Os homens que não amavam as mulheres (2005), A menina que brincava com fogo (2006) e A rainha do castelo de ar (2007) constituem uma trilogia que já vendeu cerca de 100 milhões de exemplares no mundo — 400 mil só no Brasil. O autor destes best-sellers, Stieg Larsson, deveria estar sorrindo à toa. Deveria.
O sujeito morreu no final de novembro de 2004 aos 50 anos de idade vítima de um ataque cardíaco fulminante. O primeiro volume de sua trilogia seria lançado pouco depois e “espalhou-se com o vigor de um viking pelo mundo” (ÉPOCA, 29/03/2010).
Larsson era um jornalista movido a ideais. Fundou em 1995 a revista Expo com o intuito de vigiar os passos da extrema-direita da Suécia. Fumava cerca de 60 cigarros por dia e bebia uma quantidade imensurável de café. Trabalhava feito um condenado. Deu no que deu. Pena que o sucesso, a fama e o dinheiro só o alcançaram depois de morto.
Parte do sucesso de sua obra deve-se à originalidade de sua heroína, Lisbeth Salander, uma extremamente inteligente sociopata bissexual de 24 anos (aparenta ter 14) com um rígido e pessoal código de moral. A mulher é uma pesquisadora de mão cheia e é o cão chupando manga! Hacker gótica, sempre vestida de preto, e com o corpo tomado de piercings e tatuagens, Salander bota Sherlock Holmes de Arthur Conan Doyle pra correr. E põe na poeira Hercule Poirot e Miss Marple de Agatha Christie. De fato, Larsson foi laudado como o autor que revolucionou o gênero policial nesta virada de século.
O nome da personagem aparentemente veio de um pesado e vergonhoso ocorrido da vida do autor. Aos 15 anos de idade, ele testemunhou o estupro coletivo de uma jovem chamada Lisbeth. Nada fez para impedir e a culpa disso o perseguiu para o resto da sua curta vida. Talvez por isso o asco da questão da violência contra a mulher, do pensamento nazista, do discurso de ódio e do abuso do poder estão presentes na obra — que, infelizmente, mais do que nunca, reverberam nos dias de hoje.
Salander faz dupla com Mikael Blomkvist, um jornalista movido a ideais, fundador da revista Millennium, e que dedica sua carreira para desbaratar os podres das grandes corporações. Se os diletos leitores acharem esta passagem parecida com a do terceiro parágrafo, não estão errados, não. Blomkvist é o alter-ego de Larsson.
O primeiro livro lida com o mistério em volta do desaparecimento de uma jovem proveniente de uma rica e tradicional família de industriais. A trama envolve intrigas, incesto, estupro, assassinatos e muita perversão. E é de longe o melhor dos três volumes.
O segundo livro lida com as origens da personagem Lisbeth Salander. E com o jogo de gato e rato que se seguiu após um homicídio triplo, tendo como pano de fundo tráfico de mulheres e prostituição.
O leitor mais atento se perguntará: o que cargas d´água terá este artigo a ver com problemas neuromusculoesqueléticos?? Bem, um dos personagens secundários, o agente Gunnar Björck, tem um papel importante na trama. O sujeito está envolvido até o pescoço: “foi acusado de infringir a lei de remuneração de serviços sexuais (…)”. E, ainda por cima, sofre de dores de coluna (ahá). “Está com uma hérnia de disco. Ela o incomodou várias vezes nos últimos tempos. Há dois anos tirou uma licença médica de quatro meses. (…) mas a licença foi prorrogada e agora é mais uma questão de esperar a cirurgia” (A rainha do castelo de ar, página 124). Deveria ter tentado Quiropraxia…
O terceiro livro lida com o esforço empreendido por Salander e Blomkvist para “desmantelar um plano sórdido que durantes anos se articulou nos subterrâneos do Estado sueco”. Esta conspiração para proteger um perigoso espião russo quase destruiu a vida da heroína quando mocinha. E deixou muitas cicatrizes. Não resolvidas.
O dinheiro arrecadado com os direitos autorais gira em torno de US$ 30 milhões. E tem sido palco de uma disputa acirrada entre a companheira de Larsson e seus parentes. Mesmo tendo vivido com ele desde a adolescência, Eva Gabrielsson nunca se casou formalmente com Stieg Larsson. Entrou pelo cano. A Suécia não tem a chamada “Lei do Concubinato” que reconhece uniões informais. A herança ficou toda para Joakim e Erland, irmão e pai do autor. Com a opinião pública contra eles, Gabrielsson foi oferecida uma modesta soma de R$ 7 milhões, mas ela recusou. Levou para os tribunais. Perdeu. Impossibilitada pela justiça a continuar a escrever a série, escreveu um livro sobre sua vida com Larsson.
Gabrielsson tinha em seu poder dois manuscritos inacabados deixados pelo seu companheiro antes de morrer — os quais teriam talvez sido satisfatoriamente concluídos por um escritor que compreendesse o âmago do autor. Mas, surpreendentemente, em 2013, a editora responsável pela obra decidiu ignorar os tais manuscritos e encomendou uma nova trilogia. Outro escritor de sucesso, David Lagercrantz, assumiu o comando da saga com a aprovação do pai e do irmão de Larsson. E agora, o disse-me-disse é que outra editora anunciou em 2021 os planos de publicar uma nova trilogia assinada por outro autor sueco. UFA!
Os livros, claro, se transformaram em filmes. Na Suécia. O primeiro estreou no Brasil em 2010. Os filmes são fieis a obra, mas pecam um pouco por falta de pulso. O maior trunfo foi a escalação da atriz teatral Noomi Rapace para viver Lisbeth Salander, que, para tanto, perdeu peso (até o volume dos seios) e enfeiou-se. Mas encarnou perfeitamente a essência da heroína. Encontrar uma atriz do quilate do Noomi Rapace que reproduza a alma de Lisbeth Salander parecia tarefa impossível. Mas em 2011, David Fincher realizou a versão americana do primeiro livro, com Daniel Craig como Blomkvist e Rooney Mara como Lisbeth Salander (que até recebeu uma nominação ao Oscar pelo papel).
Em tempo: Curiosamente, até onde sabe este escriba, os outros dois volumes da saga Millennium nunca foram filmados na versão hollywoodiana. Mais curiosamente ainda foi a realização em 2018 do filme baseado no 4º livro da série, A Garota na Teia de Aranha, com a atriz Clare Foy assumindo o papel de Lisbeth.