelo mundo afora. Pelo menos lá no Quênia, corriam descalços. Sem tênis nenhum. E com o mínimo de lesões.
“As diferenças entre correr com tênis e correr descalço vêm sendo pesquisadas nas últimas quatro décadas. Já se observou como o solado interfere no movimento da pisada e em que medida o calçado determina qual parte do pé toca primeiro no solo. Uma das constatações do estudo é simples: com tênis, tendemos a bater os calcanhares no chão, ao passo que, descalços, aterrissamos no solo com a parte de frente do pé, justamente para proteger os calcanhares. É um movimento intuitivo” (ÉPOCA, 03/01/2011).
Funciona assim: em tese, “na fase aérea da passada, o pé está relaxado com os dedos apontados para baixo”, ao invés de para cima. A parte da frente do pé é que toca o solo, e não o calcanhar. É esta parte que acaba amortecendo o impacto da corrida.
Parece uma grande bobagem, não? E pode até ser. Mas este humilde escriba, pouco tempo depois de ler esta reportagem da ÉPOCA anos atrás, teve a oportunidade de observar um menino correr descalço na rua e ficou surpreso quando constatou que era realmente a ponta do pé ou antepé (ou região metatarso-falangeana) que chegava primeiro ao solo.
Esta maneira de correr muda muita coisa na fisiologia da passada. Pra começo de conversa, a flexão do pé ativa a musculatura da panturrilha. “O esforço prolongado pode favorecer lesões”. O tendão de aquiles, que liga o calcanhar à panturrilha, será definitivamente mais exigido. “(…) pode sofrer por esforço repetitivo devido à posição mais elevada do calcanhar”. O mesmo pode ser dito da fáscia plantar, a aponeurose que acompanha o arco do pé. “Os pequenos músculos no interior do pé, que formam o arco e movimentam os dedos, participam mais intensamente do movimento”.
Porém, no frigir dos ovos, se supostamente o atleta tivesse um condicionamento adequado nestas estruturas, esta maneira de pisar teria um impacto infinitamente menor do que a pisada de calcanhar. A ÉPÓCA afirma que, segundo as pesquisas, “a pisada frontal é considerada mais eficiente entre os corredores de elite, que (…) sofrem menos lesões”. Contudo, “especialistas (…) dizem que os estudos não permitem afirmar categoricamente que a pisada frontal e descalça é melhor para prevenir lesões”.
Em janeiro de 2010, a revista científica Nature publicou um estudo do antropólogo Daniel Lieberman, da Universidade Harvard. Nele, as forças de impacto foram medidas “na corrida de adolescentes quenianos que nunca haviam corrido calçados”. Com o uso do tênis com amortecimento, a pisada mudava. Ao invés do antepé, os quenianos começaram a bater os calcanhares no chão. Os tênis “modificaram a técnica de corrida de adolescentes acostumados desde cedo a correr descalços”.
Na visão deste que vos escreve, o que os Tarahumaras e os quenianos têm em comum é o fato de se virarem sem tênis. Correm descalços desde criança e possuem músculos habituados a este esforço. Nós não.
Mas aí entra em cena Christopher McDougall , um escritor e jornalista americano. Ele escreveu vários artigos para as revistas Esquire, The New York Times Magazine, Men´s Journal, New York e Men´s Health. Formado em 1985 pela prestigiosa Universidade Harvard, o homem também atuou como correspondente estrangeiro para a Associated Press, e cobriu as guerras civis de Ruanda e Angola.
Mesmo com todas estas credenciais, o que ele gosta mesmo é de uma boa e velha corrida. De fato, McDougall tornou-se uma espécie de coqueluche nos Estados Unidos uns anos atrás após o lançamento do livro Nascido para Correr (Editora Globo, 2010).
Na época que foi lançada, esta obra virou objeto de controvérsia na terra do Tio Sam. Tudo porque nela, o autor defende a ideia de que a maioria das lesões dos corredores é causada por (pasme!) “tênis modernos acolchoados”. É muita coisa para a gente digerir. E tem mais.
Ainda de acordo com McDougall, estas lesões tiveram um aumento exponencial desde que tais calçados foram lançados em 1972. “Na visão dos descalços apaixonados, os calçados com amortecimento são muletas que atrofiam a poderosa e complexa musculatura dos pés, desenvolvida em milhões de anos de evolução” (ÉPOCA, 03/01/2011). Para sustentar tal afirmação, ele se espelha justamente no exemplo dos Tarahumaras.
Muita gente ficou indignada. McDougall foi acusado de irresponsabilidade e proselitismo (pra não dizer pedantismo — sem trocadilhos!). Mas, por incrível que pareça, dividiu a opinião dos especialistas em lesões ortopédicas. Algumas correntes defendem que “é o hábito que faz a diferença na capacidade de correr sem se machucar, com ou sem tênis”. E o hábito, como os caros leitores sabem, faz o monge. “É basicamente da adaptação que depende a necessidade que teremos do calçado. (…) O tênis não é o protagonista da proteção. Quem tem tempo para se adaptar pode se dar bem sem ele”, afirma Júlio Cerca Serrão, coordenador do Laboratório de Biomecânica da Universidade de São Paulo (USP). Mas nem todos pensam assim.
Mário Andrada, diretor de comunicação da Nike na América Latina, tem outra opinião. “O amortecimento ajuda no conforto do atleta e na performance” e “serve para prevenir lesões especialmente em percursos longos e com piso irregular”. Quando questionada pela ÉPOCA sobre estudos que comprovassem a eficácia dos tênis de corrida, “a empresa não respondeu”. McDougall, de acordo com seu livro, afirma que tais estudos não existem. A gente meio que fica com uma pulga atrás da orelha, né?
De qualquer maneira, o mercado, camaleônico como ele só, já começou a responder a esta nova tendência. “Os tênis de corrida, com solado mais fino e maleável começaram a aparecer nas lojas, prometendo mimetizar a pisada descalça. As ‘luvas para os pés’ da italiana Vibram — sapatilhas esportivas conhecidas como Five Fingers — tornaram-se o produto preferido dos corredores descalços” (ÉPOCA, 03/01/2011).
“No balanço da ciência, é impossível concluir se os tênis de corrida são fundamentais, como sugere a indústria, ou se todos ficariam melhor descalços, como dizem os radicais da corrida natural”, afirma a reportagem. Mas devemos sempre questionar o status quo. O que parece uma verdade absoluta hoje pode ser totalmente desacreditado amanhã. “Há mais de uma maneira de fazer Neston”, já dizia aquela propaganda dos anos 70.
O fato é que cautela e canja de galinha nunca fizeram mal a ninguém. Correr descalço pode incutir uma indescritível sensação de liberdade, e de estar em sintonia total com a natureza (além de ser muito gostoso). Mas nós não somos quenianos nem pertencemos a uma tribo indígena do norte do México. Somos seres urbanos. E nossos pés refletem isso.
A reportagem da ÉPOCA conclui com estas duas frases: “Mais do que nunca, vale a cautela e a experimentação. A proteção dos pés não é questão de moda”. Claro, para alguns , McDougall pode até não passar de um pedante (sem trocadilhos de novo!). Mas é interessante remexer um pouquinho nos dogmas científicos e constatar que, às vezes, o proverbial buraco é bem mais embaixo — nos pés!