Um clínico é antes de mais nada um observador. De sinais, de sintomas, de achados — mas também da natureza humana. E um Quiropraxista é versado na arte de encontrar padrões — nos sinais, nos sintomas, nos achados e nos comportamentos de nossos pacientes.
Claro, nestas quases 3 décadas de prática clínica, posso dizer que já vi de tudo. Mas volta e meia algo me surpreende. E muitas vezes não tem nada a ver com Quiropraxia. Tem a ver com as experiências de vida do paciente, com os “causos” que eles nos contam enquanto estão sendo ajustados na minha boa e velha maca Thuli…
Apesar do óbvio clichê, pode-se se dizer que Antenor era um gaúcho competente. Supervisor de uma grande empresa, morou muitos anos em Santa Catarina antes de ser transferido a Ilhéus (esposa e filha ficaram em SC). O homem tinha uma ética de trabalho irrepreensível e esperava nada menos que isso dos seus subordinados. Foi quando o choque de cultura começou. As coisas por aqui seguiam seu próprio rítmo e Antenor exasperava-se. A tensão acumulada começou a cobrar um preço e a cervicalgia se instalou. Enquanto se tratava comigo, queixava-se da falta de produtividade a que estava acostumado. Tudo era complicado. Não entendia por que tinha que ser assim.
Não que Antenor fosse um cara relaxado antes. Nãããão. Antenor já era um sujeito estressado, mas pelo menos conseguia resultados. E por aqui não estava implantando as mudanças que lhe foram confiadas. Por isso, se estressava mais ainda.
Era um gaúcho de seus cinquenta e tantos anos na época. Magro, em forma, cabelos grisalhos e uns olhos azuis, penetrantes. Olhos de Carlos Kurt.
Carlos Kurt foi um ator de descendência alemã, cara de mau e 1,97 metro de altura que fazia personagens secundários em filmes e programa d’Os Trapalhões. Kurt tinha uns olhos assim meio esbugalhados, penetrantes e intimidadores que beiravam a insanidade. Era sua marca registrada. Por isso geralmente fazia o papel do valentão, do chefe, do antagonista de Didi, Mussum, Dedé e Zacarias.
Pois é. Antenor tinha olhos de Carlos Kurt.
Uma vez me contou que tinha passado uma semana de cão. As coisas no trabalho iam de mal a pior, a filha resolveu mudar de curso universitário e deixou o bacharelado para fazer um curso técnico — e a esposa pediu o divórcio. Antenor estava mal-humorado e com aqueles olhos mais esbugalhados que nunca.
Resolveu relaxar e dar uma caminhada na praia como de costume. Só que desta vez foi abordado por um molecote armado com uma faca. Antenor virou pro menino com aqueles olhos azuis e penetrantes (que, com certeza, beiravam a insanidade) e falou com voz calma e pausada no seu melhor sotaque gaúcho: “Bá, guri! Pensas bem no que tu vais fazer. Porque estou cheio dessas chinelagens aqui da Bahia, minha mulher quer se separar e minha filha está a caminho de esgualepar-se. Estou campeando para dar um laço em alguém, sem cagaço nenhum. E esse alguém vai ser tu”.
O menino provavelmente não entendeu patavina do que Antenor falou. Mas olhou para aqueles olhos de Carlos Kurt, achou melhor não insistir, e, prudentemente, saiu correndo com faca e tudo. Pelo menos isso naquela semana deu certo para o gaúcho.
Dona Moira, uma recatada, divorciada e aposentada bancária, de seus sessenta e poucos anos, sofria de dores generalizadas na coluna e musculatura. Nunca foi diagnosticada, mas havia ali um começo de fibromialgia. Resolveu fazer ioga. Melhorou.
Eis que nossa iogue me chega um dia no consultório com dores pontuais em um dos quadris. Era uma dor atípica, nunca apareceu com ela antes. Perguntei quando começou. Respondeu que uns quatro dias atrás. Indaguei se conseguia identificar alguma causa. Me disse que foi quando colocou o calcanhar na nuca. “Ah, durante a ioga”, concluí. Foi quando ela me olhou de soslaio e disse que não. “Foi durante o rala-e-rola, doutor”.
