Hollywood na década de 20 conheceu um sujeito intenso e extraordinário: Lon Chaney. Este ator mudava de rosto a cada novo filme. Por isso, era conhecido como o “homem das mil faces”. Transformava-se nos seus personagens na cara e na coragem — um diferente do outro. Naquela época, as técnicas de maquiagem engatinhavam — e não se conheciam os efeitos nefastos de alguns materiais. Como resultado, Chaney sofreu horrores. Seus olhos, sua coluna vertebral e seus joelhos foram severamente afetados (veja mais sobre Chaney no Artigo 147). Morreu cedo — aos 47 anos de câncer do pulmão em 1930.

Seus filmes tornaram-se clássicos de terror do cinema mudo, como O Corcunda de Notre-Dame (1923) e O Fantasma da Ópera (1925). Estava engatilhado para começar as filmagens de Drácula, mas morreu antes. Um até então desconhecido Béla Lugosi assumiu o papel e o resto é história (ver Artigos 83 e 87).

Desde então, não há notícia de nenhum ator norte-americano tão camaleônico como Lon Chaney. Marlon Brando passou perto. Até se perdia nos seus personagens. Sua atuação se caracterizava por sutilezas e gestos. Mas não conseguia camuflar sua inconfundível voz anasalada. Talvez hoje o ator vivo cuja carreira é marcada por viver personagens tão díspares seja Johnny Depp.

Mas aqui mesmo na nossa terrinha tupiniquim, tivemos também nosso próprio homem das mil faces: Francisco Anysio de Oliveira Paula Filho. Soa familiar? Chico Anysio, ao longo de 63 anos de carreira (só na Globo, 44), criou mais de 200 personagens.

E sua carreira não se limitou somente a isso, não. O homem era prolífico — tal qual Leonardo da Vinci. Além de humorista, era ator, radioator, produtor, locutor, roteirista, escritor, dublador, apresentador, compositor, cantor, músico e pintor. Ainda encontrou tempo para se casar (6 vezes).

Mas a memória do brasileiro é curta. Reelege notórios corruptos. Faz troça da barriga de Ronaldo Nazário — o mesmo campeão da Copa do Mundo de 2002. Chamava o ex-deputado Ulysses Guimarães de múmia — o mesmo Ulysses Guimarães que lutou incansavelmente pela democracia no período da ditadura militar. Falam horrores do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (de precursor da “herança maldita” a comunista) — o mesmo FHC que ajudou a implantar o Plano Real e afastou o dragão da inflação. Tom Jobim já dizia que sucesso no Brasil é ofensa pessoal. Ou será que toda essa malhação é devido a um complexo mal-resolvido de vira-lata (ver Artigo 118) como vaticinava Nelson Rodrigues?

Talvez o brasileiro típico seja iconoclasta por natureza. Ou talvez o tempo tenha que passar até que o devido reconhecimento chegue. Juscelino Kubitschek era extremamente antagonizado na época de sua presidência. Hoje, todos lhe têm deferência.

Talvez também tenhamos nos acostumado com Chico Anysio. Afinal de contas, ele frequentava nos nossos lares desde 1969 com programas como: Chico City (1973-1980), Chico Anysio Show (1982-1990), Escolinha do Professor Raimundo (1990-1992 e 2001), Estados Anysios de Chico City (1991), Chico Total (1981 e 1996).

Lon Chaney se transformava fisicamente nos seus personagens. Mas era um ator de filme mudo. Chico não. Além da maquiagem, cada tipo possuía uma inflexão e um timbre de voz. O homem era capaz de interpretar velho ou novo, preto ou branco, rico ou pobre, bêbado ou intelectual, gay ou heterossexual. Sua capacidade de reproduzir sotaques era uma coisa assombrosa. Poderia passar por gaúcho, carioca, cearense, paulista (do interior ou da capital) e mineiro com a maior facilidade.

O sotaque baiano do personagem Painho era completamente autêntico e fugia das generalizações da época. O mesmo pode se dizer do personagem Baiano, do “conjunto” Baiano e os Novos Caetanos — paródia criada por ele e o saudoso Arnaud Rodrigues em 1974. O grupo podia até ser fake, mas a música era de ótima qualidade. E fez muito sucesso nas décadas de 70 e 80.

É só fechar os olhos e pensar em alguns dos seus tipos mais memoráveis, como o sábio Velho Zuza, o rabugento Popó, o sem-vergonha Nazareno, o jogador Coalhada, o ingênuo Santelmo, o cafajeste Tavares, e, claro, Salomé. A qualidade da voz mudava de acordo com os personagens. E foram mais de 200. Que Lon Chaney que nada! Observando bem, ele não chegava aos pés do nosso Chico Anysio.

A bem dizer da verdade, é bem provável que Chico Anysio fosse cancelado hoje pela construção de alguns desses personagens…

Depois da saída de Boni, sua participação na Rede Globo foi se restringindo. Os bordões repetitivos podem ter saturado o público. E o peso da idade finalmente chegou. Ficou relegado a quadros aqui e acolá do programa Zorra Total.

Esta geração nova pouco se lembra de Chico Anysio. Meu filho mais velho só conhecia o personagem Professor Raimundo — mas não quem o criou (sim, a memória do brasileiro é mesmo curta). Uma pena.

Problemas cardiorrespiratórios levou-o a internar-se por quatro meses no início de 2011. Chegou a ficar em coma neste período. Fortes dores de coluna o levaram de volta ao hospital em novembro. Sua assessoria informou que tratava-se de “uma vértebra quebrada há uns seis ou sete anos que às vezes voltava a doer” (daí o mote deste artigo). E no Natal de 2011, voltou a ser internado. Sofria de infecção urinária, e só tinha 4% de capacidade pulmonar — resultado de décadas de tabagismo. Custou para morrer. Respirava com ajuda de aparelho, fez uma traqueostomia — e se foi aos 80 anos em 23 de março de 2012.

Tal qual Mussum, cuja persona ajudou a criar, a herança deste grande comediante é também palco de feroz disputa familiar. Por incrível que pareça, ele deixou pouco — depois de numerosos casamentos e vários filhos.

Em tempo: Seu filho, Nizo Neto, disse que o pai sofria de depressão — doença que acomete frequentemente os grandes comediantes, como o também saudoso Robin Williams.