Confesso que esta resposta eu não estava esperando — muito menos a terminologia empregada. Fiz o possível para não demonstrar surpresa. Me pus a explicar que talvez a idade sexagenária não permitisse mais tanta flexibilidade assim — e daí a lesão do quadril. Ela retrucou: “Mas foi só assim que finalmente consegui chegar lá, doutor – e tudo graças à ioga”.
Depois desta, só consegui responder: “Ok, vamos normalizar este quadril, então”. Não tocamos mais no assunto nas sessões seguintes. Dona Moira melhorou. e, até onde me consta, voltou as suas atividades normais — na ioga e, com sorte, noutras mais.
Chamava-se Odacir. É um daqueles pacientes de longa data que só vem quando sente dor. E pra felicidade dele (ou infelicidade, eventualmente), melhora rápido com Quiropraxia. Odacir sofre de lombalgia crônica com ocasional ciática. A ressonância magnética evoluiu de uma simples degeneração discal a uma protrusão, depois uma extrusão, e agora, aos quarenta e poucos anos, mudanças Modic. Mas o quadro clínico mantém-se relativamente inalterado graças a esses socorros esporádicos que providencio — mesmo que chamando a atenção e puxando as orelhas dele.
Parte da razão que Odacir nunca seguiu um tratamento de Quiropraxia deve-se ao fato de morar relativamente longe, numa cidadezinha turística e praiana. E também de não ter muitas condições financeiras. Pelo menos quando mais jovem.
Nosso amigo já fez de tudo nessa vida: foi cozinheiro, vigia, ajudante de pedreiro. Por um tempo levava um isopor de cerveja e gelo num carrinho de mão para vender na praia. Até que abraçou a profissão do seu pai e resolveu virar carpinteiro de telhado. E dos bons. Bastante requisitado em sua cidade. Melhorou de vida e até comprou um carrinho.
Odacir sempre teve muita sorte com o sexo feminino. E era tão requisitado quanto seus serviços de carpintaria. De fato, já houve casos de mulheres brigarem por ele em praça pública. E é aí onde paira o mistério. Beleza não era o forte de Odacir. Baixinho, não muito lá cheiroso, e gago ainda por cima. Mas era íntimo conhecedor do maquinário feminino. Sabia tratar uma mulher e não era mulherengo. Era, sim, viciado em monogamia. “Casado” incontáveis vezes, era um milagre não ter filhos. As ex-companheiras o adoravam e queriam mais do que aquele homenzinho tinha a oferecer. Mas Odacir se fazia de difícil. Era fiel a atual.
Um belo dia, ao voltar para casa depois de um longo e árduo dia de trabalho, foi abordado por umas cinco viaturas policiais. Ao que parece, um dos telhados que Odacir montou pertencia a um notório traficante local, que, organizado, anotou o nome e o repasse ao nosso herói numa cadernetinha. Os policiais, de posse desta caderneta, foram atrás dele.
Odacir ficou compreensivelmente irritado. Questionou se os policiais não tinham nada melhor a fazer do que assediar um pobre trabalhador. E, naturalmente, começou a gaguejar cada vez pior. Um policial olhou para o outro e perguntou: “É esse o gago”? No que Odacir imediatamente retrucou: “GA-GA-GA-GAGO, NÃO!!!! ME-ME-ME-ME RESPEITE!”
No exato momento em que este retruque me foi proferido, eu estava trabalhando seu trapézio e ajustando suas segundas costelas com o Ativador. Até que tentei segurar, mas não consegui: caí na gargalhada! Simplesmente não conseguia parar de rir. Odacir me olhou estupefado e perguntou o que foi que ele falou de tão engraçado. Quando consegui conter o riso e enxugar as lágrimas, me desculpei e lhe respondi: “Bem, se eles tinham dúvidas antes de quem você era, agora já não têm mais, né”?
Por sorte, Odacir levou na esportiva e começou a rir também — talvez porque também a tal abordagem policial acabou mesmo não indo adiante. Até hoje rimos deste episódio, nas suas esporádicas visitas.
Os nomes de nossos protagonistas foram, claro, mudados. E é por estes “causos” e por outros que dedico este artigo de número 200 a todos os nossos pacientes — estes que são nossa força motriz, nossos professores e alunos.
Em suma: nossa razão de ter escolhido esta tão nobre profissão.